terça-feira, 29 de novembro de 2016

O QUE FAZER COM O MOVIMENTO DOS CAPITÃES?




Num post anterior já referi que eu e o Carlos de Matos Gomes tivemos acesso ao Arquivo Marcelo Caetano depositado na Torre do Tombo, quando estudávamos o acordo secreto do colonialismo, o Exercício Alcora, entre Portugal e os regimes racistas da África do Sul e da Rodésia nos anos finais da guerra colonial. Foi também nele que encontrámos a ata de uma reunião de altos comandos no dia 11 de março de 1974.
Publiquei a ata no boletim “Referencial” da A25A, no número de abril-junho de 2011, saindo com o título “Uma Acta de Viana de Lemos”, que altero para a sua publicação neste blogue.


Brigada do reumático, ou o apoio dos responsáveis
militares à política de Marcelo Caetano
nas vésperas do 25 de Abril de 1974.
Numa investigação sobre as relações de Portugal com a África do Sul nos anos finais da guerra colonial, que eu e o Carlos de Matos Gomes estamos a fazer, veio-nos parar às mãos uma acta de uma reunião havida na Defesa Nacional em 11 de Março de 1974. Está na correspondência de Carlos Viana de Lemos para Marcelo Caetano, no Arquivo Marcelo Caetano depositado na Torre do Tombo, o qual fomos autorizados a consultar por Miguel Caetano, filho do antigo Presidente do Conselho de Ministros.
Por nos parecer relevante para esclarecer alguns posicionamentos de altas figuras da hierarquia do Estado Novo, em relação a alguns aspectos do movimento dos capitães e da situação política nas vésperas do 25 de Abril, achámos que deveríamos dar-lhe publicidade, trazendo-a ao conhecimento público.

É o seguinte o seu texto:

“Acta resumo de uma reunião realizada no Departamento da Defesa Nacional, em 11 de Março de 1974.
Por convocação de S. Exa. o Ministro da Defesa (1) reuniram-se, pelas 11 horas do dia 11 de Março de 1974, os Srs. Ministros do Exército (2) e da Marinha (3), o Secretário de Estado da Aeronáutica (4), o Subsecretário de Estado do Exército (5) e o Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (6).
Abriu a sessão o Sr. Ministro da Defesa Nacional que comunicou que o objectivo da reunião era o de se estudar se se deveriam continuar a adoptar medidas de segurança nas Forças Armadas para fazer face à situação presente e, em caso afirmativo, qual o grau que essas medidas deviam assumir. Punha o problema à consideração dos Ministros militares.
Falou em primeiro lugar o Sr. Ministro do Exército que deu conta que nessa manhã às 08h00 se havia passado ao estado de alerta estando prevista a passagem ao estado de prevenção simples às 21h00 (…)
O Sr. Ministro da Marinha concordou, na generalidade, com esta opinião, mas afirmou que optava pela manutenção de um único estado de segurança, que poderia ser o de prevenção simples (…)
O Sr. Secretário de Estado de Aeronáutica declarou que preferia igualmente um único estado de segurança (…)

Falou seguidamente o CEMGFA que principiou por se queixar da falta de informações com que o Comando Geral de Segurança Interna lutava, pois não recebia dos Estados-Maiores dos três Ramos, nem das forças de segurança e poucas da DGS. Contudo considerava a situação muito grave e resultante de terem sido tomadas medidas de força que considerava inoportunas face à situação de momento. Historiou o chamado “movimento dos capitães” iniciado como reacção contra a publicação do DL 353 (7), e que deu origem à apresentação de várias reivindicações. Após ter tomado posse a nova equipa governamental havia constatado uma tendência que permitia concluir que os espíritos se estavam acalmando, mas ultimamente essa tendência havia sido destruída. Primeiro, os incidentes da Beira (8), entre a população civil e os militares haviam provocado um largo movimento de solidariedade militar que se estendera a outras Províncias Ultramarinas e à Metrópole, movimento esse que se consubstanciava num manifesto com 470 assinaturas (9). Considerava igualmente como factor responsável pelo agravamento da situação, o facto de se ter realizado uma reunião de comandos no Ministério do Exército “a que não tive a honra de assistir” e bem assim as medidas tomadas ultimamente como a transferência de alguns oficiais (10). Considerava a situação extremamente grave devido à não aceitação por muitos militares das vias hierárquicas, pois os generais não tinham prestígio, mais concluindo que certamente nenhum dos membros do Governo ali presentes poderia controlar a evolução de qualquer situação dentro do seu Departamento. Aliás, pedia autorização para, na presença do Sr. Ministro da Defesa, apresentar estas considerações a S. Exª. o Senhor Presidente do Conselho.
O Sr. Ministro da Defesa replicou afirmando que o Sr. CEMGFA tinha acesso ao Sr. Presidente do Conselho e que poderia pedir audiência sem que ele estivesse presente. Considerou em seguida que os comentários apresentados pela CEMGFA excediam em muito o âmbito da reunião e que até se poderiam relacionar com o equacionamento da política do Governo. Sobre este ponto queria lembrar que essa política estava definida e que aos membros do Governo, ou às pessoas da sua confiança, apenas restava um caminho que era segui-la sem hesitação.
Pessoalmente e no que se referia à agitação dos capitães distinguia três hipóteses:
- aceitar as suas reivindicações o que implicaria o abandono imediato das funções governamentais por tal ser incompatível com o compromisso de honra prestado quando as aceitou;
- pretender que se ignore ou não se perceba o que se está a passar, deixando as coisas avolumarem-se e ignorando que há quem não se queira bater e prefira situações mais cómodas e mais remuneradas;
- tentar, por todos os meios, dominar a situação.
Tendo, em consciência, a certeza de que a política do Governo era a que convinha à Nação, não poderia logicamente aceitar as duas primeiras soluções. Contudo desejava que o debate se não generalizasse neste âmbito e se limitasse apenas ao assunto que fora objecto da convocação.
O Sr. Ministro do Exército apoiou firmemente a posição do Sr. Ministro da Defesa que considerou a única admissível. Esclareceu igualmente que a posição assumida, relativamente aos três oficiais que foram transferidos, não podia de forma alguma ser considerada dura uma vez que haviam infringido os deveres 1º, 25º e 27º do RDM, o que os tornava passíveis de procedimento disciplinar.
O Sr. Ministro da Marinha, para além de exprimir a sua concordância, pedia que lhe perdoassem a vaidade, mas que, após cinco anos de permanência na sua pasta, não podia aceitar a afirmação que fora feita de que não seria capaz de controlar o seu Departamento.
O Sr. Secretário de Estado da Aeronáutica apoiou calorosamente a posição e a tese dos Srs. Ministros da Defesa e do Exército afirmando que, pessoalmente nunca quereria estar à frente de um Departamento em que o comando se efectuasse de baixo para cima. Afirmou igualmente não duvidar que podia controlar o seu Departamento.
O Sr. CEMGFA afirmou que, embora fora do âmbito da reunião, tinha querido, para ficar de bem com a sua consciência, apresentar as suas considerações e que o fizera pois julgava a situação grave nos três Teatros de Operações, dizendo a propósito que o Sr. General Bettencourt Rodrigues regressara a Bissau cheio de apreensões (11).
Finalmente foi decidido e determinado que o Sr. CEMGFA comunicasse aos três Ramos que, até nova ordem, as unidades se manteriam em estado de alerta.

Lisboa, 11 de Março de 1974.

Carlos Viana de Lemos”.

………

(1) Ministro da Defesa Nacional – Joaquim Moreira da Silva Cunha, nomeado em 7 de Novembro de 1973, em substituição de Horácio Sá Viana Rebelo.
(2) Ministro do Exército – Alberto de Andrade e Silva, general, nomeado na mesma remodelação de 7 de Novembro de 1973.
(3) Ministro da Marinha – Manuel Pereira Crespo, contra-almirante, que ocupava o cargo desde 27 de Setembro de 1968, primeiro governo de Marcelo Caetano.
(4) Secretário de Estado de Aeronáutica – Mário Telo Polleri, general, que também entrara em 7 de Novembro de 1973.
(5) Subsecretário de Estado do Exército – Carlos Viana Dias de Lemos, o autor da ata e que tomara posse também em 7 de Novembro de 1973.
(6) Chefe do EMGFA – Francisco da Costa Gomes, general, no cargo desde 12 de Setembro de 1972. Viria a ser demitido do cargo exactamente três dias depois desta reunião, a 14 de Março de 1974.
(7) O general Costa Gomes refere-se ao DL 353/73 de 13 de Julho, relativo às carreiras dos oficiais do Exército e que se considera estar na origem do movimento dos capitães.
(8) Referência aos chamados “Acontecimentos da Beira”, ocorridos nos dias 17 a 19 de Janeiro na cidade da Beira, em Moçambique, e traduzidos em grandes manifestações da população branca contra as Forças Armadas e os militares, acusados de não se esforçarem para dar uma solução rápida à guerra subversiva, deixando que esta alastrasse para Sul e chegasse às zonas com mais população branca.
(9) Este manifesto foi elaborado pela Comissão Coordenadora do Movimento dos Capitães em Moçambique logo em 23 de Janeiro, exigindo uma série de medidas no sentido de não haver repetição dos acontecimentos, mas também focando a necessidade de ser bem explicada a função das Forças Armadas numa guerra subversiva a toda a população.
(10) Refere-se à prisão, ordenada pelo Governo, dos capitães Vasco Lourenço, Antero Ribeiro da Silva e Pinto Soares, todos pertencentes ao movimento dos capitães e a imediata transferência dos dois primeiros e de David Martelo, respectivamente para os Açores, Madeira e Bragança, unidades distantes das suas residências.
(11) O general Bettencourt Rodrigues tinha sido nomeado governador-geral e comandante-chefe da Guiné em 1973, em substituição do general António de Spínola e estivera recentemente em Lisboa para explicar a difícil situação que se vivia no território.

(Ver em: TT/AMC/Cx 33/Correspondência/Carlos Viana de Lemos/nº 3)


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