domingo, 9 de maio de 2021

 

APRESENTAÇÃO DA "GUERRA COLONIAL"


No dia 7 de maio de 2021, no âmbito da celebração da Literatura e da Língua Portuguesa, eu e o Carlos de Matos Gomes fizemos a apresentação, na Associação 25 de Abril, do nosso livro "Guerra Colonial, recentemente editado pela Porto Editora. A Profª Maria Paula Meneses fez uma apreciação da obra e lançou alguns desafios para o futuro no âmbito dos estudos que falta fazer.

Deixo aqui a minha intervenção, antes do debate que depois se seguiu.



Gostaria de, em nome dos autores, agradecer à Porto Editora por ter suportado este projeto, numa altura em que os projetos editoriais são arriscados. Sabíamos que já fazia falta.

Agradecemos também à A25A, no fundo a nossa segunda casa, por incluir este lançamento, ou melhor, esta apresentação do nosso livro no seu programa de celebração da literatura e da língua portuguesa.

Queremos manifestar a nossa gratidão e acentuar o privilégio que é para nós termos a Profª Maria Paula Meneses, moçambicana e académica distinta, para nos acompanhar nesta apresentação. Muito obrigado pela sua presença e pelo seu trabalho desenvolvido no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra sobre este e outros assuntos, normalmente relacionados com África e os novos países.

Muito obrigado, pois.

  

Gostaria de fazer um pouco de história sobre o livro que hoje apresentamos.

Em primeiro lugar, eu e o Carlos trabalhamos juntos há mais de 30 anos. Por volta de 1991 fui ter com ele ao Regimento de Lanceiros na Calçada da Ajuda e expliquei-lhe como gostaria de abordar a Guerra Colonial numa secção que o Prof. João Medina me tinha encarregado de organizar para a sua obra “História de Portugal”, que viria a ser publicada em 1993.

Propus então ao Carlos que juntássemos um texto meu, trazido com algumas alterações da “História Contemporânea de Portugal” também dirigida pelo Prof. João Medina e publicada em 1985, a um álbum fotográfico por ele comentado, dando-lhe uma estrutura abrangente, focando os vários aspetos da guerra que nos pareciam relevantes. Definidas, assim, as linhas essenciais, chamámos ao álbum “Imagens da guerra colonial”, mas não foi ele o autor, foi sim o Carlos Vale Ferraz. Só que nessas 38 páginas ficou em espera um projeto maior, já devidamente estruturado. A primeira série fotográfica devidamente comentada, como todas as outras, chama-se “Salazar, o regime e as Forças Armadas” e o último chama-se “Os rituais da vida e da morte – os mistérios”.

Em 1995, dois anos depois da “História de Portugal”, numa altura em que a questão da guerra colonial se discutia já com certa efervescência, na imprensa e nas televisões, com inúmeros debates, entrevistas e comentários (vem a propósito recordar que há muitos anos que se discute e se analisa a guerra colonial, contrariamente ao que ainda muitos pensam insistindo em que nada está feito!), como dizia, chegou-nos nessa altura uma proposta de um administrador do Diário de Notícias, amigo do Carlos, Alberto do Rosário, para escrevermos uma obra de fôlego sobre a guerra colonial, a publicar em fascículos distribuídos com o jornal.

Dedicámo-nos inteiramente ao projeto durante os dois anos seguintes e a publicação iniciou-se no dia 5 de outubro de 1997 e terminou um ano depois, com 52 fascículos semanais, com uma tiragem de cerca de 30.000 exemplares distribuídos gratuitamente com o jornal, às quintas-feiras. Centenas de leitores (antigos combatentes e da geração seguinte) colecionaram os fascículos e encadernaram a obra na capa respetiva fornecida pelo jornal.

Nessa época, a publicação excedeu as expectativas que todos tínhamos, chegando a influenciar a estatística de vendas do jornal.

Nesses dois anos visitámos todos os arquivos militares com grande assiduidade, consultámos camaradas e amigos, entrevistámos personalidades e combatentes, juntámos um conjunto de especialistas que se encarregaram de assuntos que não nos parecia possível podermos abranger em tão pouco tempo.

A organização dos temas para publicação em fascículos revestiu-se de características especiais em que a imagem desempenhou um papel essencial. Na altura não estavam disponíveis os milhares e milhares de imagens que hoje se encontram à disposição de todos em várias plataformas e redes sociais da internet. Recordo com admiração o diretor gráfico da obra, José Maria Ribeirinho, de quem nos tornámos amigos.

Lembro que logo em 2000, a Editorial Notícias, pela mão do nosso amigo Alexandre Manuel, publicou a obra num único volume, sem grandes alterações, que teve também larga difusão.

Passados poucos anos ambas as edições estavam esgotadas.

Nós nunca deixámos de pensar em publicar uma nova edição, revista e atualizada, mas os anos foram passando e ninguém se atreveu a deitar mãos à obra (literalmente falando…).

Até que em 2019 a Porto Editora deu o passo em frente para a publicação de uma edição atualizada. Foi assim que surgiu esta edição que hoje apresentamos.

Em que é que ela é nova?

Em primeiro lugar, a sua estrutura temática nada tem a ver com a edição original. Os assuntos estão organizados de forma ordenada, dos mais gerais para os mais particulares, dos mais antigos para os mais recentes, procurando sempre abranger um e o outro lado da guerra.

Em segundo lugar, são aprofundados assuntos que apenas eram aflorados na 1ª edição: a compreensão do sistema colonial e da responsabilidade de Salazar e do Estado Novo; a situação em 1961; o papel dos três Ramos das Forças Armadas; a evolução da capacidade política e militar dos movimentos de libertação; a manobra das populações; e finalmente, de forma inédita, a discussão sobre a guerra ganha/guerra perdida, com aprofundamento de uma visão para o interior do regime e do seu desmoronamento, assim como da aliança secreta Alcora, entre Portugal e a África do Sul.

 

Apresentadas estas considerações sobre a obra, que o Carlos completará conforme entender, gostaria ainda de salientar alguns outros pontos.

Em primeiro lugar gostaria de vos transmitir o nosso compromisso com a História. De forma simplificada, nós entendemos que a História se cumpre em várias fases.

Uma primeira fase de estudo (o que implica um imenso trabalho, de investigação, recolha de testemunhos, leituras, estabelecimento de cronologias, reconhecimento de protagonistas, etc., etc.).

Uma segunda fase, ou fase de reflexão, que nos leva à descoberta de relações, de antagonismos, de interesses, de estruturas, do ambiente político e social, do pensamento e das mentalidades, das leis e do direito, dos movimentos de rotura e suas resistências, dos conhecimentos e dos avanços da época e de tudo o que nos permite colocar-nos no tempo dos acontecimentos. É nesta fase que se situam, para nós, as análises, as explicações, os juízos, as conclusões sobre a História e sobre a sua época. Ou, numa palavra, a sua contextualização.

Finalmente, existe uma fase de intervenção. É a fase do nosso tempo, aquela em que conseguimos, ou não, aproveitar os ensinamentos que trazemos das visitas que fizemos ao passado. É a vida real, aquela que queremos e podemos alterar, como cidadãos interessados e intervenientes, como aproveitadores das lições da História.

Em síntese, podemos dizer que o passado não pode alterar-se, mas que ele pode servir para nos alertar e para influenciar o presente. Basta que sejamos capazes de nos servir das lições que com ele aprendemos. Basta que possamos transmitir o que trazemos, não apenas da nossa experiência, mas sobretudo das experiências que conhecemos do nosso estudo e da nossa reflexão sobre as épocas que nos precederam. Eu julgo que é esse o papel fundamental do historiador.

Contudo, deixo-vos ainda uma última palavra, que me parece indispensável. Nós somos todos diferentes. Por isso só a Liberdade, conquistada em 25 de Abril de 1974, conjugada com os valores democráticos e com a prática dos seus princípios, nos permite garantir a convivência, o reconhecimento do outro, o respeito pelos direitos, a conquista de avanços, a correção de rumos, a denúncia de excessos. Ou seja, só nós, como cidadãos conscientes e participantes, poderemos melhorar a vida comum, adotar os valores de uma sociedade avançada, defendermos, no nosso tempo, os princípios hoje consolidados das relações humanas e sociais, para garantirmos um futuro melhor para nós e para quem nos vai suceder.

No fundo, o que desejo dizer-vos é que a guerra, objeto deste nosso estudo, nos deve alertar para o perigo de se iniciar qualquer conflito armado, de admitir qualquer situação de domínio imposto, de justificar violências injustificáveis, de absolver abusos e prepotências, de aceitar sistemas e sociedades agressivas e discriminatórias.

Ou seja, o historiador razoável é o que tem a noção do seu papel, explica os contextos e a sua evolução, reflete sobre os conhecimentos que adquiriu, transmite o seu saber e intervém como cidadão informado, no seu tempo.

Podem crer que essa tem sido a motivação para esta segunda parte da minha vida, ligada à História, em companhia, quase sempre, do Carlos de Matos Gomes, meu companheiro neste esforço de alerta sobre a guerra e sobre a vida.