quinta-feira, 3 de novembro de 2016

O BATALHÃO DE INFANTARIA 10 NA GRANDE GUERRA



A parte 4 do texto sobre a presença na Flandres do Batalhão de Infantaria 10 de Bragança, leva-nos desde Janeiro de 1918 até às vésperas do 9 de Abril, batalha em que participou nas linhas da frente.

Parte 4:


Desenho das várias fases da reparação
de uma trincheira incluído
no relatório do BI 10, desenho
do major António José Teixeira, AHM.
Entretanto, nos primeiros dias de Janeiro o comandante do Batalhão, major Correia Soares, entrou de licença e foi substituído pelo major Guilherme Correia de Araújo. Será este que recebe a ordem de as rendições se passarem a fazer de quatro em quatro dias e não de seis em seis como era habitual. A medida, que causava bastantes transtornos pela frequência de mudanças nas trincheiras, justificava-se por parecer médico, “atendendo ao período de invernia que atravessamos e consequentemente ao maior esgotamento que as baixas temperaturas produzem”. De facto, os “clínicos” atribuíam à permanência nas trincheiras “as doenças dos olhos que agora intensamente se manifestavam, causadas pelas reverberações dos campos nevados e pela atenção que a sentinela necessitava ter, de dia e de noite, sobre a terra alva que dia a dia, hora a hora se disputava”.
Como resultava sempre uma clara desvantagem para o atacante em qualquer manobra assente no movimento de tropas, as frentes de combate mantiveram-se quase estáticas ao longo de um grande período, uma vez que as defesas estavam organizadas nas trincheiras e no uso intenso de fogos de metralhadora, morteiros e artilharia. Quando as tropas portuguesas ocuparam o seu sector ainda este impasse continuava e por isso se planeavam, por vezes, operações de bombardeamentos mais intensos, por forma a aliviar a pressão que o inimigo exercia sobre as trincheiras com ações de bombardeamentos dispersos, mas persistentes. Foi o que aconteceu em 18 de Janeiro, na frente da 5ª Brigada, onde se incluía o Batalhão de Infantaria 10. Nesta situação recomendava-se às tropas que, depois do bombardeamento e prevendo uma resposta do inimigo, deveriam fazer o seguinte:
Tendo a experiência demonstrado que há toda a vantagem em que as tropas que guarnecem a 1ª linha saiam para a terra-de-ninguém e se abriguem nas crateras de morteiros, logo que o inimigo faça um bombardeamento intenso (não só porque deste modo ficam fora da zona batida, mas também porque mais facilmente repelirão o inimigo que porventura tente fazer um ataque em seguida ao bombardeamento), recomenda-se a todos os graduados que assim devem proceder, cumprindo-lhes explicar às praças as vantagens da adoção desta medida.
O autor do relatório que estamos seguindo não nos esclarece contudo, se tal medida chegou alguma vez a ser seguida!
O mês de Fevereiro de 1918 passa-se em rendições sucessivas, ora nas primeiras linhas, ora em apoio, ora em reserva, sendo que em nenhumas das situações as tropas tinham qualquer verdadeiro descanso. Quando chega o mês de Março, as atenções voltam-se para o Somme, onde vai desenrolar-se a grande ofensiva alemã, ação que “faz retirar da nossa retaguarda muita artilharia inglesa, que defendia estas paragens”.
As tropas portuguesas estão numa altura crucial. A atividade militar vai intensificar-se na frente ocidental, como consequência da decisão alemã de encontrar sem demora uma saída definitiva para o impasse das trincheiras. Mas é exatamente por esta altura que as tropas portuguesas, sem o apoio que seria normal por parte dos responsáveis, se encontram num período de terrível depauperação física e moral. Sigamos o relato:
É extrema a miséria física em que se encontram os nossos soldados; não há grandes nem pequenos descansos, não há licenças, nem reforços; morre-se e não se é rendido… De Portugal nada chega!
Entre os soldados lavra um intenso descontentamento. Esta vida na Village Line é mais martirizante que a das trincheiras. Dizia-se que isto era um repouso!...
Meses de trincheiras, sem descanso, sob o terrível e inclemente Inverno, e morrendo-se por conta-gotas!... (…)
As intoxicações sucedem-se. Os comandantes de Companhia mantêm as suas unidades, reduzidas dia a dia!... Os seus soldados parecem uma legião de proscritos, miseravelmente abandonados pela Pátria…
Eles ali estão pálidos, exaustos pela falta de descanso durante o dia e de tranquilidade durante a noite; os pulmões envenenados pelos gases, sem esperança de serem rendidos e sem apoio moral das instâncias superiores.
Raro é o dia em que não surge mais um com os pulmões corroídos pelos malditos gases!
Neste terrível mês de Março a situação era de tal forma preocupante, que o alferes Abel Estima, que comandava a 4ª Companhia, informava o comando do Batalhão do seguinte:
Após o bombardeamento de gás desta manhã, que durou seis horas consecutivas, em que todos mais ou menos apanhámos gás, a minha Companhia ficou reduzida ao seguinte (…): 1º pelotão, 15 soldados e um 1º sargento; 2º pelotão, 21 soldados e dois sargentos; 3º pelotão, 22 soldados e três sargentos. Destes, uma grande parte piora de tarde, e amanhã, naturalmente, não se aguentam.
Como hei de constituir as forças que hão de ficar?
E se amanhã, como é provável, tudo tiver piorado?
Quem são os oficiais que ficam?
O comando de Companhia retira?
Aguardo instruções de V.Exª.
Estas as terríveis perguntas que os comandos subordinados faziam, e a que os comandos superiores não sabiam responder. Por isso, o major António José Teixeira, que escreve este relatório depois da guerra, esclarece: “Estava escrito que jamais chegaria o decantado roulement, e que o C.E.P. era coisa para se gastar!...”.
Entretanto, a situação conheceu um novo rumo.
Gomes da Costa, que assumira o comando da 2ª Divisão em 20 de Março, visita as unidades dos vários sectores e refere o aumento de atividade do inimigo, mostrando “claramente a possibilidade de uma ofensiva, atendendo aos movimentos observados na zona de retaguarda do inimigo, à atividade da aeroplanagem e aos repetidos reconhecimentos de patrulhas”.
O comandante da 2ª Divisão não deixa de acentuar o estado das tropas e a necessidade urgente da sua completa substituição. Lembra que a Divisão Portuguesa em primeira linha tinha conhecido, no período de Dezembro a Abril, três Divisões diferentes à direita e quatro à sua esquerda, rendidas sucessivamente. E acrescentava:
Com um cansaço impossível de descrever; com o moral esmagado pelo espírito de sacrifício, verdadeiramente aniquilado pela tristeza que causava o saber-se que oficiais que tenham partido de licença haviam ficado anichados na Guarda Republicana, nos corpos pretorianos ou nas comissões de serviço!...
Mas que condições!
Embora a 5ª Brigada fosse a que menos dias tinha de primeiras linhas (cerca de três meses), uma vez que fora a última a assumir a responsabilidade de um sector, a verdade é que esse tempo coincidira com o Inverno rigoroso, o que depauperara os homens até um extremo limite.
Sabendo-se das intenções do inimigo, que estaria a preparar um ataque de grandes dimensões, o comando inglês fez algumas alterações significativas. Em primeiro lugar, manteve na frente apenas a 2ª Divisão, que passou ao comando do XI Corpo inglês, general Haking (1), deixando o C.E.P. de ter responsabilidade operacional a partir de 6 de Abril; em segundo lugar planeou a rendição da 2ª Divisão, primeiramente para o próprio dia 6 de Abril e depois para os dias 9 a 11 de Abril. Entretanto, a 2ª Divisão ocupou as primeiras linhas, com as 5ª, 6ª e 4ª Brigadas respetivamente nos sectores de Ferme du Bois, Neuve Chapelle e Fauquissart. O BI 10, pertencendo à 5ª Brigada, ocupou o subsector mais à direita de Ferme du Bois, ficando em contacto com o Batalhão mais à esquerda da 55ª Divisão britânica.
Prevendo-se a aproximação de uma situação muito difícil, de que já ninguém tinha dúvidas, o general Costa Gomes faz ainda um último alerta:
O C.E.P. tem tido a seu cargo um sector, para o qual dispunha de seis Brigadas, sabendo todos quanto, devido à escassez de efetivos, à falta de quadros e ainda, ultimamente, devido a uma certa fadiga e depressão moral, esta defesa se estava tornando precária.
Acabando de receber ordem para guarnecer o mesmo sector, apenas com quatro Brigadas, de efetivos depauperados, e com falta de 139 oficiais e de 5792 praças, acato a ordem recebida, mas não posso deixar de declinar toda a responsabilidade do que venha a acontecer.
O major António José Teixeira dá-nos conta da situação que se vivia:
A desmoralização que havia atingido outras unidades tinha crescido pavorosamente. Infantaria 7 havia-se revoltado, recusando-se firmemente a entrar nas linhas, justamente no dia 4 de Abril.
Foi esta revolta que provocou a retirada da frente da 2ª Brigada e obrigou toda a 5ª BI a fazer uma rendição precipitada e sem um metódico reconhecimento do novo sector que lhe destinavam.
Esperava-se, e era lógico, que o Batalhão do 10 fosse transportado em camiões até L’Epinett, dada a urgência, porque tinha de realizar a ocupação, e ainda mais lógico pareceu o facto, quando se soube que as forças que ocupavam o sector de Ferme du Bois retiravam em camiões.
Mas Infantaria 10 estava condenada a fazer (a pé) este terrível percurso, através dessas estradas lamacentas, encharcadas, e por uma noite escuríssima (…)
Houve grande descontentamento entre as praças. Houve mesmo ligeiros episódios que esboçaram evidentemente, talvez pela primeira vez, má vontade com que executavam uma ordem dimanada dos seus superiores. Mas a energia dos oficiais, a decidida boa vontade e o prestígio de muitos, (…) fizeram com que nesta unidade não se acentuasse o mais pequeno gesto de repulsa por uma ordem que a todos deixava visivelmente contrariados, por lhes parecer pesada e pelas circunstâncias de que se estava rodeando o moral de todos.
E remata assim o relator:
Depois duma marcha fatigante e penosa, deu entrada o Batalhão nas linhas, às cinco horas, podendo ouvir o capitão Luís Emílio Ramires (2) da boca de um seu camarada que ia ser rendido, uma frase que denotava a disciplina, a ordem e o espírito de sacrifício do soldado do Nordeste de Trás-os-Montes:
- Muito bons soldados têm vocês!...
Nada aliviava o sofrimento dos soldados portugueses. Todas as condições pareciam conjugar-se para tornar cada vez mais difícil a sua participação neste longínquo e excessivo esforço de conter os planos alemães.

……
1 Richard Haking (1862-1945), general britânico, comandante do XI Corpo de Exército na Grande Guerra. Em 1914 comandou a 5ª Brigada de Infantaria na Batalha de Mons, e a 1ª Divisão na Batalha de Aubers Ridge ou Batalha de Fromelles. A partir de Setembro de 1915 passou a comandar o XI Corpo, comando que manteve até ao final da Guerra. Nunca ficou completamente esclarecido o plano de rendição da 2ª Divisão Portuguesa, exatamente para 9 de Abril, dia da ofensiva alemã (operação Georgette).
2 Luís Emílio Ramires (1882-1961), coronel, nasceu no Porto. Fez parte do C.E.P., embarcando em Lisboa a 7 de Agosto de 1917. Tomou parte na Batalha de La Lys, sendo feito prisioneiro. Regressou a Portugal em Fevereiro de 1919. Em 1932 comandou o Batalhão de Metralhadoras 2.

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