segunda-feira, 14 de novembro de 2016

INDEPENDÊNCIAS, ALGUMAS QUESTÕES DO PERÍODO DE TRANSIÇÃO



A 2ª parte do texto sobre as independências aborda as perplexidades e as certezas dos membros do MFA presentes nos territórios coloniais depois do 25 de Abril, em especial em Moçambique, onde integrei o Gabinete do MFA junto do comandante-chefe.


Parte 2

O Acordo de Lusaca foi negociado entre
Portugal e a FRELIMO, visando o período
 de transição e as condições de transferência
da soberania.
Perplexidades
Eis então as suas perplexidades:
Primeiro, o Programa do MFA.
O documento de Cascais, aprovado em 5 de Março de 1974 e do qual tínhamos conhecimento, dizia o seguinte:
“Uma solução política que salvaguarde a honra e dignidade nacionais, bem como todos os interesses legítimos de portugueses instalados em África, mas que tenha em conta a realidade incontroversa e irreversível da funda aspiração dos povos africanos a se governarem por si próprios - o que implica necessariamente fórmulas políticas, jurídicas e diplomáticas extremamente flexíveis e dinâmicas. Esta situação tem de ser encarada com realismo e coragem, pois pensamos que ela corresponde não só aos verdadeiros interesses do Povo Português como ao seu autêntico destino histórico e aos seus mais altos ideais de justiça e de paz”.

Mas o Programa do MFA diminuía este alcance, ao excluir a alínea de que atrás falei.

Segundo, a declaração da Junta de Salvação Nacional.
Logo no dia 26 de Abril, a JSN, faz uma proclamação através do general António de Spínola, seu presidente, dizendo:

“Em obediência ao mandato que acaba de lhe ser confiado pelas Forças Armadas, após o triunfo do Movimento em boa hora levado a cabo … a Junta de Salvação Nacional (…) assume perante o mesmo o compromisso de:
- Garantir a sobrevivência da Nação, como Pátria Soberana no seu todo pluricontinental;
(…)

Terceiro, os discursos de Costa Gomes na sua visita a Angola e Moçambique.
Disse o general Costa Gomes, em Nampula, logo nos primeiros dias de Maio:
“…pode parecer (…) que exigimos a esses ‘partidos armados’ que aceitem o estatuto de vencidos, e que exigimos a eles uma atitude diferente da nossa.
É neste ponto que conviria definir claramente que não lhe pedimos uma rendição militar mas sim que esperamos deles uma atitude sincera idêntica à nossa.
A disposição fraterna de colocar as armas nas arrecadações para criar um clima de paz e tranquilidade que permita ao martirizado povo de Moçambique discutir livremente o seu destino e decidir nas urnas em eleições autênticas o esquema político em que deseja viver.
(…)
É infelizmente de considerar a hipótese, que todos lamentaríamos, de que tais partidos não acreditem na nossa límpida sinceridade ou tenham compromissos a cumprir para com terceiros e se disponham a continuar a luta.
(…)
Nesta hipótese a nossa posição de militares será simples de definir.
Lutaremos com uma missão mais bela e enobrecida; tornar-se-ia meridianamente claro que continuaríamos em armas a defender um povo irmão agredido no sagrado direito de decidir em paz os seus próprios destinos.
…”.

Estas posições, como causa das perplexidades dos capitães, conduziram a algumas dúvidas, que podiam sobrepor-se às certezas anteriores.

Certezas
Vejamos, pois.
Os capitães tinham algumas convicções muito claras, e a questão da guerra e da sua solução urgente não merecia qualquer dúvida.
Mas eles tinham outras certezas.
Em primeiro lugar, as posições dos movimentos de libertação.
Por exemplo, logo a seguir ao 25 de Abril, a Declaração do Comité Executivo da FRELIMO sobre os “Acontecimentos em Portugal” dizia, entre outros pontos:

“Cabe ao governo português tirar completamente as lições das experiências passadas e compreender bem que só pelo reconhecimento do direito do povo moçambicano dirigido pela FRELIMO, seu autêntico e legítimo representante, à independência, se poderá pôr termo à guerra colonial. Qualquer tentativa de iludir o problema real só terá como consequência causar novos e inúteis sacrifícios. A via para a solução do problema é clara: reconhecer o direito do povo moçambicano à independência”.

Outra certeza para os capitães resultava da posição dos soldados portugueses.
Desde muito cedo, os militares portugueses manifestaram a sua inquietação perante o rumo que os acontecimentos tomavam e a falta de iniciativa das autoridades portuguesas para darem início às conversações com os movimentos de libertação.
Entre outros, dou aqui um exemplo das justificações apresentadas num dos documentos coletivos assinados por mais de uma centena de militares da guarnição de Tete e dirigido ao “Excelentíssimo Senhor Presidente do Conselho de Ministros do Governo Provisório”:

“Conscientes de que somos, neste momento de grande elevação nacional, intérpretes dos justos anseios do povo português, do qual nos consideramos parte inalienável, vimos expor a V.Exª. Senhor Presidente, o seguinte:
1.     Se com alegria acompanhamos os acontecimentos que em Portugal puseram fim à ditadura fascista opressora dos legítimos interesses e direitos do povo português, não podemos, por outro lado, deixar de manifestar a nossa grande preocupação pelos factos que continuamos a viver, dia a dia mais graves, dia a dia mais incoerentes com o novo espírito que se respira na Nação Portuguesa.
2.     Continuando a matar e a morrer numa guerra injusta, provocadora de irrecuperáveis suicídios morais e humanos; reconhecendo que um povo só é livre quando não oprime outros povos; verificando, pelo conhecimento concreto da realidade, ser a Frelimo o único e indiscutível representante do Povo de Moçambique:
Pugnamos:
- PELO IMEDIATO RECONHECIMENTO DO DIREITO À INDEPENDÊNCIA DO POVO MOÇAMBICANO.
- PELO FIM DA GUERRA.”

Terceiro, os capitães tinham também a certeza sobre a realidade da guerra.
O evoluir da guerra, dessa guerra que já não fazia sentido, acrescentava as preocupações e as perplexidades dos capitães.
Por exemplo, uma nota-circular do QG da RMM, referindo-se ao balanço do mês de Maio, dizia o seguinte:

“1. Tem-se constatado que a atividade In [Inimigo] a partir de 25ABR74 sofreu um incremento considerável, resultado de determinações insistentemente difundidas pelos órgãos superiores da FRELIMO, muito especialmente após aquela data.
Resumidamente a situação pode esquematizar-se:

TOTAL DAS ACÇÕES IN
1974
Em relação a Janeiro
Mês


JANEIRO
315
---
FEVEREIRO
293
- 7%
MARÇO
558
+ 14%
ABRIL
443
+ 41%
MAIO
462
+ 47%

2.…”

Em suma, a posição dos militares do MFA não foi fácil. Mas quase todos entendiam que a guerra devia acabar, e que o cessar-fogo só seria possível com a abertura de negociações com os movimentos de libertação. Foi nesse objetivo que muito se empenharam até à sua concretização, em prazos muito curtos. Foi isso o que fizemos e foi isso o que quisemos fazer.

Final
Para terminar, gostaria de deixar-vos um conjunto de interrogações que continuam a merecer várias respostas e que nos alertam para assuntos a que é necessário regressar.
Aqui vão elas:
Será que o MFA é uma estratégia das Forças Armadas para se libertarem da guerra, que sentiam perdida, ou o MFA é uma entidade autónoma em relação às Forças Armadas, com um fim contrário ao pensamento destas?
Porque é que o Programa do MFA, que deu consistência política à intervenção dos militares em 25 de Abril, mal desenhou uma solução para a guerra, quando era essa a principal questão a resolver pelo movimento dos capitães, depois da tomada do poder?
Como é que os núcleos do MFA nas colónias em guerra conciliaram o movimento de democracia urgente, com a continuação das operações militares?
Porque é que a situação militar em cada território, considerada em grau de gravidade militar (por esta ordem – Guiné, Moçambique, Angola), parece adaptar-se à consistência das posições do MFA e do seu papel no primeiro período do pós-25 de Abril?
Porque é que, em certos meios (que são ainda hoje inusitadamente representativos), continua muito justificada a responsabilidade do desencadeamento pelo regime anterior de uma guerra em três frentes, abrangendo os territórios de Angola, Guiné e Moçambique, e continuam os capitães acusados de interferirem no processo e darem origem aos dramas do período de transferência de soberania?
Aliás, porque é que continuamos a chamar “Descolonização” apenas ao período pós-25 de Abril, quando o processo, e respetivas responsabilidades, se estendem do pós-II Guerra Mundial até às independências?
Porque é que subsistiram e continuam ainda a emergir dúvidas sobre a responsabilidade primeira das situações dramáticas dos processos de transferência de soberania, quando ao MFA não restou mais que dar cumprimento às resoluções da ONU e ao pensamento comum da comunidade internacional, num prazo muito curto e em circunstâncias muito complexas?
Existem outras perguntas que me inquietam, mas acho que estas são suficientes para terminar a minha apresentação neste colóquio.
Por fim, acho que devemos congratular-nos por iniciativas como esta, que contribuem para o conhecimento deste tempo importante para todos nós.



Sem comentários:

Enviar um comentário