sexta-feira, 4 de novembro de 2016

O BATALHÃO DE INFANTARIA 10 NA GRANDE GUERRA



A quinta e última parte do texto sobre o Batalhão de Caçadores 10 de Bragança e a sua participação na Grande Guerra leva-nos das vésperas do 9 de Abril até ao regresso a Portugal. É um percurso árduo, violento e triste.
Chegado aqui, atrevo-me a sugerir à Câmara Municipal de Bragança (onde não conheço ninguém) a publicação do Relatório do major António José Teixeira, devidamente transcrito, anotado e comentado. Seria uma bela homenagem aos soldados do Nordeste Transmontano que participaram na Grande Guerra.


Parte 5:
Desenho de um gerador de fumos alemão
 incluído no relatório do BI 10,
 desenho do major António José Teixeira, AHM
As palavras do comandante-chefe das forças germânicas, general Paul von Hindenburg, escritas mais tarde nas suas memórias (Out of My Life, London, 1920, p. 352) dão-nos conta das condições propícias que até a meteorologia proporcionou:
No Inverno, a área do vale do rio Lys ficava inundada numa larga extensão, e na Primavera, não passava muitas vezes de um pântano, por semanas a fio - um verdadeiro horror para as tropas que estavam nas trincheiras nesta altura (…).
Era perfeitamente inaceitável pensar na realização de um ataque antes do vale do Lys se tornar transponível. Em circunstâncias normais de clima, só poderíamos esperar que o solo ficasse suficientemente seco, em meados de Abril.
Mas pensei que não seria possível esperar até essa altura para começar o combate decisivo no Ocidente. Tivemos de contar com as perspetivas de intervenção americana.
Não obstante estas objeções ao ataque, tínhamos o plano detalhado, pelo menos teoricamente (…).
Esta hipótese estava assente nos finais de Março. Logo que vimos que o nosso ataque a Ocidente era inevitável, decidimos iniciar as nossas operações na frente do Lys.
Uma pergunta dirigida ao Grupo de Exércitos do Príncipe Herdeiro Rupprecht, trouxe a resposta de que, graças à Primavera seca, o ataque em todo o vale do Lys se tornara viável (…).
Em 9 de Abril, aniversário da grande crise em Arras, as nossas tropas passaram das suas lamacentas trincheiras na frente do Lys para a frente de Armentières a La Bassée.

Entretanto, do lado aliado, já ninguém tinha dúvidas da iminente ofensiva alemã. Contudo, as tropas portuguesas, exaustas pelas condições que temos observado, iam ainda ser submetidas a mais um período de intensos trabalhos, logo que entraram nas linhas. De facto, e segundo o relato que seguimos:
As linhas de Ferme du Bois encontravam-se num estado desgraçado, arrasadas, lamacentas, com as passadiças desfeitas em muitos sítios; os nossos pobres soldados, enterrados no lodo, andavam às apalpadelas, com os postos muito diluídos em relação ao efetivo – era verdadeiramente pavorosa a situação!
Por seu lado, o general Haking, comandante do XI Corpo visita a Divisão Portuguesa no dia 6 de Abril e promete recompletar os efetivos, “declarando a todos que conhecia bem o estado da Divisão que pertencia ao seu Comando”.
No dia seguinte, 7 de Abril, a artilharia aliada desencadeia um largo bombardeamento “a fim de serem batidas todas as comunicações do inimigo, o que estava de harmonia com o desejo de todos, visto os boletins de informações virem acusando um desusado movimento nos arraiais adversos, chegando-se a observar a descarga de 40 ou mais camiões com munições. Preparava-se algum grande acontecimento”.
Mas ainda antes do dia fatal, nova surpresa estava reservada à tropa portuguesa! De facto, como o major António José Teixeira esclarece:
Foi grande a surpresa de todos, quando em 8 a 5ª Brigada recebeu ordem de rendição, devendo o seu comandante combinar, nessa noite, com o comandante duma Brigada da Divisão 55ª, os trabalhos da rendição para o dia seguinte.
A 5ª Brigada estava depauperadíssima, os seus efetivos eram de 104 oficiais e 2949 praças, faltando-lhe, portanto, 64 oficiais e 1543 praças, números muito afastados do efetivo.
Parecia que tudo se conjugava, mercê de uma série de circunstâncias que concentram responsabilidades políticas e militares, de comando e de planeamento, operacionais e pessoais, para que a Divisão Portuguesa tivesse que morrer nas linhas, independentemente da sua condição militar ou das suas capacidades de resistência!
No nosso relato ficou o desabafo do último comandante do BI 10:
Pela noite de 8 tinha-se pois recebido a informação de que Infantaria 10 seria rendida em 9, e é nesta confusão e com as malas preparadas para se sair do sector, que rebentam as primeiras granadas de 38 cm de calibre, a anunciar a grande ofensiva sobre o front português, a dar início à grande batalha do Lys!
Das memórias de Douglas Haig, comandante dos Exércitos britânicos, retiram-se algumas justificações para o desastre que se abateu sobre as tropas portuguesas, mas não ficam claras quaisquer responsabilidades sobre os erros que evidentemente conduziram à situação.
O comandante-chefe justifica assim a ofensiva alemã:  
A preparação do inimigo para uma ofensiva neste sector central tinha sido concluída há algum tempo. O admirável e extenso sistema ferroviário tornou possível, com grande rapidez, a concentração de tropas necessárias para um ataque. As minhas forças neste sector não poderiam ser grandemente reduzidas.
Em consequência destes vários fatores, a maior parte das divisões na linha de frente, e em particular a 40ª, 34ª, 25ª, 19ª e 9ª Divisões, as quais em 9 de Abril estavam na frente, entre o sector Português e o Canal Ypres-Comines, já tinham tomado parte na batalha do Sul. Deve considerar-se que, antes da batalha do norte se iniciar, quarenta e seis das minhas cinquenta e oito divisões, tinham estado empenhadas no sul.
No final de Março, no entanto, a parte norte da frente secou rapidamente sob a influência de uma Primavera muito quente, ficando em condições de sofrer um ataque mais cedo do que seria de esperar. Preparativos para apoiar a Divisão Portuguesa, que tinha estado continuamente em linha por um longo período e precisava descansar, foram feitos durante a primeira semana de Abril, e deveriam ter sido concluídos até à manhã do dia 10 de Abril. Entretanto, outras divisões, que tinham sido empenhadas na luta no Somme e que tinham sido retiradas para descansar e se reorganizarem, foram transferidas para a frente do Lys. (…)
A persistência do bom tempo fora da estação e a secagem rápida do vale do Lys permitiu ao inimigo antecipar o ataque à 2ª Divisão Portuguesa.
Na noite de 9 de Abril, um invulgar bombardeamento pesado e prolongado, também com gás, foi iniciado ao longo de praticamente toda a frente de Armantières a Lens, cerca das 4,0 horas, do dia 9 de Abril. 


Por seu lado, no seu relatório, o último comandante do BI 10 inicia deste modo a descrição da batalha:
A ofensiva de 9 de Abril, no velho campo de batalha de Messines teve lugar entre o canal de La Bassée e Bois Grenier, numa extensão aproximada de 18 quilómetros, sendo mais de 10,5 confiados à guarda dos nossos Lusos, entre Bond Street ao Norte e a Schetland ao Sul, ocupando o Batalhão de Infantaria 10 a frente compreendida entre a Schetland ao Sul e a trincheira Cokspur ao Norte, numa extensão de cerca de 2000 metros.
E quanto ao duelo principal que se travou no início da ofensiva, a desproporção não podia ser maior:
Calculava-se que as oito Divisões que se empenhavam na batalha deveriam ter a auxiliar-lhes a ação 1500 canhões. Nós tínhamos 76 peças de campanha e 16 obuses, com uma escassa artilharia pesada dos ingleses!
O major António José Teixeira descreve em seguida todo o dispositivo das unidades e postos da noite de 8 para 9 de Abril, mencionando o nome de todos os responsáveis, oficiais e sargentos, que se encontravam nas várias linhas e no comando. O Batalhão era comandado pelo major Guilherme Correia de Araújo.
Segue-se, ao longo de muitas páginas, a descrição da Batalha e da evolução da situação durante a noite e manhã do dia 9 de Abril, acabando com a descrição pormenorizada de todas as companhias e dos seus feitos, começando pela 3ª Companhia, colocada na direita do sector, em contacto lateral com a primeira unidade da 55ª Divisão inglesa, passando pela 1ª Companhia, à esquerda, pela 4ª Companhia, em apoio, e terminando na 2ª Companhia, em reserva.
Finalmente, o major António José Teixeira finaliza o seu relatório com uma homenagem a todos os que se bateram e sacrificaram nas condições que ficaram bem claras na sua memória escrita:
O discurso do general britânico Haking, sintetizado na frase para sempre histórica ‘A Divisão portuguesa tem de morrer na B line’ foi bem interpretada pelo heroico Batalhão de Infantaria 10, que, se não morreu totalmente nessa linha, é porque isso não estava escrito no livro do Destino, pois, a coragem e a abnegação, o arrojo e o génio, o heroísmo e o sacrifício dos seus valentes soldados revelaram-se em atos que ninguém pode descrever, mas que se traduzem na pálida e descolorida narração que aqui fica, a que devemos juntar a ideia duma superioridade numérica esmagadora, que chegava em sucessivas avalanches; o envolvimento perfeito e ainda a ação deprimente dum bombardeamento jamais presenciado pelas topas da Grande Guerra…
É assim que se luta e é assim que se morre, vivendo sempre para a Pátria e para a Imortalidade.

E nós, colocados na circunstância de lembrarmos os nossos soldados da Grande Guerra, que nos transmitiram uma lição de vida e de apego aos valores que nos unem, deixamos aqui uma profunda homenagem e declaramos que o seu sacrifício não pode ter sido em vão!
Terminada a batalha, outra tragédia se inicia para os militares portugueses. Naqueles dois dias foram feitos prisioneiros mais de 6500 militares portugueses, 270 oficiais e 6315 sargentos e praças, como rezam as estatísticas. O BI 10 teve 21 oficiais e mais de 300 sargentos e praças prisioneiros de guerra.
Como o major António José Teixeira também foi feito prisioneiro, o seu relato transmite-nos um profundo conhecimento das circunstâncias e dos trabalhos por que passaram os militares portugueses até ao fim da guerra, num texto denso e muito sentido. No final da guerra foram entregues pela Alemanha a Portugal 269 oficiais, 362 sargentos, 689 cabos e 5447 soldados, num total de 6767 militares. Faleceram nos campos alemães 5 oficiais, 13 sargentos e 215 cabos e soldados. Os oficiais portugueses acabaram por chegar ao campo de Breesen, mas as praças foram espalhadas por diversos campos, em muitos dos quais poucos apoios conseguiram ter, ou foram aproveitadas para trabalhos em vários lugares e mesmo próximo da frente. Foi nesta situação que vieram a saber da assinatura do armistício e da cláusula que obrigava a Alemanha a proceder, no prazo de 30 dias, à “evacuação de todos os seus prisioneiros de guerra”.
A alma de cada um vibrava intensamente de alegria, não só por ver alfim tombar o despótico poder kaizeriano, mas também por todos irem em breve contemplar o sol doirado da Liberdade que tanto ambicionavam, e ainda por se pensar que também em breve se pisaria o solo abençoado da Pátria.
E assim termina a história do BI 10 de Bragança elaborada pelo seu último comandante, major António José Teixeira, não sem que ele nos deixe como mensagem final alguns versos de Camões, findando:
Podeis vos embarcar, que tendes vento
E mar tranquilo, para a Pátria amada (Estância 143 do Canto X dos Lusíadas).
Como anexos, encontramos ainda os seguintes quadros, que completam o relatório apresentado:
·        Relações dos oficiais mortos
·        Relação das praças mortas
·        Relação de praças desaparecidas
·        Relação dos militares condecorados com a cruz de guerra
·        Relação de oficiais, sargentos e soldados louvados
·        Relação dos oficiais prisioneiros de 9 de Abril
·        Quadro dos oficiais que fizeram parte dos efetivos do BI 10 na Grande Guerra
·        Quadro dos sargentos que fizeram parte dos efetivos do BI 10 na Grande Guerra
·        Relação do pessoal (sargentos músicos) que fazia parte da banda de música que destacou com o Batalhão para a Flandres
·        Relação dos sargentos artífices que faziam parte do Batalhão.

Ao acompanharmos estas páginas de sofrimento, sacrifício, valentia e desastre, temos todos mais uma oportunidade de nos questionar, não apenas sobre a Grande Guerra em especial, mas naturalmente sobre todas as guerras (sobre as guerras que querem pôr fim a todas as guerras e sobre as guerras que previnem outras guerras); também sobre Portugal e sobre a Europa; ou sobre o Mundo e a mundialização.

Para que não seja em vão o conhecermos o cortejo de dramas que a ela estão inevitavelmente associados. Para que nunca deixemos de ter presente a interrogação decisiva e permanente, perante qualquer toque das trombetas de guerra.


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