quinta-feira, 24 de novembro de 2016

CHAVES E A REPÚBLICA





Na terceira parte da conferência “Chaves e a República”, faço um passeio pela História, uma reflexão entre a República e o papel dos historiadores… Nestas conferências há sempre a tentação de aproveitar a ocasião para falar de temas que nos são caros, difíceis de abordar noutras circunstâncias.

  
Parte 3

Litografia de Cândido da Silva (?) alusiva
à revolução republicana de Outubro de 1910. 
Passemos então a outro assunto sobre o qual gostaria de reflectir, no âmbito do centenário da República que aqui também evocamos.

As questões principais do novo regime português são conhecidas. A posição de Portugal no Mundo não se alterou substancialmente com a implantação do regime republicano. O essencial manteve-se, e tinha a ver com a ligação à política da Inglaterra, o equilíbrio das relações com Espanha (que a República agravou) e a defesa do império colonial. Especificamente, como problema novo e inerente ao regime republicano, deve considerar-se a necessidade de ver a nova situação reconhecida pela comunidade internacional.

Internamente são vários os desafios das novas autoridades – a consolidação interna das novas instituições, o apoio do Exército ao regime, a resolução das relações com a Igreja e a difusão do ideal republicano no seio de uma sociedade estruturalmente atrasada.

Não faltavam desafios às novas autoridades republicanas!

Visitemos então esses tempos, como amantes da História, apaixonados pela investigação do tempo dos nossos avós, interessados em colher lições, em compreender atitudes, em reconhecer a memória que nos foi legada.

Não vamos falar de correntes e teorias da História. Quando analisamos uma época histórica nem sempre seguimos teorias. Por vezes seguimos uma ideia, a nossa ideia. Essa ideia pode ligar-se à nossa vivência pessoal. Podemos ser, por exemplo, construtores de pontes, de diálogos, de reconhecimentos, de aproximações. Não desejamos acentuar rupturas – queremos acalmar os ressentimentos, atenuar os mal-entendidos, desvalorizar as mágoas.

As incursões monárquicas destes difíceis anos de 1911 e 1912 puseram em causa as relações de vizinhança entre os dois países ibéricos – Portugal e Espanha. Mas se nos servirmos deste infeliz episódio das nossas relações para chegarmos ao sentido actual da nossa história comum, temos de o reduzir àquilo que ele foi na prática, como acontecimento, não o encarando nem na sua dimensão mítica, nem como sinal de qualquer utopia.

Por outro lado, é sempre necessário retomar o estudo da História, porque só assim ela se mantém viva. Uma comunidade científica e académica atenta regressa sempre a velhos debates, para além, evidentemente, de nos lançar novos desafios. Mas as condições de cada época propiciam a reabertura de discussões e polémicas que pareciam adormecidas. Esta questão que aqui estou lembrando faz parte daquelas pendências recorrentes. Portugal e Espanha merecem que possamos sempre reabrir, nas circunstâncias de cada época, as nossas permanentes pendências.

Partir de um facto, entre muitos outros, é um privilégio do historiador. Na linha da História, ele coloca-se num momento e num lugar e, partindo de ali, observa o passado e pronuncia-se sobre o futuro. Outro privilégio é que ele conhece o futuro. Podemos escolher as incursões monárquicas. No centenário da República que também aqui comemoramos, não deve surpreender-nos esta escolha. Um momento delicado das relações peninsulares, uma questão longamente debatida, uma lembrança porventura embaraçosa. Mas ainda assim, não nos pertencerá a palavra final. Em História, ninguém tem a palavra final. Também por isso, a História não morre.

A verdade é que, depois de tantas teorias que encaixilharam a História, estamos, na presente época, de regresso à narrativa. Aos factos. Às personagens. Neste caso, às incursões monárquicas em Portugal a partir da Galiza em 1911 e 1912 e ao mundo complexo que rodeia os protagonistas.

Devemos confrontar os intervenientes, pesar as suas ideias e actos, analisar os respectivos envolvimentos. Explorar, do ponto de vista histórico, os acontecimentos, as suas razões e os respectivos resultados. Passear pelos campos de batalha (Vinhais e Chaves), pelos teatros de operações (Galiza e Trás-os-Montes) e pelas respectivas retaguardas (Lisboa e Madrid, e mesmo Londres – a propósito, não será Londres um dos eixos fundamentais para deslindar o enredo desses pesados meses?). Este passeio abre-nos caminhos de reconhecimento para múltiplas observações, e para uma apreciação dos factos. A prudência do historiador obriga-o a dar expressão às hesitações que descobre nos actores, às dúbias interpretações que cada um faz do seu próprio envolvimento, às dificuldades que os homens do terreno e mesmo das chancelarias têm em conhecer as linhas gerais da grande política.

Bem vistas as coisas, as incursões são um pretexto para todas as partes. Pode ter sido fabricado ou simplesmente aproveitado. O que está subjacente ao episódio militar, é uma enorme operação de propaganda (numa expressão de uso mais tardio) de ambas as partes. A exaltação do ideal monárquico através da acção, e a glorificação das novas instituições republicanas através da vitória sobre a ameaça à integridade da nação.

Há quem defenda que a História é a história dos vitoriosos. A República (todos os sistemas, todos os regimes, todos nós?) precisava de vitórias. Conquistara com um golpe desarticulado (um golpe de sorte?) o poder. Herdara um país, mas era imperioso criar um estado, desejava edificar um regime, queria consolidar um partido, precisava de um exército. Estado-regime-partido-exército: eis o percurso da República. O Exército só o construiu a partir de Chaves. Um exército só se solidifica com a materialização de “ameaças”. Os combates de Vinhais e de Chaves concretizavam as ameaças – o regresso dos monárquicos e o perigo da intervenção de Espanha. Para o Partido Republicano as circunstâncias caíam-lhe do céu. Podemos nós questionar o aproveitamento que delas fez? Resta-nos apenas analisar os acontecimentos e (só cada um o decidirá) tirar deles paralelismos para outras circunstâncias e para outros cenários, de outros passados ou mesmo de diferentes presentes.

Tenho a ideia que, como historiadores, devemos ser pesquisadores de realidades, analistas de factos, investigadores de provas. Dando a devida importância à dimensão do mito, do processo ideológico, à construção da identidade, às utopias persistentes. Vinhais e Chaves são, para além de factos locais com repercussão internacional, emergências de uma nova mitologia republicana, feita evidentemente de heroísmos, de vibração popular e de afirmação de novos porvires. A habilidade dos republicanos foi a de explorarem os acontecimentos no limite da rotura com Espanha. Não foi a primeira vez, nem a última na história dos dois países vizinhos.

E sempre que as circunstâncias o proporcionam, o problema está de regresso. Cabe pois aqui, perguntarmos se Portugal é um enigma. A verdade é que toda a realidade humana comporta um enigma. A constituição, sobrevivência, afirmação e identidade das nações, como hoje as conhecemos, sempre nos provocarão novas interrogações. A História não tem outro fim senão explicar os sucessivos enigmas das construções humanas. A questão nacional é uma permanente preocupação intelectual. Poucos pensadores escapam a esse desafio. Enunciar os portugueses que foram atraídos para este assunto seria enunciar uma imensa galeria de todos os que edificaram um pilar importante da identidade portuguesa.

Nessa medida, Portugal, como muitas outras realidades humanas, foi e continua sendo, um enigma. Continuar a estudar os acontecimentos que aqui nos reúnem é um contributo para a descoberta das chaves que o explicam.




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