terça-feira, 22 de novembro de 2016

CHAVES E A REPÚBLICA


Na segunda parte da conferência "Chaves e a República" dou destaque a uma memória do capitão Maia Magalhães sobre os acontecimentos e o ambiente em torno da implantação da República e da reação das populações rurais.
Esta memória encontra-se no Arquivo Histórico Militar e veio parar-me às mãos quando preparava a conferência. É um exemplo do muito que se esconde nos arquivos à espera de ser descoberto.
Na conferência fiz um desafio ao presidente da Câmara para a sua publicação, mas como quase sempre, caiu em saco roto.
Maia de Magalhães foi para Chaves como chefe de estado-maior do sector de defesa entre os rios Mente e Cávado, criado para fazer face à ameaça das incursões.
(Nota: os seus apontamentos trouxeram-me à memórias as ações da dinamização cultural, a seguir ao 25 de Abril!).



Parte 2


Mas não quero deixar os acontecimentos de Chaves, sem referir algumas interessantíssimas passagens das memórias do capitão Maia Magalhães (que estão no Arquivo Histórico Militar e que julgo inéditas), memórias que escreveu a propósito de vários reconhecimentos nos arredores de Chaves, antes da entrada dos monárquicos.

Alguns defensores de Chaves, num pequeno
filme da Cinemateca Portuguesa, 1912, em
http://www.cinept.ubi.pt/pt/filme/8731
O primeiro apontamento diz o seguinte:

“Chegando a Chaves sem conhecimento algum do meio, nem da região, e tendo simplesmente uma indicação muito geral sobre as ocorrências que traziam toda a gente alarmada, comecei por reunir todos os elementos que julguei indispensáveis para formar a minha opinião (…)

Eu nunca me convenci, confesso, que os conspiradores da Galiza, apesar de saber que os havia realmente nas povoações espanholas próximas da raia, se aventurassem a entrar em Portugal, principalmente depois de descobertos os seus manejos; mas se realmente, numa alucinação de espírito, e para justificarem a imensidade de dinheiro que com eles gastavam outros monárquicos mais comodistas, chegassem a entrar, nunca pelo meu cérebro passou a ideia de que pudessem alcançar o mais pequeno sucesso sobre tropas do Exército Português ou mesmo sobre os grupos civis absolutamente dedicados à causa da Pátria e da República.

Mas se não entravam e não podiam alcançar vitórias, alguma coisa conseguiam (e nisso foram sempre poderosamente auxiliados pelos que dentro do País não se puderam conformar com o novo estado de coisas por serem ou feridos nos seus interesses ou despeitados (…) – é trazerem o País sobressaltado, criando uma atmosfera de dúvida terrível sobre a possibilidade de guerra civil, promovendo a ida de numerosos contingentes para a fronteira (…) e aumento fabuloso das despesas”.

E num segundo apontamento refere o capitão as suas deambulações pelas aldeias:

“As informações que a mim me competia directamente colher eram unicamente as que diziam respeito à zona onde teria de operar. Tinha de fazer largos e completos reconhecimentos do terreno que eu desconhecia por completo. Só o estudo consciencioso e detalhado do terreno me permitia fazer uma ideia da forma como poderia ter de empregar as forças. (…)

Eu porém não me podia limitar a ver terreno (…) a minha missão tinha de ir mais além (…) Tinha de fazer também o meu reconhecimento às aldeias, procurando penetrar intimamente o espírito das populações e perceber-lhe a sua atitude em face das circunstâncias, pois precisava de saber (…) se as populações coadjuvariam as nossas forças, se se conservariam indiferentes, ou se, pelo contrário, nos seriam hostis.

Aí nessas aldeias aproveitava sempre a ocasião para fazer a propaganda das novas Instituições, em conversas com os habitantes, dizendo-lhes a verdadeira significação da mudança de regime, e elucidando sobre as imensas vantagens da República principalmente para as classes pobres, que foram sempre as mais desprotegidas pela Monarquia.

Esta propaganda, que eu reputo hoje mais do que nunca, em face da infamíssima campanha que os reaccionários têm feito contra a República, absolutamente necessária, era uma das mais importantes medidas de defesa que devíamos empregar, e foi por isso que eu e alguns camaradas meus andámos por nossa iniciativa de aldeia em aldeia, abrindo quanto possível os olhos aqueles povos, que recolhidos à sua ignorância, nada mais sabiam do que as formidáveis patranhas que os mal intencionados inimigos da República lhes faziam acreditar.

É fantástico, inacreditável a série de disparates e de infâmias contra a República que esses cavalheiros, que se julgavam os donos desses humildes povos, se lembravam de inventar para desacreditar a República e para eles não perderem o seu antigo prestígio.

A Lei da Separação, que eles deturparam a seu modo, deu-lhes largo campo para essa campanha, e com o que diziam de tal forma indispunham essas gentes contra as Instituições, que até consideravam um pecado pronunciar a palavra República. Era vulgaríssimo ouvir nessas aldeias, principalmente as mulheres, porque os homens poucos a princípio apareciam e pouco falavam, que a República queria tirar-lhes a religião, mandava incendiar ou arrasar as igrejas, quebrava os santos, roubavam os objectos preciosos que nelas havia, que os republicanos eram uns hereges, uns malfeitores que matavam e roubavam toda a gente e que a República era a causa de todos os males que lhes aconteciam.

Numa das aldeias, quando nós aparecemos, umas mulherzinhas pediam pelo amor de Deus que não levássemos a coroa da Nossa Senhora!

Ficavam muito espantados, e a princípio não acreditavam, quando lhes dizíamos e provávamos a falsidade de tudo isso e lhe dávamos a verdadeira interpretação das leis da República”.

O capitão Maia de Magalhães continua ainda com as suas memórias, oferecendo-nos um quadro vivo e original da sua missão. Não vou contudo insistir na sua leitura. Mas deixo um desafio a Chaves, porventura ao sr. Presidente da Câmara, de podermos publicar estas memórias de um capitão que, embora desconhecedor destas terras, ou talvez por isso, nos oferece delas e das suas gentes uma lembrança viva e digna de ser lembrada.


1 comentário:

  1. Excelente texto sobre o papel decisivo da praça de Chaves na defesa da República em 1919. Chaves, Vila Real e Mirandela constituíram o que passou à História como o triângulo de Liberdade.
    Jorge Sales Golias




















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