sábado, 12 de novembro de 2016

INDEPENDÊNCIAS, ALGUMAS QUESTÕES DO PERÍODO DE TRANSIÇÃO



No ano de 2015 foram várias as iniciativas de comemoração dos 40 anos das independências dos novos países africanos resultantes dos processos de transferência de soberania concretizados em 1975. Eu fui convidado para a Conferência organizada pelo ISCTE “40 Anos de Independência”, em 18 de Novembro, onde apresentei uma comunicação sobre a minha experiência pessoal. Não chegou a ser publicada.
Para a sua publicação neste blogue divido-a em duas partes.



Parte 1

Resultado de imagem para programa do mfa
Foi suprimida uma alínea
 do Programa do MFA
 sobre a questão colonial
Ao iniciar a minha participação neste evento, gostaria de fazer algumas saudações.
Em primeiro lugar, tenho todo o gosto em saudar os organismos e entidades participantes neste evento e que se têm empenhado no estudo das nossas Histórias recentes, com valorização da componente da recolha de documentos da mais variada natureza e também de testemunhos de protagonistas. Quero aqui realçar a A25A que, embora não constando no conjunto dos apoios a este evento, está evidentemente ligada a todo o programa que desenvolvemos este ano, nas comemorações dos 40 anos das independências e das “memórias da Revolução”.
Em segundo lugar, gostaria de saudar os países que obtiveram a sua independência em torno do 25 de Abril de 1974, pela comemoração dos 40 anos da sua completa libertação e salientar o esforço de cada um, no contexto das suas especificidades, para ultrapassarem os obstáculos que têm surgido nos seus caminhos.
Poderia aqui destacar a República de Moçambique, se me permitem, porque nela vivi o período de transição, desde Setembro de 1973 (formação do movimento dos capitães) até ao dia seguinte à independência, em 25 de Junho de 1975.
Também quero lembrar todos os militares portugueses que participaram no período de transferência de soberania em qualquer dos territórios, e salientar o seu sacrifício, a sua abnegação a uma causa que pode hoje parecer estranha, e a sua contribuição para um processo vital para o posicionamento de Portugal no mundo de então.
Desejo ainda saudar todos os dirigentes e responsáveis dos novos países que souberam compreender a situação delicada dos processos de transferência, que viveram em conjunto as nossas preocupações e angústias, e que sempre enalteceram o entendimento conseguido por todos, nesses tempos de duras provações. E em especial aqueles que ainda hoje se mantêm nossos amigos.
Quero saudar também todos aqueles que lutam, no dia-a-dia, pelo conhecimento, pela ciência e pela informação, e que se envolvem em projetos de informação e recolha da nossa memória, em especial desse tempo de grande envolvimento coletivo, contribuindo para a construção de comunidades dignas, dialogantes e pacíficas.

Estamos aqui para evocar o tempo das independências, passados que são 40 anos, e revisitar os períodos de transição em 1974-1975, que nos levou do 25 de Abril de 1974 às transferências de soberania e às proclamações das independências dos novos países. Foram meses de grandes acontecimentos, de grande empenho, de algumas angústias e de muita satisfação pelo dever cumprido.
Um esclarecimento que também é importante. Assumo aqui um papel de militar português do Movimento dos Capitães/MFA, presente em Moçambique, como disse, e portanto, participante…

Para realçar esses dias de muita ansiedade e apreensão, será necessário aprofundar as circunstâncias desse tempo. Desde o dia 25 de Abril, o MFA assumiu o protagonismo que o Programa do MFA lhe concedia. A principal missão que considerou sua, foi a de preparar os militares e as Forças Armadas para transições pacíficas, em ambientes muito diferentes dos anteriores. Isso, que parece simples, não foi uma tarefa fácil.
Pelas hesitações do poder emergente, em Lisboa, em especial pelas posições do general Spínola, nunca se conseguiu que o governo central definisse, em relação aos territórios coloniais, uma posição consentânea com os novos tempos – reconhecimento do direito à independência e reconhecimento dos movimentos de libertação como legítimos representantes dos seus povos.
Os principais membros do MFA presentes nos diversos territórios não tinham dúvidas sobre o caminho a seguir, mas a sua condição de militares envolveu-os (envolveu-nos) numa insuperável contradição, a que só Lisboa podia pôr termo.

Voltemos por isso, um pouco mais atrás.
O quadro político-militar entre meados de 1973 e o 25 de Abril de 1974 era muito favorável ao surgimento de um movimento militar com o objetivo de derrubar o regime do Estado Novo.
Em primeiro lugar, havia uma dissidência, mais ou menos subterrânea, entre a instituição militar e o regime, do qual as Forças Armadas tinham sido um duradouro suporte. Essa dissidência surda vinha da questão da Índia, e ameaçava repetir-se na Guiné.
Em segundo lugar, as Forças Armadas atingiam o limite da sua capacidade de resistência a um conflito armado muito desgastante e muito prolongado, sem que, do ponto de vista político, se vislumbrasse uma solução aceitável para lhe pôr fim.
Em terceiro lugar, era visível, para os mais atentos, uma degradação do apoio social ao regime e havia, na sociedade, uma saturação evidente em relação à guerra.

Pareciam criadas as condições para que os militares atuassem, em moldes tradicionais.
Só que a hierarquia das Forças Armadas estava tão comprometida na solução militar da questão colonial como o próprio regime. O resultado foi que as Forças Armadas, através dos seus altos representantes, nunca se mostraram capazes de dar o passo em frente reclamado pelas condições envolventes. O facto de alguns generais terem entrado em rotura com o regime, não põe em causa o comprometimento do corpo militar com a situação.
São estas as circunstâncias em que nasce o Movimento dos Capitães, dadas as condições especiais da importância dos quadros médios no seio das Forças Armadas (e em especial do Exército), face à natureza da guerra colonial em que estavam envolvidas.
Por um lado, os capitães vão adquirindo a capacidade de representar as Forças Armadas e, por outro, constroem uma nova modalidade de intervenção na política.

Convém por isso, caracterizar sucintamente o movimento militar que levou a cabo o 25 de Abril em Portugal, através de alguns fatores que lhe deram consistência e de algumas condições que sustentaram o seu êxito.

Em primeiro lugar, podemos dizer que o movimento que conduziu ao 25 de Abril assumiu as seguintes características:
- Foi um movimento militar amplo, com base no Exército e nos quadros médios, incluindo oficiais da Marinha e da Força Aérea;
- Respondeu a um anseio generalizado, não prevendo por isso oposição popular;
- Assumiu uma componente de natureza política através de um programa democrático;
- Teve, apesar de tudo, consciência da existência de fraturas internas.

Em segundo lugar, a ação militar do 25 de Abril reuniu certas condições, que podem ser assim resumidas:
- Alicerçou-se num sólido plano de operações;
- Isolou o teatro de operações (constituído por todo o território português) e executou uma convergência de forças para a cidade de Lisboa, sede do poder político;
- Usou a rapidez de ação e a surpresa;
- Os principais executantes tinham experiência de guerra.
E para além disto tudo, os participantes tinham uma missão muito clara, constante do plano de operações, como convém a toda a ação militar:

“A missão a atingir com a realização da operação é provocar o derrube do Governo vigente, com o aprisionamento de todos os seus membros e do Presidente da República, com o apoio e a acção activa ou passiva de todas as NF actuantes, tendo em vista pôr imediatamente em execução o programa constante da proclamação a dirigir à Nação logo após o golpe, visando a implantação, a curto prazo, de uma democracia política como forma de governo no País”.

Podemos então dizer que o golpe de Estado do 25 de Abril de 1974, que evoluiu depois para um processo revolucionário, se baseou em algumas ideias invulgares:

- Derrubou uma ditadura;
- Propôs a instauração de um regime democrático, de partidos, com base num programa político;
- Formulou uma solução para o problema colonial através de negociações;
- Propôs um programa de desenvolvimento económico e social de maior justiça.

Em suma, depois da vitória, e através de um Programa pré-elaborado, o golpe de Estado transformou-se numa Revolução, pela vontade e participação do povo de Lisboa, que rapidamente se propagou a todo o país.

No que se refere à questão colonial, o programa dos revolucionários expressou as seguintes linhas de orientação:
a)   A solução deveria ser política e não militar;
b)  Deviam ser criadas condições para um debate nacional;
c)   Era indispensável o lançamento dos fundamentos de uma política que conduzisse à paz.

Mas o programa foi amputado, na noite de 25 para 26 de Abril, da alínea definidora de uma verdadeira solução para a questão colonial, por divergências internas do Movimento, que preconizava um

d)  Claro reconhecimento do direito dos povos à autodeterminação e adoção acelerada de medidas tendentes à autonomia administrativa e política dos territórios ultramarinos, com efetiva e larga participação das populações autóctones.

Essencialmente por este motivo, os capitães presentes nos territórios coloniais ficaram numa situação de significativa importância política, mas de frágil consistência militar, quando se clarificaram as circunstâncias ao longo do dia 25 de Abril de 1974.
O que se passou então?
Os capitães olharam-se e não puderam deixar de se questionar sobre o que fazer. Estavam vitoriosos, mas a sua capacidade para agir era diminuta.
(Devemos aqui ressalvar a iniciativa dos capitães de Bissau, que ao tomarem o poder recuperaram a alínea excluída do Programa do MFA).
Para todos os outros, a solução para o problema que essencialmente os preocupava, ou seja, o fim da guerra, não ficara claramente definida em Lisboa. Esta situação tendia a reproduzir uma dicotomia no MFA que já emergia na capital. As posições dos elementos do movimento dos capitães, que agora se viam integrados num espaço mais amplo constituído pelo MFA, encontraram terreno propício para divergirem, desde o primeiro dia.
Em segundo lugar, e fruto desta ambiguidade inicial, as posições dos principais membros do movimento, acompanhados por todos aqueles que se integraram ou se aproximaram, multiplicaram-se com base nas diversas interpretações das mensagens divergentes que o novo poder central emitia.
A primeira grande dificuldade foi a de definir um rumo.
E se as divergências eram visíveis entre os aderentes ao MFA, todos aqueles que se demarcavam da nova situação aproveitavam as divergências para se manterem nas suas trincheiras.
Estávamos entre um insuficiente Programa do MFA, cuja surpresa o manifesto de Cascais não deixava adivinhar, e a solene declaração da JSN, referindo Portugal no seu todo pluricontinental!
Estávamos entre uma hierarquia militar e política apenas inquieta pelos protagonistas que emergiam da mudança, mas suficientemente confiante na composição do poder que se desenhava em Lisboa.
Estávamos entre duas realidades persistentes que não se afigurava possível alterar, nem a realidade da guerra ao longo de extensos territórios, nem a incapacidade de os comandos militares assumirem as causas da mudança que os capitães acabavam de provocar, ou seja, o fim da guerra.



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