Quando deixei a vida ativa e passei à
situação de reforma, os meus amigos quiseram fazer-me uma homenagem pública. É
claro que os dissuadi, mas em contrapartida organizaram um jantar na A25A ( 21
de Março de 2007) onde estiveram presentes dezenas de amigos, encontro que
recordo com muita emoção.
Na altura li um texto que deveria
chamar-se “Um soldado razoável”, mas que foi publicado no Referencial, boletim
da A25A, como “O soldado é um persuasor”, o que não me parece mal.
Foram as seguintes as minhas palavras:
As palavras que escolhi para vos dizer não exprimem
os meus sentimentos de gratidão. Falta-me habilidade literária para traduzir o
que me vai na alma. Peço-vos que as aceitem como a forma mais genuína que
consegui. Todos vós sois testemunhas do meu reconhecimento e credores do meu
afecto.
Permitam-me então que vos apresente uma receita para
fazer um soldado razoável.
Houve um tempo em que o Exército me deu a
incumbência de fabricar soldados. Eu sempre tive a ideia, moldada pelas
circunstâncias, de que era mais eficaz fazer de todos, soldados razoáveis, do
que fazer meia dúzia de bons soldados e uma multidão de incapazes. Talvez possa
hoje ter a ideia de que procurei reproduzir-me, nos meus instruendos.
Pois qual é a receita para fazer um soldado
razoável?
Pega-se
num homem em bruto. Vem de uma zona rural, traz linhas angulosas de pensamento,
mentalidade, hábitos e horizontes. A primeira tarefa é... afeiçoá-lo.
Muitos destes vestígios permanecerão para sempre,
mas não há outra alternativa – esse lastro só deve reaparecer, eventualmente,
em situações limite.
Porém, e ponto importante, tudo aquilo que não
prejudicar a razoável solução, pode continuar a fazer parte do fundo do nosso
homem. Não se pretende inventar nenhum homem novo.
A certa altura, há que mandar o homem para a guerra,
destino do verdadeiro soldado... Foi isso que pensou o nosso ido regime, quando
o nosso ditador caminhava para lá dos seus 70 anos. Pois que melhor escola se
não a guerra nas colónias? E foi assim que o soldado razoável se viu, como
tantos de vós, nessa aventura de vida a muitos milhares de quilómetros da sua
terra. Procurou sempre que os homens que lhe meteram nas mãos se comportassem
como militares razoáveis - sensatos,
dignos, cumpridores.
Mas quando a guerra se prolongou para lá do
razoável, esses soldados, moldados no bom senso da vida e das opiniões,
acharam-se perante o dilema de obedecerem à sua consciência ou aos ditames do
seu juramento. Foi um momento complicado, mas de breve hesitação. Tinham
aprendido comigo que há sempre uma hora em que o homem decide sozinho. Os meus
soldados, aqueles que eu formei (aqueles que todos vocês formaram) responderam
firmemente à chamada que lhes fizemos. Optaram pelo cheiro da liberdade.
Desejaram secretamente o triunfo da liberdade. Lutaram pela vitória da
liberdade.
E no dia que se escolheu, todos agiram firmemente.
Há dias em que o soldado razoável, age como um bom soldado. E os dias de
grandes causas, são os melhores para testar as suas capacidades.
Nas palestras de sexta-feira era comum eu dizer a
todos – não te imponhas pela espingarda. O soldado é um persuasor. Deve
explicar-se tanto quanto possível e, sobretudo, espera que quem manda explique
os actos que lhe impõe.
Um dia, ele próprio descobre que a liberdade
pertence ao povo, e que a si, só pertence defendê-la e não oferecê-la. Nem
invocá-la em seu favor ou exigir-lhe recompensa. A liberdade é a marca da sua
conquista e da sua servidão.
Como soldado, aprendi, e assumi, os limites da minha
vida. Procurei convencer-me do exacto papel que me era destinado – optei por
continuar soldado, cumprindo deveres que embora novos, não deixavam de ser a
continuação do percurso de sempre.
Foi assim que cheguei ao Arquivo Histórico
Militar.
Preferi continuar soldado às alternativas que me
ofereceram. Porquê? Nem eu sei explicar. Porque era o meu ambiente e porque era
aí que estavam os meus camaradas. Porque não tinha aprendido a viver em outro
lugar.
E querem saber o que aconteceu? Tive oportunidade
não apenas de contactar com camaradas do meu tempo, estes para quem eu agora
falo, mas também com gente mais nova e sobretudo, gente muito mais antiga.
Podem crer que conheci centenas de camaradas, e em muitos encontrei afinidades,
especialmente quando verifiquei que também eles tinham sido soldados razoáveis.
Eles jaziam ali, em prateleiras infindas, esperando
porventura que algum camarada do futuro compreendesse como e porquê eles tinham
cumprido o seu dever, nas circunstâncias que a sua vida e o seu tempo lhes
proporcionaram. De certa forma, constatei aquilo que era minha convicção - eles
constituíam o suporte do nosso tempo e da nossa atitude, da compreensão dos
nossos dias e das nossas raízes, da nossa tradição e da nossa capacidade de
entendermos o presente. Aprendi imenso com eles.
Essa aprendizagem ditou-me um dever, que me impus –
é necessário preservar a memória que todas essas gerações nos podem transmitir.
O esforço de salvaguarda deve ser assumido por todos os responsáveis. Só quando
compreendermos que não estamos sós, porque inúmeras gerações sustentam as
nossas convicções e os nossos princípios, que de certa forma vigiam as nossas
opções e nos apontam o caminho, é que poderemos tirar da vida todas as lições
que devem moldar o nosso tempo.
Estou certo que todos esses nossos camaradas
continuam disponíveis para nos darem lições de vida. Experimentem conhecê-los e
talvez consigam dar solução a muitas das dúvidas que hoje ainda vos assaltam.
São lições da História, que eu procuro não desprezar.
Foi gratificante verificar que, apesar de tudo, o
Exército tratou de preservar memórias de si e dos seus. Claro que há imensas
clareiras, mas o essencial desse imenso património existe e espera pelo dia da
descoberta.
Contudo, quando me achei naquele lugar, não me
bastou, como soldado razoável, cópia que era dos soldados saídos das minhas
mãos, fazer o óbvio – continuar a recolher em rotinas anteriores, a papelada
que ia chegando. Pretendi tornar-me garante da memória de uma geração especial,
da geração que fez transitar Portugal da antiguidade para a vida contemporânea,
do mundo obscuro para o mundo moderno – a nossa geração, esta que aqui está
representada.
O meu trabalho no Arquivo Histórico Militar destinou-se, também,
a salvaguardar a memória da nossa geração e daquilo que foi o nosso contributo
(de que nos orgulhamos) para a História do nosso país.
Hoje há uma certeza
que eu tenho e vos transmito: está preservada a memória desta geração de
transição. Está preservada em níveis que muito ultrapassam os níveis de
qualquer outra geração. A guerra colonial, o 25 de Abril, a transição
democrática terão um peso não apenas como factos decisivos que foram, mas
também no testemunho disponível que deixam no Arquivo Histórico Militar. Isso
ninguém, no futuro, vai poder esconder. Essa foi uma das minhas orientações
essenciais, na convicção de cumprir também a minha responsabilidade perante o
Exército. Pelo que fiz nesse sentido acho que a vossa aprovação é merecida.
Quanto ao resto que me quiseram e estão a transmitir, vou considerá-lo
como um incentivo e como a certeza de grandes amizades de que muito me orgulho.
Podem crer que é, porque sempre foi, um soldado
razoável que vos diz, do fundo do coração – muito obrigado”.
Gostei de ler o que Aniceto Afonso escreveu e disse a camaradas e amigos. A discrição foi sempre a sua maneira de estar. Os homens, verdadeiramente grandes e sábios, não necessitam de se colocar em bicos de pés para se fazerem notados. Quem estiver atento, vê bem quem são, pela sua obra e pela sua simplicidade. É o caso do Aniceto Afonso. Obrigado, Amigo.
ResponderEliminarMuito obrigado, meu caro amigo Manel Zé. Esta maneira de estar no mundo vem-nos das nossas raízes, foi lá nas nossas terras que aprendemos, pois eu diria o mesmo de ti. Abraço fraterno, Aniceto
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