Num post anterior já referi que eu e o
Carlos de Matos Gomes tivemos acesso ao Arquivo Marcelo Caetano depositado na
Torre do Tombo, quando estudávamos o acordo secreto do colonialismo, o
Exercício Alcora, entre Portugal e os regimes racistas da África do Sul e da
Rodésia nos anos finais da guerra colonial. Foi também nele que encontrámos a
ata de uma reunião de altos comandos no dia 11 de março de 1974.
Publiquei a ata no boletim “Referencial”
da A25A, no número de abril-junho de 2011, saindo com o título “Uma Acta de
Viana de Lemos”, que altero para a sua publicação neste blogue.
Brigada do reumático, ou o apoio dos responsáveis militares à política de Marcelo Caetano nas vésperas do 25 de Abril de 1974. |
Numa
investigação sobre as relações de Portugal com a África do Sul nos anos finais
da guerra colonial, que eu e o Carlos de Matos Gomes estamos a fazer, veio-nos
parar às mãos uma acta de uma reunião havida na Defesa Nacional em 11 de Março
de 1974. Está na correspondência de Carlos Viana de Lemos para Marcelo Caetano,
no Arquivo Marcelo Caetano depositado na Torre do Tombo, o qual fomos
autorizados a consultar por Miguel Caetano, filho do antigo Presidente do
Conselho de Ministros.
Por
nos parecer relevante para esclarecer alguns posicionamentos de altas figuras
da hierarquia do Estado Novo, em relação a alguns aspectos do movimento dos
capitães e da situação política nas vésperas do 25 de Abril, achámos que
deveríamos dar-lhe publicidade, trazendo-a ao conhecimento público.
É o
seguinte o seu texto:
“Acta resumo de uma reunião realizada
no Departamento da Defesa Nacional, em 11 de Março de 1974.
Por convocação de S. Exa. o Ministro da
Defesa (1) reuniram-se, pelas 11 horas do dia 11 de Março de 1974, os Srs.
Ministros do Exército (2) e da Marinha (3), o Secretário de Estado da
Aeronáutica (4), o Subsecretário de Estado do Exército (5) e o Chefe do
Estado-Maior General das Forças Armadas (6).
Abriu a sessão o Sr. Ministro da Defesa
Nacional que comunicou que o objectivo da reunião era o de se estudar se se
deveriam continuar a adoptar medidas de segurança nas Forças Armadas para fazer
face à situação presente e, em caso afirmativo, qual o grau que essas medidas
deviam assumir. Punha o problema à consideração dos Ministros militares.
Falou em primeiro lugar o Sr. Ministro
do Exército que deu conta que nessa manhã às 08h00 se havia passado ao estado
de alerta estando prevista a passagem ao estado de prevenção simples às 21h00
(…)
O Sr. Ministro da Marinha concordou, na
generalidade, com esta opinião, mas afirmou que optava pela manutenção de um
único estado de segurança, que poderia ser o de prevenção simples (…)
O Sr. Secretário de Estado de
Aeronáutica declarou que preferia igualmente um único estado de segurança (…)
Falou seguidamente o CEMGFA que
principiou por se queixar da falta de informações com que o Comando Geral de
Segurança Interna lutava, pois não recebia dos Estados-Maiores dos três Ramos,
nem das forças de segurança e poucas da DGS. Contudo considerava a situação
muito grave e resultante de terem sido tomadas medidas de força que considerava
inoportunas face à situação de momento. Historiou o chamado “movimento dos
capitães” iniciado como reacção contra a publicação do DL 353 (7), e que deu
origem à apresentação de várias reivindicações. Após ter tomado posse a nova
equipa governamental havia constatado uma tendência que permitia concluir que
os espíritos se estavam acalmando, mas ultimamente essa tendência havia sido
destruída. Primeiro, os incidentes da Beira (8), entre a população civil e os
militares haviam provocado um largo movimento de solidariedade militar que se
estendera a outras Províncias Ultramarinas e à Metrópole, movimento esse que se
consubstanciava num manifesto com 470 assinaturas (9). Considerava igualmente
como factor responsável pelo agravamento da situação, o facto de se ter
realizado uma reunião de comandos no Ministério do Exército “a que não tive a
honra de assistir” e bem assim as medidas tomadas ultimamente como a
transferência de alguns oficiais (10). Considerava a situação extremamente
grave devido à não aceitação por muitos militares das vias hierárquicas, pois
os generais não tinham prestígio, mais concluindo que certamente nenhum dos
membros do Governo ali presentes poderia controlar a evolução de qualquer
situação dentro do seu Departamento. Aliás, pedia autorização para, na presença
do Sr. Ministro da Defesa, apresentar estas considerações a S. Exª. o Senhor
Presidente do Conselho.
O Sr. Ministro da Defesa replicou
afirmando que o Sr. CEMGFA tinha acesso ao Sr. Presidente do Conselho e que
poderia pedir audiência sem que ele estivesse presente. Considerou em seguida
que os comentários apresentados pela CEMGFA excediam em muito o âmbito da
reunião e que até se poderiam relacionar com o equacionamento da política do
Governo. Sobre este ponto queria lembrar que essa política estava definida e
que aos membros do Governo, ou às pessoas da sua confiança, apenas restava um
caminho que era segui-la sem hesitação.
Pessoalmente e no que se referia à
agitação dos capitães distinguia três hipóteses:
- aceitar as suas reivindicações o que
implicaria o abandono imediato das funções governamentais por tal ser
incompatível com o compromisso de honra prestado quando as aceitou;
- pretender que se ignore ou não se
perceba o que se está a passar, deixando as coisas avolumarem-se e ignorando
que há quem não se queira bater e prefira situações mais cómodas e mais
remuneradas;
- tentar, por todos os meios, dominar a
situação.
Tendo, em consciência, a certeza de que
a política do Governo era a que convinha à Nação, não poderia logicamente
aceitar as duas primeiras soluções. Contudo desejava que o debate se não
generalizasse neste âmbito e se limitasse apenas ao assunto que fora objecto da
convocação.
O Sr. Ministro do Exército apoiou
firmemente a posição do Sr. Ministro da Defesa que considerou a única
admissível. Esclareceu igualmente que a posição assumida, relativamente aos
três oficiais que foram transferidos, não podia de forma alguma ser considerada
dura uma vez que haviam infringido os deveres 1º, 25º e 27º do RDM, o que os
tornava passíveis de procedimento disciplinar.
O Sr. Ministro da Marinha, para além de
exprimir a sua concordância, pedia que lhe perdoassem a vaidade, mas que, após
cinco anos de permanência na sua pasta, não podia aceitar a afirmação que fora
feita de que não seria capaz de controlar o seu Departamento.
O Sr. Secretário de Estado da
Aeronáutica apoiou calorosamente a posição e a tese dos Srs. Ministros da
Defesa e do Exército afirmando que, pessoalmente nunca quereria estar à frente
de um Departamento em que o comando se efectuasse de baixo para cima. Afirmou
igualmente não duvidar que podia controlar o seu Departamento.
O Sr. CEMGFA afirmou que, embora fora
do âmbito da reunião, tinha querido, para ficar de bem com a sua consciência,
apresentar as suas considerações e que o fizera pois julgava a situação grave
nos três Teatros de Operações, dizendo a propósito que o Sr. General
Bettencourt Rodrigues regressara a Bissau cheio de apreensões (11).
Finalmente foi decidido e determinado
que o Sr. CEMGFA comunicasse aos três Ramos que, até nova ordem, as unidades se
manteriam em estado de alerta.
Lisboa, 11 de Março de 1974.
Carlos Viana de Lemos”.
………
(1) Ministro da Defesa
Nacional – Joaquim Moreira da Silva Cunha, nomeado em 7 de Novembro de 1973, em
substituição de Horácio Sá Viana Rebelo.
(2) Ministro do
Exército – Alberto de Andrade e Silva, general, nomeado na mesma remodelação de
7 de Novembro de 1973.
(3) Ministro da Marinha
– Manuel Pereira Crespo, contra-almirante, que ocupava o cargo desde 27 de
Setembro de 1968, primeiro governo de Marcelo Caetano.
(4) Secretário de
Estado de Aeronáutica – Mário
Telo Polleri, general, que também entrara em 7 de Novembro de
1973.
(5) Subsecretário de
Estado do Exército – Carlos Viana Dias de Lemos, o autor da ata e que tomara
posse também em 7 de Novembro de 1973.
(6) Chefe do EMGFA –
Francisco da Costa Gomes, general, no cargo desde 12 de Setembro de 1972. Viria
a ser demitido do cargo exactamente três dias depois desta reunião, a 14 de
Março de 1974.
(7) O general Costa
Gomes refere-se ao DL 353/73 de 13 de Julho, relativo às carreiras dos oficiais
do Exército e que se considera estar na origem do movimento dos capitães.
(8) Referência aos
chamados “Acontecimentos da Beira”, ocorridos nos dias 17 a 19 de Janeiro na cidade
da Beira, em Moçambique, e traduzidos em grandes manifestações da população
branca contra as Forças Armadas e os militares, acusados de não se esforçarem
para dar uma solução rápida à guerra subversiva, deixando que esta alastrasse
para Sul e chegasse às zonas com mais população branca.
(9) Este manifesto foi
elaborado pela Comissão Coordenadora do Movimento dos Capitães em Moçambique
logo em 23 de Janeiro, exigindo uma série de medidas no sentido de não haver
repetição dos acontecimentos, mas também focando a necessidade de ser bem
explicada a função das Forças Armadas numa guerra subversiva a toda a
população.
(10) Refere-se à prisão,
ordenada pelo Governo, dos capitães Vasco Lourenço , Antero Ribeiro da Silva e Pinto
Soares, todos pertencentes ao movimento dos capitães e a imediata transferência
dos dois primeiros e de David
Martelo , respectivamente para os Açores, Madeira e Bragança,
unidades distantes das suas residências.
(11) O general
Bettencourt Rodrigues tinha sido nomeado governador-geral e comandante-chefe da
Guiné em 1973, em substituição do general António de Spínola e estivera
recentemente em Lisboa para explicar a difícil situação que se vivia no
território.
(Ver
em: TT/AMC/Cx 33/Correspondência/Carlos Viana de Lemos/nº 3)
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