Esta 3ª parte do texto sobre a
presença do Batalhão de Infantaria 10 de Bragança, na Flandres, durante a
Grande Guerra, estende-se das primeiras entradas em linha até ao Natal de 1917,
sempre acompanhando o relatório feito mais tarde pelo seu comandante, major
António José Teixeira.
Parte
3:
Carta
do Sector de Boutillerie, o primeiro em que o BI 10 fez estágio junto de tropas inglesas, desenho do major António José Teixeira, AHM. |
Em 30 de Setembro, os
oficiais reconhecem o subsector de La Boutillerie, uma área difícil, não
contínua, com frequentes inundações, sem trincheiras de comunicação, onde as
tropas fazem mais uma pequena estadia de aprendizagem.
Mais tarde, em 20 de
Outubro, e após várias experiências em diferentes subsectores, participando em
todos os trabalhos inerentes à permanência em linha, é feito o reconhecimento
do subsector de La Chapelle, onde o Batalhão vai passar por nova experiência, a
partir de 22 de Outubro. Foi nesta zona, que a 25 de Outubro o Batalhão teve as
primeiras baixas em combate, na localidade de Erquinghem:
Cerca
das 14h30, os segundos sargentos Firmino Herculano Moredo e Avelino António
Martins são encontrados pelo comandante da sua Companhia que lhes pergunta se
os soldados já estarão preparados para a revista de armas, visto terem de dar
entrada ao crepúsculo da tarde desse dia no subsector de Bois Grenier. Os
sargentos vão verificar o estado do armamento, mas, quando se dirigem aos
esburacados prédios que serviam de alojamento aos nossos, viram cair próximo
duma posição de baterias inglesas projéteis de grosso calibre, a cerca de 200
metros dos locais de estacionamento. Não obstante, continuam a marcha. Mas
subitamente, uma segunda granada sibila no ar, dando-lhes apenas tempo para se
deitarem e indo explodir no centro de alojamento sobre um carro de companhia,
onde se encontravam alguns soldados, escrevendo a suas famílias.
O
soldado da 1ª Companhia, António Maria Rodrigues, de Campo de Víboras sofreu
morte instantânea e bem assim os da 2ª, António Maria Preto, de Caçarelhos e
António Augusto Pires, também de Campo de Víboras. (…)
Eis
o primeiro dia trágico do Batalhão, no serviço de trincheiras.
Aproximava-se a hora de a
unidade avançar para a frente que lhe estava destinada e assumir as
responsabilidades de comando, depois de várias e sucessivas sobreposições com
unidades inglesas nas primeiras linhas, à semelhança do que outras unidades
portuguesas já tinham experimentado. O Batalhão de Infantaria 10 avançará no
dia 3 de Novembro para um subsector na frente da Brigada 113, inglesa, para
seis dias de responsabilidade operacional.
Diz-nos o major António
José Teixeira:
Este
subsector constava também de três linhas de defesa, e os seus postos tinham
todos nomes de mulheres: Ada, Alice, Catarina, etc. A sua principal linha de
resistência estava na 3ª linha. Era atravessado pela linha férrea para
Armentiers, agora toda desmantelada ou totalmente destruída. Era muito batida toda
a frente, e, tornando-se impossível manter a 1ª linha contínua, recorria-se,
como noutros sectores, ao sistema de postos isolados, sendo bem batidos todos
os intervalos existentes por fogos de metralhadora, situadas em pontos
previamente estudados.
Os soldados portugueses
tomavam assim contacto mais próximo com a presença nas primeiras linhas, e com
todos os trabalhos que lhe eram inerentes. Muitos outros camaradas seus tinham
sofrido as mesmas ou piores agruras, ali mesmo naquelas linhas, nos três anos anteriores,
sem que se vislumbrasse como se sairia daquele imenso impasse.
A impossibilidade de usar o
movimento como elemento essencial do combate, completamente dominado pelo fogo
e pela necessidade de proteção, acabou por obrigar as tropas da imensa linha da
frente a procurarem os abrigos de um sistema de trincheiras que se manteve
quase inalterado ao longo dos primeiros anos, até que outras armas vieram
introduzir no campo de batalha a possibilidade de retomar o combate pelo
movimento. Mas tal só viria a tornar-se viável com o carro de combate, arma
decisiva para alcançar a vitória. Contudo, as condições necessárias, que
estavam para além dos dramas que se viviam nas trincheiras, só surgiriam em
1918.
Sigamos o relato do nosso
autor:
Em
6 de Novembro, as Divisões portuguesas, até essa data subordinadas ao XI Corpo
inglês, ficam sob as ordens do Corpo Português, assumindo a 1ª Divisão, do
comando do glorioso general Gomes da Costa, a defesa de um sector que
compreendia Ferme-du-Bois, Neuve Chapelle e Fauquissart, avançando a 2ª Divisão
com o seu quartel-general para La Gorgue.
Em
20, o Batalhão do 10, que tinha feito o seu tirocínio sob as ordens do
comandante da 6ª BI (Brigada de Infantaria), fica novamente subordinada à 5ª
BI, passando esta a ser constituída pelos batalhões de Infantaria 4, 10, 13 e
17.
Mas só a 5 de Dezembro a 5ª
Brigada de Infantaria, sob o comando do coronel António Maria Baptista (1),
toma conta do sector de Fleurbaix, “que havia sido adstrito à defesa do Corpo
Português, alargando-se a nossa frente com mais essas trincheiras, e ficando a
1ª Divisão com Ferme-du-Bois e Neuve Chapelle, e a 2ª com Fauquissart e
Fleurbaix”.
A partir desta altura todos
os batalhões, como as companhias dentro dos batalhões, faziam rotações de
posição, por forma a não permaneceram mais de seis dias em primeira linha. A
vida nas linhas era difícil, os soldados portugueses, mesmo os transmontanos,
não estavam habituados ao frio intenso do norte da Europa, o sector português
situava-se numa zona de inundação frequente, o que motivava muitas doenças,
esgotamento físico e extremo cansaço. Mas o pior ainda estava para vir…
O Natal de 1917, o quarto
passado nas trincheiras, deixa nos soldados portugueses uma profunda marca, que
nunca seria esquecida. Diz-nos o cronista do Batalhão de Infantaria 10:
Chegou
o Natal de 1917!... Dia tétrico esse, passado sob a inclemência do frio, com
uma noite escura como breu.
A
guerra parecia mais feroz.
Havia
dois anos que os ingleses tinham fraternizado com o inimigo, nesse dia de Paz
Universal (…)
Uma
ordem do comando britânico, transmitida pelos comandos das Brigadas, fez enviar
aos alemães um cartão de boas festas…
Partiram
toneladas de granadas de todos os calibres, rajadas de metralhadoras e ainda
granadas de espingarda e morteiros, às 17 horas e vinte minutos, produzindo o
seu ribombar um formidável abalo em todas as edificações e um ruído
ensurdecedor!
Os
canhões abrem as suas fauces deixando-nos ouvir esses sons anunciadores da
ruína e da destruição!
Enterrados
na lama, fatigados, os nossos serranos viam passar, ébria de sangue e ódio,
essa avalanche de metralha, contemplando, ao mesmo tempo, estupefactos, os
fantásticos clarões dessas dezenas de bocas de fogo, que pareciam entoar
sarcástica e demoniacamente, uma nova canção do Natal, sinistra e cheia de
imprecações.
Horrível
Natal! Todos, neste dia, cismaram na família, no seu país…
O
jantar é triste… nem luzes, nem acepipes, a recordar vagamente a lenda do
Natal!...
A
neve cai nos campos e nas nossas almas. A bruma da noite envolve-nos, e as
sentinelas embuçam-se, transidas, ao longo da linha que, serpenteando, segue
pela nossa frente (…)
Era
o Natal nas trincheiras. Triste Natal este de 1917 para os que ouviam o
estrondear dos morteiros, os estalidos secos dos snipers, os estilhaços
enervantes da metralha e o chac-chac estrídulo da Maxim!...
Os
batalhões de apoio e reserva formavam pelos campos, à espera da terrível
resposta…
Nos
quartéis-generais de Brigada, a todo o momento, se esperava pelo ‘mercie’…
O
inimigo, porém, não respondeu à nossa artilharia, mas arremessou sobre a 1ª
linha algumas dezenas de morteiros, mantendo as guarnições numa contínua
agitação.
Na frente de combate havia,
para além dos duelos de fogos, dos atiradores especiais que a todo o momento
podiam fazer vítimas, dos sofrimentos contínuos, um pavor terrível que se
prendia com a utilização de gases de combate. Por isso, e também porque “o
serviço de gás deixava bastante a desejar”, o comando do Batalhão mandou
publicar, ainda antes do final do ano, rigorosas instruções “necessárias para o
serviço de defesa contra gás”.
No seu conjunto, as
disposições constituem um manual extremamente confuso e complexo, que sempre
seria difícil de interpretar e executar. Foi muito frequente o uso de gases de
combate na frente portuguesa (granadas com este material acompanhavam os
bombardeamentos o que obrigava ao uso das respetivas máscaras), sendo muitas as
vítimas entre os militares portugueses, com terríveis consequências. O manual,
com 20 regras, facilita, apesar de tudo, a compreensão do funcionamento do
serviço de gás, as preocupações, os procedimentos, o uso dos equipamentos, o
alarme, o material de gás distribuído e as respetivas responsabilidades, a
requisição de equipamentos e matérias químicas, a evacuação de atingidos, etc.
Depois de abordar um dos
serviços fundamentais para o bom funcionamento do apoio às tropas da frente, o
serviço de saúde, com todo o detalhe que a questão merecia, o relatório que
estamos seguindo faz pormenorizadas análises de outras questões pertinentes,
como o reabastecimento de víveres e água, a reparação das trincheiras e
abrigos, o reabastecimento de munições, a ventilação de casernas, barracas e
outros edifícios, o estabelecimento de defesas de arame farpado, a entrega de
materiais sempre que havia rendições, as instruções sobre os caminhos de
emergência, as instruções sobre drenos, a ordem em caso de S.O.S., o apoio da
artilharia, etc.
……
[1] António Maria Baptista
(1863-1920), coronel, nasceu em Beja. Militar e político, distinguiu-se nas
campanhas coloniais do final do século XIX. Fez parte do C.E.P., onde comandou
a 5ª Brigada de Infantaria, tomando parte na Batalha de La Lys. Depois de 1910
aderiu ao Partido Democrático, tendo sido ministro da Guerra em 1919 e depois
chefe do Executivo em 1920, tendo falecido neste ano, durante um conselho de
ministros.
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