Na segunda parte da conferência "Chaves e a República" dou
destaque a uma memória do capitão Maia Magalhães sobre os acontecimentos e o
ambiente em torno da implantação da República e da reação das populações
rurais.
Esta memória encontra-se no Arquivo Histórico Militar e veio parar-me às mãos quando preparava a conferência. É um exemplo do muito que se esconde nos arquivos à espera de ser descoberto.
Na conferência fiz um desafio ao presidente da Câmara para a sua publicação, mas como quase sempre, caiu em saco roto.
Maia de Magalhães foi para Chaves como chefe de estado-maior do sector de defesa entre os rios Mente e Cávado, criado para fazer face à ameaça das incursões.
(Nota: os seus apontamentos trouxeram-me à memórias as ações da dinamização cultural, a seguir ao 25 de Abril!).
Parte 2
Mas
não quero deixar os acontecimentos de Chaves, sem referir algumas
interessantíssimas passagens das memórias do capitão Maia Magalhães (que estão
no Arquivo Histórico Militar e que julgo inéditas), memórias que escreveu a
propósito de vários reconhecimentos nos arredores de Chaves, antes da entrada
dos monárquicos.
Alguns defensores de Chaves, num pequeno filme da Cinemateca Portuguesa, 1912, em http://www.cinept.ubi.pt/pt/filme/8731 |
O
primeiro apontamento diz o seguinte:
“Chegando
a Chaves sem conhecimento algum do meio, nem da região, e tendo simplesmente
uma indicação muito geral sobre as ocorrências que traziam toda a gente
alarmada, comecei por reunir todos os elementos que julguei indispensáveis para
formar a minha opinião (…)
Eu
nunca me convenci, confesso, que os conspiradores da Galiza, apesar de saber
que os havia realmente nas povoações espanholas próximas da raia, se
aventurassem a entrar em Portugal, principalmente depois de descobertos os seus
manejos; mas se realmente, numa alucinação de espírito, e para justificarem a
imensidade de dinheiro que com eles gastavam outros monárquicos mais
comodistas, chegassem a entrar, nunca pelo meu cérebro passou a ideia de que
pudessem alcançar o mais pequeno sucesso sobre tropas do Exército Português ou
mesmo sobre os grupos civis absolutamente dedicados à causa da Pátria e da
República.
Mas
se não entravam e não podiam alcançar vitórias, alguma coisa conseguiam (e
nisso foram sempre poderosamente auxiliados pelos que dentro do País não se
puderam conformar com o novo estado de coisas por serem ou feridos nos seus
interesses ou despeitados (…) – é trazerem o País sobressaltado, criando uma
atmosfera de dúvida terrível sobre a possibilidade de guerra civil, promovendo
a ida de numerosos contingentes para a fronteira (…) e aumento fabuloso das
despesas”.
E
num segundo apontamento refere o capitão as suas deambulações pelas aldeias:
“As
informações que a mim me competia directamente colher eram unicamente as que
diziam respeito à zona onde teria de operar. Tinha de fazer largos e completos
reconhecimentos do terreno que eu desconhecia por completo. Só o estudo
consciencioso e detalhado do terreno me permitia fazer uma ideia da forma como
poderia ter de empregar as forças. (…)
Eu
porém não me podia limitar a ver terreno (…) a minha missão tinha de ir mais
além (…) Tinha de fazer também o meu reconhecimento às aldeias, procurando
penetrar intimamente o espírito das populações e perceber-lhe a sua atitude em
face das circunstâncias, pois precisava de saber (…) se as populações
coadjuvariam as nossas forças, se se conservariam indiferentes, ou se, pelo
contrário, nos seriam hostis.
Aí
nessas aldeias aproveitava sempre a ocasião para fazer a propaganda das novas
Instituições, em conversas com os habitantes, dizendo-lhes a verdadeira
significação da mudança de regime, e elucidando sobre as imensas vantagens da
República principalmente para as classes pobres, que foram sempre as mais
desprotegidas pela Monarquia.
Esta
propaganda, que eu reputo hoje mais do que nunca, em face da infamíssima
campanha que os reaccionários têm feito contra a República, absolutamente
necessária, era uma das mais importantes medidas de defesa que devíamos
empregar, e foi por isso que eu e alguns camaradas meus andámos por nossa
iniciativa de aldeia em aldeia, abrindo quanto possível os olhos aqueles povos,
que recolhidos à sua ignorância, nada mais sabiam do que as formidáveis
patranhas que os mal intencionados inimigos da República lhes faziam acreditar.
É
fantástico, inacreditável a série de disparates e de infâmias contra a
República que esses cavalheiros, que se julgavam os donos desses humildes
povos, se lembravam de inventar para desacreditar a República e para eles não
perderem o seu antigo prestígio.
A
Lei da Separação, que eles deturparam a seu modo, deu-lhes largo campo para
essa campanha, e com o que diziam de tal forma indispunham essas gentes contra
as Instituições, que até consideravam um pecado pronunciar a palavra República.
Era vulgaríssimo ouvir nessas aldeias, principalmente as mulheres, porque os
homens poucos a princípio apareciam e pouco falavam, que a República queria
tirar-lhes a religião, mandava incendiar ou arrasar as igrejas, quebrava os
santos, roubavam os objectos preciosos que nelas havia, que os republicanos eram
uns hereges, uns malfeitores que matavam e roubavam toda a gente e que a
República era a causa de todos os males que lhes aconteciam.
Numa
das aldeias, quando nós aparecemos, umas mulherzinhas pediam pelo amor de Deus
que não levássemos a coroa da Nossa Senhora!
Ficavam
muito espantados, e a princípio não acreditavam, quando lhes dizíamos e
provávamos a falsidade de tudo isso e lhe dávamos a verdadeira interpretação
das leis da República”.
O
capitão Maia de Magalhães continua ainda com as suas memórias, oferecendo-nos
um quadro vivo e original da sua missão. Não vou contudo insistir na sua
leitura. Mas deixo um desafio a Chaves, porventura ao sr. Presidente da Câmara,
de podermos publicar estas memórias de um capitão que, embora desconhecedor
destas terras, ou talvez por isso, nos oferece delas e das suas gentes uma
lembrança viva e digna de ser lembrada.
Excelente texto sobre o papel decisivo da praça de Chaves na defesa da República em 1919. Chaves, Vila Real e Mirandela constituíram o que passou à História como o triângulo de Liberdade.
ResponderEliminarJorge Sales Golias