No ano de 2015 foram várias as
iniciativas de comemoração dos 40 anos das independências dos novos países
africanos resultantes dos processos de transferência de soberania concretizados
em 1975. Eu fui convidado para a Conferência organizada pelo ISCTE “40 Anos de
Independência”, em 18 de Novembro, onde apresentei uma comunicação sobre a
minha experiência pessoal. Não chegou a ser publicada.
Para a sua publicação neste blogue
divido-a em duas partes.
Parte
1
Foi suprimida uma alínea do Programa do MFA sobre a questão colonial |
Ao
iniciar a minha participação neste evento, gostaria de fazer algumas saudações.
Em primeiro
lugar, tenho todo o gosto em saudar os organismos e entidades participantes
neste evento e que se têm empenhado no estudo das nossas Histórias recentes,
com valorização da componente da recolha de documentos da mais variada natureza
e também de testemunhos de protagonistas. Quero aqui realçar a A25A que, embora
não constando no conjunto dos apoios a este evento, está evidentemente ligada a
todo o programa que desenvolvemos este ano, nas comemorações dos 40 anos das
independências e das “memórias da Revolução”.
Em segundo
lugar, gostaria de saudar os países que obtiveram a sua independência em torno
do 25 de Abril de 1974, pela comemoração dos 40 anos da sua completa libertação
e salientar o esforço de cada um, no contexto das suas especificidades, para
ultrapassarem os obstáculos que têm surgido nos seus caminhos.
Poderia
aqui destacar a República de Moçambique, se me permitem, porque nela vivi o
período de transição, desde Setembro de 1973 (formação do movimento dos
capitães) até ao dia seguinte à independência, em 25 de Junho de 1975.
Também
quero lembrar todos os militares portugueses que participaram no período de
transferência de soberania em qualquer dos territórios, e salientar o seu
sacrifício, a sua abnegação a uma causa que pode hoje parecer estranha, e a sua
contribuição para um processo vital para o posicionamento de Portugal no mundo
de então.
Desejo
ainda saudar todos os dirigentes e responsáveis dos novos países que souberam
compreender a situação delicada dos processos de transferência, que viveram em
conjunto as nossas preocupações e angústias, e que sempre enalteceram o
entendimento conseguido por todos, nesses tempos de duras provações. E em
especial aqueles que ainda hoje se mantêm nossos amigos.
Quero
saudar também todos aqueles que lutam, no dia-a-dia, pelo conhecimento, pela ciência
e pela informação, e que se envolvem em projetos de informação e recolha da
nossa memória, em especial desse tempo de grande envolvimento coletivo,
contribuindo para a construção de comunidades dignas, dialogantes e pacíficas.
Estamos
aqui para evocar o tempo das independências, passados que são 40 anos, e
revisitar os períodos de transição em 1974-1975, que nos levou do 25 de Abril
de 1974 às transferências de soberania e às proclamações das independências dos
novos países. Foram meses de grandes acontecimentos, de grande empenho, de
algumas angústias e de muita satisfação pelo dever cumprido.
Um esclarecimento
que também é importante. Assumo aqui um papel de militar português do Movimento
dos Capitães/MFA, presente em Moçambique, como disse, e portanto,
participante…
Para
realçar esses dias de muita ansiedade e apreensão, será necessário aprofundar
as circunstâncias desse tempo. Desde o dia 25 de Abril, o MFA assumiu o
protagonismo que o Programa do MFA lhe concedia. A principal missão que considerou sua, foi a de preparar os militares e as Forças Armadas para
transições pacíficas, em ambientes muito diferentes dos anteriores. Isso, que
parece simples, não foi uma tarefa fácil.
Pelas
hesitações do poder emergente, em Lisboa, em especial pelas posições do general
Spínola, nunca se conseguiu que o governo central definisse, em relação aos
territórios coloniais, uma posição consentânea com os novos tempos –
reconhecimento do direito à independência e reconhecimento dos movimentos de
libertação como legítimos representantes dos seus povos.
Os
principais membros do MFA presentes nos diversos territórios não tinham dúvidas
sobre o caminho a seguir, mas a sua condição de militares envolveu-os
(envolveu-nos) numa insuperável contradição, a que só Lisboa podia pôr termo.
Voltemos
por isso, um pouco mais atrás.
O quadro político-militar
entre meados de 1973 e o 25 de Abril de 1974 era muito favorável ao surgimento
de um movimento militar com o objetivo de derrubar o regime do Estado Novo.
Em primeiro
lugar, havia uma dissidência, mais ou menos subterrânea, entre a instituição
militar e o regime, do qual as Forças Armadas tinham sido um duradouro suporte.
Essa dissidência surda vinha da questão da Índia, e ameaçava repetir-se na
Guiné.
Em segundo
lugar, as Forças Armadas atingiam o limite da sua capacidade de resistência a um
conflito armado muito desgastante e muito prolongado, sem que, do ponto de
vista político, se vislumbrasse uma solução aceitável para lhe pôr fim.
Em terceiro
lugar, era visível, para os mais atentos, uma degradação do apoio social ao
regime e havia, na sociedade, uma saturação evidente em relação à guerra.
Pareciam
criadas as condições para que os militares atuassem, em moldes tradicionais.
Só que a
hierarquia das Forças Armadas estava tão comprometida na solução militar da
questão colonial como o próprio regime. O resultado foi que as Forças Armadas,
através dos seus altos representantes, nunca se mostraram capazes de dar o
passo em frente reclamado pelas condições envolventes. O facto de alguns
generais terem entrado em rotura com o regime, não põe em causa o
comprometimento do corpo militar com a situação.
São estas as
circunstâncias em que nasce o Movimento dos Capitães, dadas as condições
especiais da importância dos quadros médios no seio das Forças Armadas (e em
especial do Exército), face à natureza da guerra colonial em que estavam
envolvidas.
Por um lado,
os capitães vão adquirindo a capacidade de representar as Forças Armadas e, por
outro, constroem uma nova modalidade de intervenção na política.
Convém por
isso, caracterizar sucintamente o movimento militar que levou a cabo o 25 de
Abril em Portugal, através de alguns fatores que lhe deram consistência e de
algumas condições que sustentaram o seu êxito.
Em primeiro
lugar, podemos dizer que o movimento que conduziu ao 25 de Abril assumiu as seguintes
características:
- Foi um
movimento militar amplo, com base no Exército e nos quadros médios, incluindo
oficiais da Marinha e da Força Aérea;
- Respondeu
a um anseio generalizado, não prevendo por isso oposição popular;
- Assumiu
uma componente de natureza política através de um programa democrático;
- Teve,
apesar de tudo, consciência da existência de fraturas internas.
Em segundo
lugar, a ação militar do 25 de Abril reuniu certas condições, que podem ser
assim resumidas:
-
Alicerçou-se num sólido plano de operações;
- Isolou o
teatro de operações (constituído por todo o território português) e executou
uma convergência de forças para a cidade de Lisboa, sede do poder político;
- Usou a
rapidez de ação e a surpresa;
- Os
principais executantes tinham experiência de guerra.
E para além
disto tudo, os participantes tinham uma missão muito clara, constante do plano
de operações, como convém a toda a ação militar:
“A missão a atingir com a realização da operação é provocar o derrube do
Governo vigente, com o aprisionamento de todos os seus membros e do Presidente
da República, com o apoio e a acção activa ou passiva de todas as NF actuantes,
tendo em vista pôr imediatamente em execução o programa constante da
proclamação a dirigir à Nação logo após o golpe, visando a implantação, a curto
prazo, de uma democracia política como forma de governo no País”.
Podemos
então dizer que o golpe de Estado do 25 de Abril de 1974, que evoluiu depois
para um processo revolucionário, se baseou em algumas ideias invulgares:
- Derrubou
uma ditadura;
- Propôs a
instauração de um regime democrático, de partidos, com base num programa
político;
- Formulou
uma solução para o problema colonial através de negociações;
- Propôs um
programa de desenvolvimento económico e social de maior justiça.
Em suma,
depois da vitória, e através de um Programa pré-elaborado, o golpe de Estado
transformou-se numa Revolução, pela vontade e participação do povo de
Lisboa, que rapidamente se propagou a todo o país.
No que se
refere à questão colonial, o programa dos revolucionários expressou as
seguintes linhas de orientação:
a) A solução deveria
ser política e não militar;
b) Deviam ser
criadas condições para um debate nacional;
c) Era
indispensável o lançamento dos fundamentos de uma política que conduzisse à
paz.
Mas o programa
foi amputado, na noite de 25 para 26 de Abril, da alínea definidora de uma
verdadeira solução para a questão colonial, por divergências internas do
Movimento, que preconizava um
d) Claro reconhecimento do direito dos povos à
autodeterminação e adoção acelerada de medidas tendentes à autonomia
administrativa e política dos territórios ultramarinos, com efetiva e larga
participação das populações autóctones.
Essencialmente
por este motivo, os capitães presentes nos territórios coloniais ficaram numa
situação de significativa importância política, mas de frágil consistência
militar, quando se clarificaram as circunstâncias ao longo do dia 25 de Abril
de 1974.
O
que se passou então?
Os
capitães olharam-se e não puderam deixar de se questionar sobre o que fazer.
Estavam vitoriosos, mas a sua capacidade para agir era diminuta.
(Devemos
aqui ressalvar a iniciativa dos capitães de Bissau, que ao tomarem o poder
recuperaram a alínea excluída do Programa do MFA).
Para
todos os outros, a solução para o problema que essencialmente os preocupava, ou
seja, o fim da guerra, não ficara claramente definida em Lisboa. Esta situação
tendia a reproduzir uma dicotomia no MFA que já emergia na capital. As posições
dos elementos do movimento dos capitães, que agora se viam integrados num
espaço mais amplo constituído pelo MFA, encontraram terreno propício para
divergirem, desde o primeiro dia.
Em
segundo lugar, e fruto desta ambiguidade inicial, as posições dos principais
membros do movimento, acompanhados por todos aqueles que se integraram ou se
aproximaram, multiplicaram-se com base nas diversas interpretações das
mensagens divergentes que o novo poder central emitia.
A
primeira grande dificuldade foi a de definir um rumo.
E
se as divergências eram visíveis entre os aderentes ao MFA, todos aqueles que
se demarcavam da nova situação aproveitavam as divergências para se manterem
nas suas trincheiras.
Estávamos
entre um insuficiente Programa do MFA, cuja surpresa o manifesto de Cascais não
deixava adivinhar, e a solene declaração da JSN, referindo Portugal no seu todo
pluricontinental!
Estávamos
entre uma hierarquia militar e política apenas inquieta pelos protagonistas que
emergiam da mudança, mas suficientemente confiante na composição do poder que
se desenhava em Lisboa.
Estávamos
entre duas realidades persistentes que não se afigurava possível alterar, nem a
realidade da guerra ao longo de extensos territórios, nem a incapacidade de os
comandos militares assumirem as causas da mudança que os capitães acabavam de
provocar, ou seja, o fim da guerra.
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