A
quinta e última parte do texto sobre o Batalhão de Caçadores 10 de Bragança e a
sua participação na Grande Guerra leva-nos das vésperas do 9 de Abril até ao
regresso a Portugal. É um percurso árduo, violento e triste.
Chegado
aqui, atrevo-me a sugerir à Câmara Municipal de Bragança (onde não conheço
ninguém) a publicação do Relatório do major António José Teixeira, devidamente
transcrito, anotado e comentado. Seria uma bela homenagem aos soldados do
Nordeste Transmontano que participaram na Grande Guerra.
Parte
5:
Desenho
de um gerador de fumos alemão incluído no relatório do BI 10, desenho do major António José Teixeira, AHM |
No Inverno, a área do vale do rio Lys ficava inundada numa larga extensão,
e na Primavera, não passava muitas vezes de um pântano, por semanas a fio - um
verdadeiro horror para as tropas que estavam nas trincheiras nesta altura (…).
Era perfeitamente inaceitável pensar na
realização de um ataque antes do vale do Lys se tornar transponível. Em
circunstâncias normais de clima, só poderíamos esperar que o solo ficasse
suficientemente seco, em meados de Abril.
Mas pensei que não seria possível esperar
até essa altura para começar o combate decisivo no Ocidente. Tivemos de contar
com as perspetivas de intervenção americana.
Não obstante estas objeções ao ataque, tínhamos o
plano detalhado, pelo menos teoricamente (…).
Esta hipótese estava assente nos finais de Março. Logo
que vimos que o nosso ataque a Ocidente era inevitável, decidimos iniciar as
nossas operações na frente do Lys.
Uma pergunta dirigida ao Grupo de
Exércitos do Príncipe Herdeiro Rupprecht, trouxe a resposta de que, graças à
Primavera seca, o ataque em todo o vale do Lys se tornara viável (…).
Em 9 de Abril, aniversário da grande crise
em Arras, as nossas tropas passaram das suas lamacentas trincheiras na frente
do Lys para a frente de Armentières a La Bassée.
Entretanto, do lado aliado,
já ninguém tinha dúvidas da iminente ofensiva alemã. Contudo, as tropas
portuguesas, exaustas pelas condições que temos observado, iam ainda ser
submetidas a mais um período de intensos trabalhos, logo que entraram nas
linhas. De facto, e segundo o relato que seguimos:
As
linhas de Ferme du Bois encontravam-se num estado desgraçado, arrasadas,
lamacentas, com as passadiças desfeitas em muitos sítios; os nossos pobres
soldados, enterrados no lodo, andavam às apalpadelas, com os postos muito
diluídos em relação ao efetivo – era verdadeiramente pavorosa a situação!
Por seu lado, o general
Haking, comandante do XI Corpo visita a Divisão Portuguesa no dia 6 de Abril e
promete recompletar os efetivos, “declarando a todos que conhecia bem o estado
da Divisão que pertencia ao seu Comando”.
No dia seguinte, 7 de
Abril, a artilharia aliada desencadeia um largo bombardeamento “a fim de serem batidas todas as
comunicações do inimigo, o que estava de harmonia com o desejo de todos, visto
os boletins de informações virem acusando um desusado movimento nos arraiais
adversos, chegando-se a observar a descarga de 40 ou mais camiões com munições.
Preparava-se algum grande acontecimento”.
Mas ainda antes do dia
fatal, nova surpresa estava reservada à tropa portuguesa! De facto, como o major
António José Teixeira esclarece:
Foi
grande a surpresa de todos, quando em 8 a 5ª Brigada recebeu ordem de rendição,
devendo o seu comandante combinar, nessa noite, com o comandante duma Brigada
da Divisão 55ª, os trabalhos da rendição para o dia seguinte.
A
5ª Brigada estava depauperadíssima, os seus efetivos eram de 104 oficiais e
2949 praças, faltando-lhe, portanto, 64 oficiais e 1543 praças, números muito
afastados do efetivo.
Parecia que tudo se
conjugava, mercê de uma série de circunstâncias que concentram
responsabilidades políticas e militares, de comando e de planeamento,
operacionais e pessoais, para que a Divisão Portuguesa tivesse que morrer nas
linhas, independentemente da sua condição militar ou das suas capacidades de
resistência!
No nosso relato ficou o
desabafo do último comandante do BI 10:
Pela
noite de 8 tinha-se pois recebido a informação de que Infantaria 10 seria
rendida em 9, e é nesta confusão e com as malas preparadas para se sair do
sector, que rebentam as primeiras granadas de 38 cm de calibre, a anunciar a
grande ofensiva sobre o front português, a dar início à grande batalha do Lys!
Das memórias de Douglas
Haig, comandante dos Exércitos britânicos, retiram-se algumas justificações
para o desastre que se abateu sobre as tropas portuguesas, mas não ficam claras
quaisquer responsabilidades sobre os erros que evidentemente conduziram à
situação.
O comandante-chefe justifica assim a ofensiva alemã:
A preparação do inimigo para uma ofensiva neste sector central tinha sido
concluída há algum tempo. O admirável e extenso sistema ferroviário tornou
possível, com grande rapidez, a concentração de tropas necessárias para um
ataque. As minhas forças neste sector não poderiam ser grandemente reduzidas.
Em consequência destes vários fatores, a
maior parte das divisões na linha de frente, e em particular a 40ª, 34ª, 25ª,
19ª e 9ª Divisões, as quais em 9 de Abril estavam na frente, entre o sector
Português e o Canal Ypres-Comines, já tinham tomado parte na batalha do Sul.
Deve considerar-se que, antes da batalha do norte se iniciar, quarenta e seis
das minhas cinquenta e oito divisões, tinham estado empenhadas no sul.
No final de Março, no entanto, a parte
norte da frente secou rapidamente sob a influência de uma Primavera muito
quente, ficando em condições de sofrer um ataque mais cedo do que seria de
esperar. Preparativos para apoiar a Divisão Portuguesa, que tinha estado
continuamente em linha por um longo período e precisava descansar, foram feitos
durante a primeira semana de Abril, e deveriam ter sido concluídos até à manhã
do dia 10 de Abril. Entretanto, outras divisões, que tinham sido empenhadas na
luta no Somme e que tinham sido retiradas para descansar e se reorganizarem,
foram transferidas para a frente do Lys. (…)
A persistência do bom tempo fora da
estação e a secagem rápida do vale do Lys permitiu ao inimigo antecipar o
ataque à 2ª Divisão Portuguesa.
Na noite de 9 de Abril,
um invulgar bombardeamento pesado e prolongado, também com gás, foi iniciado ao
longo de praticamente toda a frente de Armantières a Lens, cerca das 4,0
horas, do dia 9 de Abril.
(Sir Douglas Haig’s Despatches. Ver
em: http://www.bataille-de-la-lys.com/fr/documents/sir_douglas_haig_despatches.html#ref1#ref1)
Por seu lado, no seu
relatório, o último comandante do BI 10 inicia deste modo a descrição da
batalha:
A
ofensiva de 9 de Abril, no velho campo de batalha de Messines teve lugar entre
o canal de La Bassée e Bois Grenier, numa extensão aproximada de 18
quilómetros, sendo mais de 10,5 confiados à guarda dos nossos Lusos, entre Bond
Street ao Norte e a Schetland ao Sul, ocupando o Batalhão de Infantaria 10 a
frente compreendida entre a Schetland ao Sul e a trincheira Cokspur ao Norte,
numa extensão de cerca de 2000 metros.
E quanto ao duelo principal
que se travou no início da ofensiva, a desproporção não podia ser maior:
Calculava-se
que as oito Divisões que se empenhavam na batalha deveriam ter a auxiliar-lhes
a ação 1500 canhões. Nós tínhamos 76 peças de campanha e 16 obuses, com uma
escassa artilharia pesada dos ingleses!
O major António José
Teixeira descreve em seguida todo o dispositivo das unidades e postos da noite
de 8 para 9 de Abril, mencionando o nome de todos os responsáveis, oficiais e
sargentos, que se encontravam nas várias linhas e no comando. O Batalhão era
comandado pelo major Guilherme Correia de Araújo.
Segue-se, ao longo de
muitas páginas, a descrição da Batalha e da evolução da situação durante a
noite e manhã do dia 9 de Abril, acabando com a descrição pormenorizada de
todas as companhias e dos seus feitos, começando pela 3ª Companhia, colocada na
direita do sector, em contacto lateral com a primeira unidade da 55ª Divisão
inglesa, passando pela 1ª Companhia, à esquerda, pela 4ª Companhia, em apoio, e
terminando na 2ª Companhia, em reserva.
Finalmente, o major António
José Teixeira finaliza o seu relatório com uma homenagem a todos os que se
bateram e sacrificaram nas condições que ficaram bem claras na sua memória
escrita:
O
discurso do general britânico Haking, sintetizado na frase para sempre
histórica ‘A Divisão portuguesa tem de morrer na B line’ foi bem interpretada
pelo heroico Batalhão de Infantaria 10, que, se não morreu totalmente nessa
linha, é porque isso não estava escrito no livro do Destino, pois, a coragem e
a abnegação, o arrojo e o génio, o heroísmo e o sacrifício dos seus valentes
soldados revelaram-se em atos que ninguém pode descrever, mas que se traduzem
na pálida e descolorida narração que aqui fica, a que devemos juntar a ideia
duma superioridade numérica esmagadora, que chegava em sucessivas avalanches; o
envolvimento perfeito e ainda a ação deprimente dum bombardeamento jamais
presenciado pelas topas da Grande Guerra…
É
assim que se luta e é assim que se morre, vivendo sempre para a Pátria e para a
Imortalidade.
E nós, colocados na
circunstância de lembrarmos os nossos soldados da Grande Guerra, que nos
transmitiram uma lição de vida e de apego aos valores que nos unem, deixamos
aqui uma profunda homenagem e declaramos que o seu sacrifício não pode ter sido
em vão!
Terminada a batalha, outra
tragédia se inicia para os militares portugueses. Naqueles dois dias foram
feitos prisioneiros mais de 6500 militares portugueses, 270 oficiais e 6315
sargentos e praças, como rezam as estatísticas. O BI 10 teve 21 oficiais e mais
de 300 sargentos e praças prisioneiros de guerra.
Como o major António José
Teixeira também foi feito prisioneiro, o seu relato transmite-nos um profundo
conhecimento das circunstâncias e dos trabalhos por que passaram os militares
portugueses até ao fim da guerra, num texto denso e muito sentido. No final da
guerra foram entregues pela Alemanha a Portugal 269 oficiais, 362 sargentos,
689 cabos e 5447 soldados, num total de 6767 militares. Faleceram nos campos
alemães 5 oficiais, 13 sargentos e 215 cabos e soldados. Os oficiais
portugueses acabaram por chegar ao campo de Breesen, mas as praças foram
espalhadas por diversos campos, em muitos dos quais poucos apoios conseguiram
ter, ou foram aproveitadas para trabalhos em vários lugares e mesmo próximo da
frente. Foi nesta situação que vieram a saber da assinatura do armistício e da
cláusula que obrigava a Alemanha a proceder, no prazo de 30 dias, à “evacuação
de todos os seus prisioneiros de guerra”.
A
alma de cada um vibrava intensamente de alegria, não só por ver alfim tombar o
despótico poder kaizeriano, mas também por todos irem em breve contemplar o sol
doirado da Liberdade que tanto ambicionavam, e ainda por se pensar que também
em breve se pisaria o solo abençoado da Pátria.
E assim termina a história
do BI 10 de Bragança elaborada pelo seu último comandante, major António José
Teixeira, não sem que ele nos deixe como mensagem final alguns versos de
Camões, findando:
Podeis vos embarcar, que tendes vento
E
mar tranquilo, para a Pátria amada (Estância 143 do Canto X
dos Lusíadas).
Como anexos, encontramos
ainda os seguintes quadros, que completam o relatório apresentado:
·
Relações dos oficiais mortos
·
Relação das praças mortas
·
Relação de praças desaparecidas
·
Relação dos militares condecorados com a
cruz de guerra
·
Relação de oficiais, sargentos e soldados
louvados
·
Relação dos oficiais prisioneiros de 9 de
Abril
·
Quadro dos oficiais que fizeram parte dos
efetivos do BI 10 na Grande Guerra
·
Quadro dos sargentos que fizeram parte dos
efetivos do BI 10 na Grande Guerra
·
Relação do pessoal (sargentos músicos) que
fazia parte da banda de música que destacou com o Batalhão para a Flandres
·
Relação dos sargentos artífices que faziam
parte do Batalhão.
Ao acompanharmos estas
páginas de sofrimento, sacrifício, valentia e desastre, temos todos mais uma
oportunidade de nos questionar, não apenas sobre a Grande Guerra em especial,
mas naturalmente sobre todas as guerras (sobre as guerras que querem pôr fim a
todas as guerras e sobre as guerras que previnem outras guerras); também sobre
Portugal e sobre a Europa; ou sobre o Mundo e a mundialização.
Para que não seja em vão o
conhecermos o cortejo de dramas que a ela estão inevitavelmente associados.
Para que nunca deixemos de ter presente a interrogação decisiva e permanente,
perante qualquer toque das trombetas de guerra.
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