A parte 4 do texto sobre a
presença na Flandres do Batalhão de Infantaria 10 de Bragança, leva-nos desde
Janeiro de 1918 até às vésperas do 9 de Abril, batalha em que participou nas
linhas da frente.
Parte
4:
de uma trincheira incluído no relatório do BI 10, desenho do major António José Teixeira, AHM. |
Entretanto, nos primeiros
dias de Janeiro o comandante do Batalhão, major Correia Soares, entrou de
licença e foi substituído pelo major Guilherme Correia de Araújo. Será este que
recebe a ordem de as rendições se passarem a fazer de quatro em quatro dias e
não de seis em seis como era habitual. A medida, que causava bastantes
transtornos pela frequência de mudanças nas trincheiras, justificava-se por
parecer médico, “atendendo ao período de invernia que atravessamos e
consequentemente ao maior esgotamento que as baixas temperaturas produzem”. De
facto, os “clínicos” atribuíam à permanência nas trincheiras “as doenças dos
olhos que agora intensamente se manifestavam, causadas pelas reverberações dos
campos nevados e pela atenção que a sentinela necessitava ter, de dia e de
noite, sobre a terra alva que dia a dia, hora a hora se disputava”.
Como resultava sempre uma
clara desvantagem para o atacante em qualquer manobra assente no movimento de
tropas, as frentes de combate mantiveram-se quase estáticas ao longo de um
grande período, uma vez que as defesas estavam organizadas nas trincheiras e no
uso intenso de fogos de metralhadora, morteiros e artilharia. Quando as tropas
portuguesas ocuparam o seu sector ainda este impasse continuava e por isso se
planeavam, por vezes, operações de bombardeamentos mais intensos, por forma a
aliviar a pressão que o inimigo exercia sobre as trincheiras com ações de
bombardeamentos dispersos, mas persistentes. Foi o que aconteceu em 18 de
Janeiro, na frente da 5ª Brigada, onde se incluía o Batalhão de Infantaria 10.
Nesta situação recomendava-se às tropas que, depois do bombardeamento e
prevendo uma resposta do inimigo, deveriam fazer o seguinte:
Tendo
a experiência demonstrado que há toda a vantagem em que as tropas que guarnecem
a 1ª linha saiam para a terra-de-ninguém e se abriguem nas crateras de
morteiros, logo que o inimigo faça um bombardeamento intenso (não só porque
deste modo ficam fora da zona batida, mas também porque mais facilmente
repelirão o inimigo que porventura tente fazer um ataque em seguida ao
bombardeamento), recomenda-se a todos os graduados que assim devem proceder,
cumprindo-lhes explicar às praças as vantagens da adoção desta medida.
O autor do relatório que
estamos seguindo não nos esclarece contudo, se tal medida chegou alguma vez a
ser seguida!
O mês de Fevereiro de 1918
passa-se em rendições sucessivas, ora nas primeiras linhas, ora em apoio, ora
em reserva, sendo que em nenhumas das situações as tropas tinham qualquer
verdadeiro descanso. Quando chega o mês de Março, as atenções voltam-se para o
Somme, onde vai desenrolar-se a grande ofensiva alemã, ação que “faz retirar da
nossa retaguarda muita artilharia inglesa, que defendia estas paragens”.
As tropas portuguesas estão
numa altura crucial. A atividade militar vai intensificar-se na frente
ocidental, como consequência da decisão alemã de encontrar sem demora uma saída
definitiva para o impasse das trincheiras. Mas é exatamente por esta altura que
as tropas portuguesas, sem o apoio que seria normal por parte dos responsáveis,
se encontram num período de terrível depauperação física e moral. Sigamos o
relato:
É
extrema a miséria física em que se encontram os nossos soldados; não há grandes
nem pequenos descansos, não há licenças, nem reforços; morre-se e não se é
rendido… De Portugal nada chega!
Entre
os soldados lavra um intenso descontentamento. Esta vida na Village Line é mais
martirizante que a das trincheiras. Dizia-se que isto era um repouso!...
Meses
de trincheiras, sem descanso, sob o terrível e inclemente Inverno, e
morrendo-se por conta-gotas!... (…)
As
intoxicações sucedem-se. Os comandantes de Companhia mantêm as suas unidades,
reduzidas dia a dia!... Os seus soldados parecem uma legião de proscritos,
miseravelmente abandonados pela Pátria…
Eles
ali estão pálidos, exaustos pela falta de descanso durante o dia e de
tranquilidade durante a noite; os pulmões envenenados pelos gases, sem
esperança de serem rendidos e sem apoio moral das instâncias superiores.
Raro
é o dia em que não surge mais um com os pulmões corroídos pelos malditos gases!
Neste terrível mês de Março
a situação era de tal forma preocupante, que o alferes Abel Estima, que
comandava a 4ª Companhia, informava o comando do Batalhão do seguinte:
Após
o bombardeamento de gás desta manhã, que durou seis horas consecutivas, em que
todos mais ou menos apanhámos gás, a minha Companhia ficou reduzida ao seguinte
(…): 1º pelotão, 15 soldados e um 1º sargento; 2º pelotão, 21 soldados e dois
sargentos; 3º pelotão, 22 soldados e três sargentos. Destes, uma grande parte
piora de tarde, e amanhã, naturalmente, não se aguentam.
Como
hei de constituir as forças que hão de ficar?
E
se amanhã, como é provável, tudo tiver piorado?
Quem
são os oficiais que ficam?
O
comando de Companhia retira?
Aguardo
instruções de V.Exª.
Estas as terríveis
perguntas que os comandos subordinados faziam, e a que os comandos superiores
não sabiam responder. Por isso, o major António José Teixeira, que escreve este
relatório depois da guerra, esclarece: “Estava escrito que jamais chegaria o
decantado roulement, e que o C.E.P. era coisa para se gastar!...”.
Entretanto, a situação
conheceu um novo rumo.
Gomes da Costa, que
assumira o comando da 2ª Divisão em 20 de Março, visita as unidades dos vários
sectores e refere o aumento de atividade do inimigo, mostrando “claramente a
possibilidade de uma ofensiva, atendendo aos movimentos observados na zona de
retaguarda do inimigo, à atividade da aeroplanagem e aos repetidos
reconhecimentos de patrulhas”.
O comandante da 2ª Divisão
não deixa de acentuar o estado das tropas e a necessidade urgente da sua
completa substituição. Lembra que a Divisão Portuguesa em primeira linha tinha
conhecido, no período de Dezembro a Abril, três Divisões diferentes à direita e
quatro à sua esquerda, rendidas sucessivamente. E acrescentava:
Com
um cansaço impossível de descrever; com o moral esmagado pelo espírito de
sacrifício, verdadeiramente aniquilado pela tristeza que causava o saber-se que
oficiais que tenham partido de licença haviam ficado anichados na Guarda
Republicana, nos corpos pretorianos ou nas comissões de serviço!...
Mas
que condições!
Embora a 5ª Brigada fosse a
que menos dias tinha de primeiras linhas (cerca de três meses), uma vez que
fora a última a assumir a responsabilidade de um sector, a verdade é que esse
tempo coincidira com o Inverno rigoroso, o que depauperara os homens até um
extremo limite.
Sabendo-se das intenções do
inimigo, que estaria a preparar um ataque de grandes dimensões, o comando
inglês fez algumas alterações significativas. Em primeiro lugar, manteve na
frente apenas a 2ª Divisão, que passou ao comando do XI Corpo inglês, general
Haking (1), deixando o C.E.P. de ter responsabilidade operacional a partir de 6
de Abril; em segundo lugar planeou a rendição da 2ª Divisão, primeiramente para
o próprio dia 6 de Abril e depois para os dias 9 a 11 de Abril. Entretanto, a
2ª Divisão ocupou as primeiras linhas, com as 5ª, 6ª e 4ª Brigadas
respetivamente nos sectores de Ferme du Bois, Neuve Chapelle e Fauquissart. O BI
10, pertencendo à 5ª Brigada, ocupou o subsector mais à direita de Ferme du
Bois, ficando em contacto com o Batalhão mais à esquerda da 55ª Divisão
britânica.
Prevendo-se a aproximação
de uma situação muito difícil, de que já ninguém tinha dúvidas, o general Costa
Gomes faz ainda um último alerta:
O
C.E.P. tem tido a seu cargo um sector, para o qual dispunha de seis Brigadas,
sabendo todos quanto, devido à escassez de efetivos, à falta de quadros e
ainda, ultimamente, devido a uma certa fadiga e depressão moral, esta defesa se
estava tornando precária.
Acabando
de receber ordem para guarnecer o mesmo sector, apenas com quatro Brigadas, de
efetivos depauperados, e com falta de 139 oficiais e de 5792 praças, acato a
ordem recebida, mas não posso deixar de declinar toda a responsabilidade do que
venha a acontecer.
O major António José
Teixeira dá-nos conta da situação que se vivia:
A
desmoralização que havia atingido outras unidades tinha crescido pavorosamente.
Infantaria 7 havia-se revoltado, recusando-se firmemente a entrar nas linhas,
justamente no dia 4 de Abril.
Foi
esta revolta que provocou a retirada da frente da 2ª Brigada e obrigou toda a
5ª BI a fazer uma rendição precipitada e sem um metódico reconhecimento do novo
sector que lhe destinavam.
Esperava-se,
e era lógico, que o Batalhão do 10 fosse transportado em camiões até L’Epinett,
dada a urgência, porque tinha de realizar a ocupação, e ainda mais lógico
pareceu o facto, quando se soube que as forças que ocupavam o sector de Ferme
du Bois retiravam em camiões.
Mas
Infantaria 10 estava condenada a fazer (a pé) este terrível percurso, através
dessas estradas lamacentas, encharcadas, e por uma noite escuríssima (…)
Houve
grande descontentamento entre as praças. Houve mesmo ligeiros episódios que
esboçaram evidentemente, talvez pela primeira vez, má vontade com que
executavam uma ordem dimanada dos seus superiores. Mas a energia dos oficiais,
a decidida boa vontade e o prestígio de muitos, (…) fizeram com que nesta
unidade não se acentuasse o mais pequeno gesto de repulsa por uma ordem que a
todos deixava visivelmente contrariados, por lhes parecer pesada e pelas
circunstâncias de que se estava rodeando o moral de todos.
E remata assim o relator:
Depois
duma marcha fatigante e penosa, deu entrada o Batalhão nas linhas, às cinco
horas, podendo ouvir o capitão Luís Emílio Ramires (2) da boca de um seu
camarada que ia ser rendido, uma frase que denotava a disciplina, a ordem e o
espírito de sacrifício do soldado do Nordeste de Trás-os-Montes:
-
Muito bons soldados têm vocês!...
Nada aliviava o sofrimento
dos soldados portugueses. Todas as condições pareciam conjugar-se para tornar
cada vez mais difícil a sua participação neste longínquo e excessivo esforço de
conter os planos alemães.
……
1 Richard Haking (1862-1945),
general britânico, comandante do XI Corpo de Exército na Grande Guerra. Em 1914
comandou a 5ª Brigada de Infantaria na Batalha de Mons, e a 1ª Divisão na
Batalha de Aubers Ridge ou Batalha de Fromelles. A partir de Setembro de 1915
passou a comandar o XI Corpo, comando que manteve até ao final da Guerra. Nunca
ficou completamente esclarecido o plano de rendição da 2ª Divisão Portuguesa,
exatamente para 9 de Abril, dia da ofensiva alemã (operação Georgette).
2 Luís Emílio Ramires (1882-1961), coronel,
nasceu no Porto. Fez parte do C.E.P., embarcando em Lisboa a 7 de Agosto de
1917. Tomou parte na Batalha de La Lys, sendo feito prisioneiro. Regressou a
Portugal em Fevereiro de 1919. Em 1932 comandou o Batalhão de Metralhadoras 2.
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