Na terceira parte da conferência
“Chaves e a República”, faço um passeio pela História, uma reflexão entre a
República e o papel dos historiadores… Nestas conferências há sempre a tentação
de aproveitar a ocasião para falar de temas que nos são caros, difíceis de
abordar noutras circunstâncias.
Parte
3
Litografia de Cândido da Silva (?) alusiva à revolução republicana de Outubro de 1910. |
Passemos
então a outro assunto sobre o qual gostaria de reflectir, no âmbito do
centenário da República que aqui também evocamos.
As
questões principais do novo regime português são conhecidas. A posição de
Portugal no Mundo não se alterou substancialmente com a implantação do regime
republicano. O essencial manteve-se, e tinha a ver com a ligação à política da
Inglaterra, o equilíbrio das relações com Espanha (que a República agravou) e a
defesa do império colonial. Especificamente, como problema novo e inerente ao
regime republicano, deve considerar-se a necessidade de ver a nova situação
reconhecida pela comunidade internacional.
Internamente
são vários os desafios das novas autoridades – a consolidação interna das novas
instituições, o apoio do Exército ao regime, a resolução das relações com a Igreja
e a difusão do ideal republicano no seio de uma sociedade estruturalmente
atrasada.
Não
faltavam desafios às novas autoridades republicanas!
Visitemos
então esses tempos, como amantes da História, apaixonados pela investigação do
tempo dos nossos avós, interessados em colher lições, em compreender atitudes,
em reconhecer a memória que nos foi legada.
Não
vamos falar de correntes e teorias da História. Quando analisamos uma época
histórica nem sempre seguimos teorias. Por vezes seguimos uma ideia, a nossa
ideia. Essa ideia pode ligar-se à nossa vivência pessoal. Podemos ser, por
exemplo, construtores de pontes, de diálogos, de reconhecimentos, de
aproximações. Não desejamos acentuar rupturas – queremos acalmar os
ressentimentos, atenuar os mal-entendidos, desvalorizar as mágoas.
As
incursões monárquicas destes difíceis anos de 1911 e 1912 puseram em causa as
relações de vizinhança entre os dois países ibéricos – Portugal e Espanha. Mas
se nos servirmos deste infeliz episódio das nossas relações para chegarmos ao
sentido actual da nossa história comum, temos de o reduzir àquilo que ele foi
na prática, como acontecimento, não o encarando nem na sua dimensão mítica, nem
como sinal de qualquer utopia.
Por
outro lado, é sempre necessário retomar o estudo da História, porque só assim
ela se mantém viva. Uma comunidade científica e académica atenta regressa
sempre a velhos debates, para além, evidentemente, de nos lançar novos
desafios. Mas as condições de cada época propiciam a reabertura de discussões e
polémicas que pareciam adormecidas. Esta questão que aqui estou lembrando faz
parte daquelas pendências recorrentes. Portugal e Espanha merecem que possamos
sempre reabrir, nas circunstâncias de cada época, as nossas permanentes
pendências.
Partir
de um facto, entre muitos outros, é um privilégio do historiador. Na linha da
História, ele coloca-se num momento e num lugar e, partindo de ali, observa o
passado e pronuncia-se sobre o futuro. Outro privilégio é que ele conhece o
futuro. Podemos escolher as incursões monárquicas. No centenário da República
que também aqui comemoramos, não deve surpreender-nos esta escolha. Um momento
delicado das relações peninsulares, uma questão longamente debatida, uma
lembrança porventura embaraçosa. Mas ainda assim, não nos pertencerá a palavra
final. Em História, ninguém tem a palavra final. Também por isso, a História
não morre.
A
verdade é que, depois de tantas teorias que encaixilharam a História, estamos,
na presente época, de regresso à narrativa. Aos factos. Às personagens. Neste
caso, às incursões monárquicas em Portugal a partir da Galiza em 1911 e 1912 e
ao mundo complexo que rodeia os protagonistas.
Devemos
confrontar os intervenientes, pesar as suas ideias e actos, analisar os
respectivos envolvimentos. Explorar, do ponto de vista histórico, os
acontecimentos, as suas razões e os respectivos resultados. Passear pelos
campos de batalha (Vinhais e Chaves), pelos teatros de operações (Galiza e
Trás-os-Montes) e pelas respectivas retaguardas (Lisboa e Madrid, e mesmo Londres
– a propósito, não será Londres um dos eixos fundamentais para deslindar o
enredo desses pesados meses?). Este passeio abre-nos caminhos de reconhecimento
para múltiplas observações, e para uma apreciação dos factos. A prudência do
historiador obriga-o a dar expressão às hesitações que descobre nos actores, às
dúbias interpretações que cada um faz do seu próprio envolvimento, às
dificuldades que os homens do terreno e mesmo das chancelarias têm em conhecer
as linhas gerais da grande política.
Bem
vistas as coisas, as incursões são um pretexto para todas as partes. Pode ter
sido fabricado ou simplesmente aproveitado. O que está subjacente ao episódio
militar, é uma enorme operação de propaganda (numa expressão de uso mais
tardio) de ambas as partes. A exaltação do ideal monárquico através da acção, e
a glorificação das novas instituições republicanas através da vitória sobre a
ameaça à integridade da nação.
Há
quem defenda que a História é a história dos vitoriosos. A República (todos os
sistemas, todos os regimes, todos nós?) precisava de vitórias. Conquistara com
um golpe desarticulado (um golpe de sorte?) o poder. Herdara um país, mas era
imperioso criar um estado, desejava edificar um regime, queria consolidar um
partido, precisava de um exército. Estado-regime-partido-exército: eis o
percurso da República. O Exército só o construiu a partir de Chaves. Um
exército só se solidifica com a materialização de “ameaças”. Os combates de
Vinhais e de Chaves concretizavam as ameaças – o regresso dos monárquicos e o
perigo da intervenção de Espanha. Para o Partido Republicano as circunstâncias
caíam-lhe do céu. Podemos nós questionar o aproveitamento que delas fez?
Resta-nos apenas analisar os acontecimentos e (só cada um o decidirá) tirar
deles paralelismos para outras circunstâncias e para outros cenários, de outros
passados ou mesmo de diferentes presentes.
Tenho
a ideia que, como historiadores, devemos ser pesquisadores de realidades,
analistas de factos, investigadores de provas. Dando a devida importância à
dimensão do mito, do processo ideológico, à construção da identidade, às
utopias persistentes. Vinhais e Chaves são, para além de factos locais com
repercussão internacional, emergências de uma nova mitologia republicana, feita
evidentemente de heroísmos, de vibração popular e de afirmação de novos
porvires. A habilidade dos republicanos foi a de explorarem os acontecimentos
no limite da rotura com Espanha. Não foi a primeira vez, nem a última na
história dos dois países vizinhos.
E
sempre que as circunstâncias o proporcionam, o problema está de regresso. Cabe
pois aqui, perguntarmos se Portugal é um enigma. A verdade é que toda a
realidade humana comporta um enigma. A constituição, sobrevivência, afirmação e
identidade das nações, como hoje as conhecemos, sempre nos provocarão novas
interrogações. A História não tem outro fim senão explicar os sucessivos
enigmas das construções humanas. A questão nacional é uma permanente
preocupação intelectual. Poucos pensadores escapam a esse desafio. Enunciar os
portugueses que foram atraídos para este assunto seria enunciar uma imensa
galeria de todos os que edificaram um pilar importante da identidade
portuguesa.
Nessa
medida, Portugal, como muitas outras realidades humanas, foi e continua sendo,
um enigma. Continuar a estudar os acontecimentos que aqui nos reúnem é um
contributo para a descoberta das chaves que o explicam.
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