terça-feira, 27 de dezembro de 2016

HENRIQUE, O NAVEGADOR?



Em 2002, uma revista espanhola pediu-me para escrever um texto sobre D. Henrique, o Navegador. Não era esta decididamente a minha área, mas pareceu-me uma boa oportunidade para alargar um pouco os meus temas preferidos. E sendo o texto publicado em Espanha, não haveria grande repercussão!

Escrevi um texto genérico pois isso me tinha sido pedido, com o título em Português: “Henrique, o Navegador?”, assim mesmo com ponto de interrogação. Mas o tradutor achou que deveria ser erro, e traduziu para: “Enrique el Navegante: la aventura imperial portuguesa”. Nunca tive um exemplar dessa revista, mas sei hoje que se chama “Clio, Revista de História” e publicou o meu texto no seu número 8, em 2002, pp. 84-86.

Deixo aqui o original, em que também participou o meu amigo David Martelo, agora com o título inicial.


Infante D. Henrique, pormenor da Sala do Infante
do Museu Militar, da autoria de José Malhoa.

Apresentar Henrique, o Navegador, é entrar num jogo de sombras, com claros e escuros, ditos e desditos, encenações, controvérsias e paixões. Abra-se a porta ao mito! Ninguém negue as pequenas certezas, mas não reduza ao homem, a mudança do mundo. Estude mais. Visite Lisboa, cabeça da expansão marítima, e Sagres, suposta escola de marinharia henriquina. Vá a Ceuta e Tânger, onde esteve Henrique, mas não faça viagens marítimas nas caravelas portuguesas – Henrique, o Navegador, nunca as fez... Volte ao mundo medieval, mas seja rápido – o mais provável é ficar do lado errado. Regresse aos nossos dias tranquilos e recorde o que viu. Não imponha padrões, não julgue, não aplique sentenças. Tente simplesmente compreender.


Henrique, o Navegador nasceu em 1394, na cidade do Porto. Era o quinto filho do rei D. João I e da rainha D. Filipa de Lencastre, neta de Eduardo III de Inglaterra. D. João I subira ao trono, em Abril de 1385, após um período de dois anos de convulsões internas, em luta com a princesa herdeira D. Beatriz, esposa de João I de Castela, contra a hipótese da união de Portugal com Castela. O futuro D. João I de Portugal, Mestre da Ordem de Avis, encabeçou o partido que se opunha à união, com o apoio da burguesia de Lisboa. A vitória sobre Castela, em Aljubarrota (14-08-1385), consolidou a posição de D. João I e possibilitou o lançamento de uma nova dinastia – a dinastia de Avis. Significativa parte da nobreza portuguesa foi derrotada; a nova dinastia vai criar uma nova nobreza e aceitar a influência política dos mais abastados sectores da burguesia comercial e marítima.

Neste quadro de renovação política nasceu e cresceu o príncipe Henrique. Embora a guerra com Castela prossiga até 1411, já anteriormente a essa data se faziam na Corte portuguesa planos para o futuro. Os novos grupos sociais desejam afirmar-se através de empreendimentos que libertem Portugal do reduzido espaço no Oeste da península Ibérica. A clausura geográfica da época é afirmada pelo cronista Zurara: «Cá nós de uma parte nos cerca o mar e da outra temos muro no reino de Castela». Não podendo crescer para oriente, a Geografia punha o mar como destino dos novos senhores de Portugal.

Concertadas as condições de segurança na fronteira terrestre reforçam-se os olhares ultramarinos. De novo Zurara: “Saber a verdade...da terra que ia além das ilhas de Canária”; “trazer mercadorias, que se haveriam de bom mercado”; “saber o poder do seu inimigo”; “saber se se achariam em aquelas partes alguns príncipes cristãos”; “acrescentar a santa fé”. Dois caminhos complementares, embora opostos foram seguidos pela aventura portuguesa: o Norte de África (trigo, terras, combate à pirataria, domínio do estreito) ou para Sul, ao longo da costa africana (escravos, comércio, especiarias).

D. Henrique acompanhou com grande entusiasmo a ideia de se atravessar o mar e conquistar Ceuta. Embora tendo passado à história como grande impulsionador das navegações, D. Henrique colocou um grande empenho nos empreendimentos militares no Norte de África. De acordo com a tradição medieval, a sua participação, como combatente, na tomada de Ceuta – juntamente com os seus irmãos mais velhos, Duarte (futuro rei) e Pedro – serviria, também, como «prova de fogo» para ser armado cavaleiro.

No regresso da expedição recebeu o título de Duque de Viseu e, em Fevereiro de 1416, o rei deu-lhe o encargo de superintender na governação e defesa de Ceuta. No seu espírito cresceu a ideia de que, a Ceuta, era necessário acrescentar outras conquistas para consolidar a posição portuguesa em Marrocos. Por isso a sua nomeação para governador da Ordem de Cristo, em 1420, representou um impulso para a política de expansão, pelos avultados rendimentos da Ordem. Com esses meios, D. Henrique virou-se por inteiro para as tarefas das conquistas e dos descobrimentos marítimos, não chegando, jamais, a contrair matrimónio.

A primeira fase deste empreendimento vai de 1419 – ano da descoberta da ilha de Porto Santo – a 1437. Desenvolveram-se as técnicas de navegação e a cartografia e definiu-se como objectivo a transposição do cabo Bojador, feito conseguido em 1434, graças aos esforços do navegador Gil Eanes.

O ano de 1437 marca o regresso à política de reforço da presença no Norte de África. D. Henrique foi o principal impulsionador de uma nova expedição militar. Conta com o apoio entusiástico de seu irmão mais novo, o infante D. Fernando, que, tendo nascido em 1402, não tomara parte na tomada de Ceuta por ser, ainda, muito jovem. Prepara-se, assim, uma acção militar para a conquista da cidade de Tânger. A operação está longe de colher a unanimidade. A ela se opõem, entre outros, o infante D. Pedro, irmão do rei e de D. Henrique. A acção militar, capitaneada por D. Henrique, seria um completo desastre, terminando, mesmo, com a captura de D. Henrique e de D. Fernando pelas tropas da guarnição de Tânger. Para poder embarcar de regresso a Portugal, D. Henrique comprometeu-se a devolver a cidade de Ceuta, ficando em Marrocos, refém dessa promessa, o infante D. Fernando. Regressado a Portugal, D. Henrique pressionou o rei D. Duarte I no sentido de não restituir Ceuta. O rei acabou por ceder, deixando o infante D. Fernando no cativeiro até à sua morte, em 1443.

D. Duarte faleceu no ano seguinte. A sua morte prematura deixou o reino numa crítica situação. O filho primogénito – futuro D. Afonso V – tinha apenas 6 anos. A inevitável regência, até aos 14 anos, acarretou conflitos entre partidos, mas o infante D. Pedro acabou por assumir a governação do reino.

Durante o período da regência prosseguiram as viagens de descobrimento, sob a orientação de D. Henrique. D. Pedro, todavia, tinha ideias profundamente divergentes sobre a política de expansão no Norte de África. Mas é D. Henrique quem está mais próximo do príncipe D. Afonso, afastando-o politicamente do tio regente. Ao atingir a idade de governar (1446), D. Afonso V cedeu às pressões políticas hostis a D. Pedro, e afastou o tio da Corte. O processo de intrigas políticas que se seguiu terminou, tragicamente, num confronto armado (Alfarrobeira, 1449) em que morre o ex-regente.
        
     D. Henrique viveu mais 11 anos. As viagens prosseguiram ao longo da costa africana, sendo descobertas algumas das ilhas de Cabo Verde (Cadamosto, 1455-1456) e a embocadura do Geba (Diogo Gomes, 1456). Em 1458, D. Henrique ainda acompanhou o rei na conquista de Alcácer Ceguer. Finalmente, pouco antes da sua morte, em 1460, Pedro de Sintra atingiu a costa da Serra Leoa.

        Em suma, Aljubarrota não tem apenas um significado militar. Ela proporcionou, pela primeira vez na Europa, à escala de um país, a substituição da velha ordem feudal por uma burguesia triunfante. Podem os novos detentores do poder imitar os rituais da tradição, ser armados cavaleiros, reproduzirem encenações, mas não poderão nunca libertar-se daquilo que os distingue – a primazia do negócio, do comércio, do dinheiro. Essa classe subiu ao poder com D. João I, lutou denodadamente pela sua afirmação, resistiu e cedeu, fez compromissos e impôs condições, jogou num xadrez complexo de relações, avançou e recuou, mas nunca mais perdeu de vista os seus objectivos, nunca mais desagregou a sua estratégia, nunca mais largou o seu quinhão de poder. Este jogo de poderes determinou toda a política portuguesa do século XV, recrutou figuras eminentes, produziu decisões de efeitos profundos, levou Portugal à primazia europeia da expansão marítima.
       
Esta nova classe burguesa, nobilitada à maneira medieval, apoiou a paz com Castela (1411), entusiasmou-se com a conquista de Ceuta (1415), opôs-se à expedição a Tânger (1437), optou pelas praças marítimas, reconduziu com persistência o esforço de expansão para as costas ocidentais da África, em busca de ouro, escravos, terras virgens, procurou um caminho novo para a fonte das especiarias orientais.
       
É costume apresentar dois irmãos (D. Henrique e D. Pedro) como pontas de lança de dois conceitos de poder, duas correntes irremediavelmente antagónicas – a velha nobreza tradicional, medieval, cavalheiresca, terra-tenente, e a nova burguesia comercial e marítima, moderna, de vistas largas, precursora de um mundo novo. Nenhum dos extremos tem esta nitidez no século XV português. D. Pedro, ao ser morto em Alfarrobeira, arrasta para o esquecimento grande parte da memória do seu pensamento burguês do mundo; D. Henrique sobrevive na História controverso, nas suas vitórias e nas suas derrotas, lendário como raiz da navegação marítima portuguesa, mito como figura austera, determinada, precursora e navegador...


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