segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

O CÓDICE DE SANTA CATARINA - APRESENTAÇÃO



Na sequência do post anterior, publico aqui o texto da Apresentação do livro coordenado pelos meus amigos brasileiros, arquitetos Mário Mendonça de Oliveira e Roberto Tonera, magnífico exemplar, que merece ser apreciado e guardado: “As Defesas da Ilha de Santa Catarina e do Rio Grande de São Pedro em 1786 de José Correia Rangel”. Faço-o em duas Partes.

  
Parte 1

Capa da edição coordenada pelos meus amigos
Roberto Tonera e Mário Mendonça de Oliveira
 e lançada em Floripa, na UFSC,
em 7 de Setembro de 2011.
1.     A edição em fac-simile do chamado Códice de Santa Catarina, cujo original pertence ao Arquivo Histórico Militar de Lisboa, é um acontecimento cultural de grande relevo. Cumpre-me realçá-lo nesta apresentação.

O que nós temos nos Arquivos são documentos. Mas, por mais detalhados que sejam, eles não são a vida, não completam a História.

Qualquer documento, vestígio da presença humana, coloca-nos irremediavelmente perante várias questões: o que nos conta, quem é o seu autor, qual o contexto em que foi elaborado, que silêncios o acompanham?

Aqui se inserem as intenções (ou aquilo que nós percebemos ou imaginamos das suas intenções), o ambiente, os valores, as relações, a trama da vida.

Mas se tudo é passado, nem tudo é História.

Primeiro, só é História, melhor, só pode vir a ser História, a memória recuperada. Essa memória está por todo o lado, e é tanto mais consistente quanto mais houve cuidado na sua preservação. Isso vale tanto para a nossa relação com o passado, como para a relação dos nossos vindouros com o tempo de hoje.

Por isso, ao mesmo tempo que se aperfeiçoam os processos de procura do passado, na descoberta dos vestígios e dos testemunhos históricos, também se aperfeiçoam os métodos de preservação dos sinais da presença do homem no mundo, para que no futuro se possa melhor compreender a nossa vida actual.

Assim, Memória e História são realidades interligadas numa relação biunívoca, e não existem uma sem a outra. Ambas dão sentido à vida, transportando-nos no Tempo e dando-nos razões para existirmos e prosseguirmos.


2.     Em 20 de Julho de 1802, o Príncipe Regente, futuro D. João VI, criou o posto de Inspector das Fronteiras e Costas Marítimas, a quem deu a missão de “examinar cuidadosamente o estado das fronteiras e costas marítimas, propor os planos de defesa que parecerem mais apropriados, levantar cartas e mapas militares das praças, torres e posições que forem ordenadas”.

Pouco depois, por decreto de 4 de Setembro do mesmo ano, o Príncipe Regente estabeleceu o Arquivo Militar (Archivo Militar, na grafia da época). O decreto justifica-o porque “convindo que estes importantes trabalhos sejam fiel e cuidadosamente conservados e colocados com a ordem e método que melhor possa facilitar o uso deles, sou servido criar para esse efeito um Archivo Militar, em que se deverão reunir não só todos os trabalhos, a que mando proceder pela Inspecção, mas também todas as memórias, cartas e planos militares existentes, assim as que respeitam a esta Monarquia e suas Colónias, como os que forem relativos aos Países Estrangeiros”.

Finalmente, o rei acrescenta: “E considerando Eu a importância de um semelhante Depósito: Hei por bem criar para a direcção dele um Director, que além dos distintos conhecimentos militares e graduação que para isso o deverão habilitar haja de reunir circunstâncias pessoais, que o façam digno da Minha Real confiança”.

É por isso que, logo a 8 de Setembro, o rei nomeia o director do Arquivo, com a seguinte justificação: “Considerando que para um emprego de tanta importância convém que Eu haja de destinar pessoa que pelas suas qualidades seja digna da Minha Real confiança, e reúna a esta principal circunstância a de possuir distintos conhecimentos militares, e sendo-Me constantes os sentimentos de Honra e de Fidelidade de D. Pedro Vito de Menezes marquês de Marialva; como igualmente a sua aplicação aos estudos da sua profissão, a exemplar assiduidade, zelo e inteligência com que se tem empregado nas comissões do Meu Real serviço de que tem sido encarregado, e por esperar dele que desempenhará muito à Minha satisfação, esta de que sou servido incumbi-lo; Hei por bem nomeá-lo director do Archivo Militar”.

E embora a história do Archivo se tenha afastado, como tantas vezes, das linhas essenciais que o rei assim deixava definidas, a verdade é que o seu património documental se conservou pelos anos fora, constituindo hoje um espólio arquivístico de incalculável valor para a memória do Exército Português, do Brasil, dos novos países africanos de língua portuguesa e de todos os territórios que Portugal administrou

Os herdeiros deste património são hoje a Arma de Engenharia Militar e o Arquivo Histórico Militar, como depositários desse riquíssimo património.

Estes dois órgãos têm-se empenhado em preservar, valorizar e divulgar o acervo documental que possuem, na certeza de contribuírem para o conhecimento do passado de Portugal, da sua presença no mundo e das relações que ao longo de cinco séculos foram estabelecidas com tantos povos e tantas gentes. Da documentação integrante do seu património, deve destacar-se um aspecto fundamental da memória conservada pelo Exército – a memória da fortificação militar espalhada pela aventura do homem português nos quatro cantos do mundo.

Os documentos na posse do Exército neste âmbito particular reflectem uma face decisiva dessa grande aventura de Portugal, acentuando as linhas mestras da sua política – defesa estratégica de rotas, ocupação de entrepostos comerciais, construção de centros urbanos de intercâmbio, marcação de fronteiras de posse. As fortificações espalham-se por todos os continentes onde Portugal esteve presente, assemelhando-se, porque reflectem as constantes dessa presença, e divergindo, devido às profundas diferenças dos ambientes locais.

Entre todos, o Brasil constitui a mais espantosa construção dessa aventura. Através do património documental que sobrevive nos Arquivos dos dois lados pode lançar-se um olhar para a acção desses ousados engenheiros e outra destemida gente luso-brasileira, que souberam marcar fronteiras e consolidar territórios de imensidão nunca antes vista. Estes documentos proporcionam-nos hoje um encontro com os sítios, a lembrança dos antepassados construtores, a história dos edifícios, dos lugares, das cidades, como introdução a uma visão mais ampla das influências e da memória comum de dois povos e duas nações.



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