sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

COOPERAÇÃO COM ÁFRICA - SÃO OS PROBLEMAS ETERNOS?



A propósito de alguns dos problemas que nos assolam hoje em dia, lembrei-me de um texto que publiquei em 1992, há portanto 24 anos, num volume de Atas de um colóquio organizado pela Universidad Nacional de Educación a Distancia (UNED), em Mérida, que se chamou “Portugal, España y Africa en los últimos cien años”.

Há pequenos detalhes que talvez corrigisse hoje, mas no essencial revejo-me nas ideias que aqui reproduzo.


Dois modelos de descolonização

Durante o período da descolonização surgiram em Portugal dois modelos principais para a independência das colónias. Um deles, projecto lógico do pon­to de vista dos interesses imediatos do descolonizador, preconizava a imposi­ção de condições prévias, como garantia do empenhamento português. Os futuros países deveriam assegurar certo tipo de transição, conceder certas van­tagens e privilégios a Portugal e aos portugueses, integrar determinadas regras e princípios. Era um projecto lógico, mas evidentemente inexequível.

O outro modelo, baseado na análise directa dos factos, pretendeu preser­var, de forma indirecta, a continuidade portuguesa, sem que, para isso, fosse necessário impor qualquer condição prévia, antes argumentando com as van­tagens mútuas de certas ligações e da manutenção de certos princípios. Era um modelo imposto pela situação que se vivia depois do 25 de Abril.

A imposição de condições prévias configurava um modelo neocolonial, já aplicado à África por outras potências europeias, e era assumido pelas forças conservadoras e pelos interesses económicos, em especial os que estavam im­plantados em África. Durante alguns meses o seu representante privilegiado foi o general Spínola.

O modelo da descolonização consensual foi assumido pelo MFA e pelas forças de esquerda dessa época. Foram estas forças que vieram a sobrepor-se às primeiras e a assumir, pela parte portuguesa, o papel que lhes coube na descolonização.

Os factores essenciais que motivaram este posicionamento poderão resumir-se:

· Existência de movimentos de libertação nos cinco territórios africanos que, ou tinham conduzido uma guerra prolongada contra o poder co­lonial, ou tinham, pelo menos, assumido o combate contra a presença portuguesa;
· Certa sintonia ideológica entre os representantes das partes envolvidas;
·  Fragilidade política e militar de Portugal no momento crucial das ne­gociações de transferência do poder;
· Modelo dominante das relações internacionais baseado na capacidade de intervenção directa das grandes potências, em especial da União So­viética.

Desta primeira fase resultou um modelo novo de descolonização europeia, no qual as imposições da Metrópole foram reduzidas a um nível mínimo, ain­da assim baseadas no princípio da mútua vantagem.

É evidente que este modelo é hoje muito discutível, tanto nas razões que o impuseram, como nas consequências que em geral lhe são imputadas.

Aliás, desde muito cedo, poucos foram os que souberam discernir as van­tagens da aplicação do modelo português. A maior parte das vezes perdeu-se, talvez por uma má consciência politicamente insuportável, a noção das virtualidades contidas nas relações resultantes da aplicação do modelo consensual de descolonização. O Estado português, durante um longo período após a des­colonização, não soube transformar em projectos concretos de cooperação, as condições potencialmente favoráveis que herdou do período da descoloni­zação. Foi necessário esperar alguns anos até ser assumido o chamado «prag­matismo» nas relações com os novos países africanos. De uma forma geral chegou tarde, mas pôde ainda recuperar algumas daquelas virtualidades.


Deverá a democracia servir de moeda de troca?

O panorama africano é hoje profundamente diferente da situação da década de setenta e início da década de oitenta. De facto, no final da última década aconteceu uma viragem de profundas repercussões não só para África mas para o mundo inteiro. A desintervenção das grandes potências trouxe ao de cima novas realidades em África, fustigada por uma insuperável crise económica que vincava ainda mais a sua situação de região mais pobre do planeta.

As mudanças no Leste Europeu criaram, no Ocidente, a ideia, mais uma vez eurocentrista, de que a solução dos problemas do mundo se reduzia à exportação do sistema político a que ela própria aportara, depois de vários séculos de experiências e de muitas opções falhadas.

A solução democrática em África, defendida pelo liberalismo ocidental e aceite por muitos dos regimes africanos, está envolvida por uma componente de desespero pela parte destes, em face da ineficácia de todas as soluções anteriormente tentadas. Mas será o desespero um bom companheiro da democracia?

Embora muito aplaudida, esta onda de democratização em África é uma hipótese ainda não testada, ou com testes de resultados pouco aliciantes. Contrariamente ao processo histórico europeu (ou melhor, ocidental), onde a democracia é o resultado final de uma longa evolução, em África ela prepara-se para ser o início dum processo histórico novo, querendo esquecer ou ignorar as raízes do modo de estar africano.

Pior, porém, que esta experiência impulsionada pelo Ocidente, parece ser a posição de alguns países colocados na vanguarda deste combate pela importação da “nova” solução. De facto, enquanto no passado recente as ajudas económicas e de cooperação em favor dos países africanos se baseavam em critérios diversos, que iam desde a vantagem mútua até à afirmação de esferas de influências preventivamente conservadas, muito recentemente parece pretender-se que o critério base para o desenvolvimento da política de cooperação, seja a instauração de regimes democráticos.

Parece evidente que restarão poucas alternativas que não pareçam irrealistas, ou mesmo absurdas. Contudo, se a África deve preparar os processos democráticos, a Europa deve preparar-se para assistir, provavelmente, ao fracasso das suas tentativas de impor um modelo que, em princípio, só acasala com a prosperidade.

Uma vez iniciadas as transformações internas preparatórias da mudança de regime, a que os dirigentes actuais das ex-colónias portuguesas têm respondido com muita disponibilidade, parece indispensável não impormos mais uma condição prévia, aceitando os resultados das eleições, mesmo que possam parecer desfavoráveis aos nossos secretos desejos.

O modelo de valores dos povos africanos é substancialmente diferente do nosso, apesar da contínua assimilação de heranças deformadoras da sua ancestralidade. A questão das fronteiras nacionais é sem dúvida uma questão de grande sensibilidade, que impõe cortes dolorosos, mas não impede a sobrevivência, e mesmo a predominância, de indestrutíveis ligações transnacionais. Um outro problema prende-se com a adopção das línguas europeias, não apenas como línguas oficiais, mas sobretudo como línguas maternas. Os novos dirigentes africanos sabem como esta mudança se torna indispensável, mas desconhecem os riscos que ela encerra.

A questão das línguas é, de facto, de fundamental importância para os novos países africanos, uma vez que a adopção de uma língua comum se transforma num factor de unidade interna, assim como num factor de diferença em relação a países vizinhos.


Europa suportada pela África e América,
William Blake, 1796
Não deverá a cooperação basear-se na mútua vantagem?

Analisada do ponto de vista estritamente económico, a cooperação com a África não parece fundamental para a Europa. Se na época do colonialismo a necessidade de matérias primas comandava o tipo de relações estabelecida com África, a verdade é que hoje esse factor deixou de pesar da mesma maneira. Não é mesmo muito difícil imaginar a possibilidade de um corte económico com África sem graves prejuízos para a Europa. Contudo, cada vez mais as interdependências se multiplicam, obrigando a uma reflexão aprofundada sobre as relações planetárias. Embora na Europa o nível actual de consciência das dependências seja ainda muito difuso, parece não restarem dúvidas que começa a manifestar-se com maior vigor. Existe, de facto, maior percepção do carácter global de certas políticas e de certas situações, que, sem ultrapassarem formalmente o âmbito dum país ou duma região, podem estender a suas consequências a áreas muito mais vastas.

Há dois campos que poderemos destacar (sem a pretensão de os eleger como determinantes), numa primeira aproximação a este problema da interdependência mútua e da globalização planetária. O primeiro prende-se, muito naturalmente com a ecologia, na sua componente da desflorestação e respectivas consequências climáticas. O mundo industrializado começa a ter consciência da importância da manutenção de certos equilíbrios, só possível com participação de muitos Estados do terceiro mundo, incluindo os africanos. Assente neste princípio, a cooperação apresenta-se baseada na mútua vantagem, único modelo capaz de sustentar a sua eficácia.

O outro campo apresenta-se ainda mais difuso na consciência europeia mas parece capaz de ser rapidamente compreendido. Trata-se da questão das migrações. É sabido que as populações de zonas desfavorecidas tendem a transferir-se para zonas mais ricas. Este fenómeno poderá produzir-se em pequena escala, medida hoje em milhares de pessoas, fenómeno necessário normalmente desejado por ambas as partes e até fomentado, ou poderá eventualmente assumir características de migração maciça, medida em milhões de pessoas, fenómeno preocupante e indesejável em especial pelas regiões de destino. Face à situação actual da África não parece de excluir uma tendência migratória que venha a assumir essas dimensões e cujo destino seja exactamente a Europa.

Salientados estes aspectos de tendente globalização dos fenómenos humanos, parece justificada a atenção que nos devem merecer as políticas de cooperação com África. Os investimentos realizados neste âmbito podem amplamente justificar-se pela necessidade mútua de estabilização das populações, assim com da manutenção de níveis baixos de desarborização. Os auxílios europeus têm de perder o carácter de interferências para se transformarem numa aplicação de mútua vantagem, facilmente compreensível pelas populações de ambos o lados.

Relativamente aos casos especiais de Angola e Moçambique, devemos ter presente a situação concreta, onde a procura da paz aparece como objectivo prioritário. Os esforços de todos os intervenientes dirigem-se para a obtenção, no mais curto prazo, de compromissos de cessar-fogo, por forma a que se possam criar condições básicas de aplicação de planos de desenvolvimento. Nesta situação, a exigência de um espírito aberto por parte dos europeus em relação às necessidades destes povos, é ainda mais premente. Uma atitude pragmática, fugindo da imposição de condições, sem deixar de defender princípios, é aqui ainda mais necessária. Não podemos esquecer que lidamos com países extremamente carenciados, embora singularmente aptos a assumirem a experiência democrática.

Retirar a estes países fundos de ajuda e cooperação, só porque os processos de mudança não estão concluídos ou podem parecer demorados, é matar à nascença a hipótese, provavelmente mais viável aqui do que em muitas regiões de África, de êxito da experiência democrática, tão do agrado do sentimento europeu actual.


Nota: Publicado inicialmente em “Portugal, España y Africa en los últimos cien años – IV Jornadas de Estudios Luso-Españoles”, Mérida, Universidad Nacional de Educación a Distancia, 1992, págs. 165-169.




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