segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

QUAL A MINHA IDEIA SOBRE O MOVIMENTO DOS CAPITÃES?



Em 2010, fui convidado a participar numa Jornada de Estudos no ISCTE, sobre o tema “Militares e Sociedade, Marinha e Política”.
Apresentei uma comunicação sobre o Movimento dos Capitães e a forma como eu próprio via o aparecimento e o desempenho desse movimento.
O texto veio depois a ser publicado, pelo que destaco aqui apenas a sua primeira parte, como enquadramento da questão.
A primeira vez que me propus estudar este movimento como fenómeno social, fi-lo com o meu amigo, coronel e sociólogo, Manuel Braz da Costa, sendo o texto publicado na Revista Crítica de Ciências Sociais (CES, Coimbra), nº 15/16/17 de Maio de 1985, acessível on-line. 
Reformulado, este estudo foi depois publicado por Luísa Tiago de Oliveira em “Militares e Política – o 25 de Abril”, 2014.

Aqui fica, com um título um pouco diferente…



Falando sobre o Movimento dos Capitães no Arquivo
Histórico Ultramarino, em 2009.


Após o 25 de Abril, os participantes do Movimento dos Capitães sabiam bem que o movimento era obra de uns tantos, e não de todos, nem sequer de muitos. A nossa lógica construiu-se em bases bem determinadas, mas nem sempre coincidentes. É certo que não ignorávamos a oposição ao regime, pois a história nos ensinava que ao longo da ditadura muitas vozes de militares se tinham levantado, sempre prontamente dominadas pela acção dos defensores do regime. Mas o que nos uniu, a um certo número de militares do Exército, foi a oposição à guerra, ou à forma de fazer aquela guerra, ou ao desprestígio das Forças Armadas (a que pertencíamos) por causa daquela guerra. Tudo começou com pequenos ou muito pequenos núcleos de oficiais que se atreveram (porque a necessidade era premente) a falar sobre a guerra e sobre o regime a propósito da guerra.

Nesses pequenos núcleos gerou-se uma dinâmica própria de aproximação e conquista de outros e outros oficiais, sem que a mancha fosse larga de mais. Era necessário ter capacidade para questionar as soluções do regime, se não na sua política interna, ao menos, e no mínimo, na sua política colonial (ou melhor, do Ultramar). Assim progrediram as adesões, em torno da guerra, em torno das Forças Armadas, em torno de algum questionamento do regime. Mas o que fica sempre de pé, é a natureza do movimento que surge e se amplia. As questões corporativas são de facto habilmente aproveitadas, mas elas integram, por inteiro, a panóplia das justificações de base do movimento. Do que não podem restar dúvidas é do conceito que sustenta a emergência de um movimento autónomo dentro do Exército. O movimento dos capitães nunca se confundiu com o Exército, que sabia muito bem não representar. Também o MFA, continuador abrangente do movimento dos capitães, se afirmou contra as Forças Armadas, transportador de ideias diferentes, gerador de um programa político de transição para uma sociedade democrática. Estes conceitos geraram-se no interior do movimento dos capitães, à parte e mesmo em oposição ao pensamento das Forças Armadas.

As Forças Armadas são uma organização complexa, que nos regimes ditatoriais se constitui como um dos seus suportes essenciais. Pode acontecer que as Forças Armadas, como instituição, se disponham a derrubar um regime. Mas não foi isso que aconteceu no derrube do Estado Novo. Confundir o movimento dos capitães/MFA com as Forças Armadas, acho que é um erro evidente.

Contudo, depois do 25 de Abril, conquistado o poder, embora não ocupados, de início, muitos lugares do poder, gerou-se naturalmente um movimento de integração das Forças Armadas (de todos os seus membros e das suas estruturas) na nova realidade, em especial no sentido democrático da mudança, ou seja, no espírito do MFA.

Como seria natural, as resistências a este conceito foram múltiplas e extensas. Podemos dizer que de ambos os lados. Os militares participantes do movimento temiam a força de uma organização comprometida e conservadora, julgavam que seriam facilmente absorvidos pela estrutura institucional, e rapidamente o sentido democrático (e até revolucionário) do seu projecto viria a ser inteiramente esquecido e porventura revertido. Enquanto isso, muitos dos militares não participantes do movimento viam nos elementos participantes pessoas que dificilmente as Forças Armadas (mesmo as novas Forças Armadas) conseguiriam integrar. Achavam que eles seriam sempre elementos desestabilizadores, sem cultura castrense, sem a noção da disciplina que os militares têm de assumir, sejam quais forem os contornos da instituição militar.

Geraram-se assim uns imensos mal-entendidos. Por um lado, muitos militares que nunca apoiaram o movimento, que sempre evitaram qualquer compromisso antes do 25 de Abril, procuraram recuperar o estatuto de participantes, de integrados no novo espírito revolucionário, alguns até ultrapassando em muito as directrizes essenciais que deram forma ao projecto do MFA. Estes apostavam na vitória da revolução, que trituraria todos aqueles que não estivessem na frente. Mas por outro lado, também muitos outros, incluindo alguns dos que eram participantes activos do movimento, acharam que se iam ultrapassando todos os limites que o projecto comportava e que não fazia sentido acompanhar uma cavalgada que perdera o sentido do razoável. Eles apostaram que o processo se encarregaria de estabilizar ou mesmo reverter os excessos iniciais, e que as Forças Armadas regressariam ao que sempre teriam de ser – um corpo estável, ao serviço do novo regime.

No meio ficou um núcleo de militares conscientes das novas realidades e defensor do projecto inicial do MFA e dos seus limites, assim como do cumprimento das promessas incluídas no programa apresentado e aplaudido pela sociedade. Em face dos conflitos que se geraram, das disputas de facções que se foram ajustando a projectos políticos distintos, da força que as facções foram exibindo, das novas dinâmicas que a sociedade assumiu e expressou, o processo avançou numa bissectriz oscilante, até que as suas ondulações se passaram a guiar por regras maioritariamente aceites pela sociedade.

Quando o período de grande dinâmica se foi findando, emergiu uma sociedade com novos valores, prezando a liberdade e a democracia, e deixando ao povo (ao conjunto de todas as pessoas) a responsabilidade de construir e defender uma sociedade democrática.

Os militares tiveram destinos múltiplos, mas muitos dos participantes no movimento inicial não regressaram às Forças Armadas. Outros integraram-se sem grande dificuldade e outros nunca deixaram o seu lugar. Houve muitos que foram rejeitados, de uma maneira ou de outra, pelas Forças Armadas, umas vezes vítimas da sua conduta, outras vezes vítimas de vários ajustes de contas.



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