terça-feira, 20 de dezembro de 2016

A TRANSIÇÃO EM MOÇAMBIQUE FOI DIFERENTE?



A Associação 25 de Abril organizou, em 1984, um seminário sob o tema “25 de Abril, 10 anos depois”. Apresentei nessa altura uma comunicação com o título “Transformação de umas Forças Armadas de guerra em Forças Armadas de paz”. O texto foi depois publicado pela Associação nas respetivas Atas.
Com os factos ainda muito vivos, procurei enumerar os passos fundamentais que demos nesses poucos meses de transição, entre o Acordo de Lusaca (7 de Setembro de 1974) e a independência de Moçambique (25 de Junho de 1975). É esse tempo que recordo ao publicar o texto referido.


Victor Crespo, alto-comissário e Joaquim Chissano,
primeiro-ministro do Governo de Transição.
Ambos souberam interpretar o sentido do Acordo de
Lusaca e o aplicaram em conformidade. Foto de Carlos Gil.

Em Moçambique, após os incidentes de 7 de Setembro e de 21 de Outubro de 1974, foi possível chegar ao fim do período de transição num clima de tranquilidade social. Não se pense que foi um processo simples. O instrumento fundamental para o clima de paz que se viveu durante os oito meses que medeiam entre o fim de Outubro e a independência de Moçambique foram as Forças Armadas de ambos os lados e a surpreendente capacidade de integração entre ambas.

Quando se assinou o Acordo de Lusaca, as Forças Armadas Portuguesas estavam destroçadas. Elas acabavam de viver dois períodos contraditórios entre si, e também contraditórios no próprio conteúdo de cada um. Em 25 de Abril de 1974 as Forças Armadas apresentavam evidentes sinais de cansaço e perturbação. Cansaço pelo esgotamento físico e anímico dos quadros, pela degradação da instrução, pela tendência nivelante dos potenciais de meios, especialmente na componente aérea, com o aparecimento dos mísseis terra-ar, e pela acção do Movimento de Capitães, que logicamente perturbava as cadeias de comando.

Após o 25 de Abril, os sinais e os motivos deteriorantes multiplicaram-se em cadeia. Primeiro, a hierarquia, de uma forma geral, não aceitou a mudança, nem compreendeu o sentido descolonizador do Programa do MFA. Mais, tentou ajustar-se através de alterações de superfície, mantendo o comportamento essencial do período anterior. Segundo, as tropas interpretaram o 25 de Abril no seu sentido mais amplo, sem consideração de etapas intermediárias — o fim da guerra e o regresso imediato foram os objectivos rapidamente assumidos. Terceiro, o MFA, embora com alguns pontos de vista não coincidentes no seu interior, procurou fazer compreender à hierarquia e às tropas o verdadeiro sentido do 25 de Abril. À hierarquia explicando que o MFA, não preconizando embora independências imediatas, era um movimento que pretendia conduzir à solução política dos conflitos, questão evidentemente relacionada com a provável independência do Ultramar. Às tropas, tentando fazer compreender que o MFA, embora desejasse apressar a paz, não podia fazê-lo sem considerar outros objectivos e outros valores que lhe eram complementares.

Não é de admirar, por tudo isto, que as Forças Armadas tivessem chegado ao Acordo de Lusaca numa situação penosa, profundamente perturbadas e com fracas reservas morais e psicológicas. Mas o acordo de Lusaca funcionou como um poderoso antídoto injectado nas Forças Armadas.

O conhecimento do cessar-fogo oficialmente assinado e a marcação da data da independência, com a inevitável transformação da natureza das funções das Forças Armadas, puderam constituir o embrião da recuperação que um novo comando, com prestígio e decidido, pôde operar em dois escassos meses. É nestes dois meses, de meados de Setembro a meados de Novembro que se faz a transformação de um corpo disperso e sem vontade numas Forças Armadas dispostas a enfrentar as tarefas, não menos difíceis e arriscadas, de contribuir e garantir a aplicação do Acordo de Lusaca.

As medidas tomadas, parecendo simples, não foram fáceis. Em primeiro lugar, foi adaptada a cadeia de comando, através da mudança de pessoas, da simplificação de processos e da regulamentação da cadeia do MFA, em moldes específicos, mas operativos. Aliás, o facto de alguns elementos do MFA terem aceitado acompanhar o Alto-Comissário na sua missão a Moçambique, viria a confirmar-se como um inestimável contributo para os resultados alcançados. Em segundo lugar, foi esclarecida a doutrina de actuação, os objectivos a atingir, os processos a empregar e o comportamento que deveria presidir à nova missão das Forças Armadas. Em terceiro lugar, aplicaram-se sucessivas alterações de dispositivo, adaptando as unidades no terreno, às missões atribuídas. Em quarto lugar, intensificou-se uma aproximação de comandos e uma extensa e oportuna acção de esclarecimento e informação interna das tropas, normalmente efectuada pela estrutura do MFA. Esta política deu efeitos surpreendentes. A colaboração Forças Portuguesas/Forças da Frelimo processou-se praticamente sem perturbações, com experiências de convívio nos mesmos quartéis e nas mesmas condições.

As comissões mistas (Comissão Militar Mista e as suas delegações regionais) funcionaram quase sempre em perfeita harmonia, solucionando por comum acordo, os conflitos e os problemas que inevitavelmente foram surgindo. Um primeiro ciclo de aprendizagem de algumas questões técnicas foi de imediato proporcionado a elementos da Frelimo, num verdadeiro espírito de cooperação resultante do Acordo de Lusaca — infraestruturas da Marinha e da Força Aérea e formação de quadros e tropas de polícia. A redução do dispositivo das Forças Portuguesas, a passagem do testemunho às Forças da Frelimo e o embarque de regresso a Portugal processaram-se igualmente sem incidentes assinaláveis.

A aproximação de pontos de vista, a aceitação e o diálogo eram de tal forma um facto, que o comando português, a pedido da Frelimo elaborou um documento de reestruturação (de Forças de Libertação em Forças Regulares) das futuras Forças Armadas de Moçambique — Exército, Marinha e Força Aérea. A parte portuguesa dispunha-se mesmo a participar, pelo tempo que fosse necessário, nessa reestruturação, que a parte moçambicana sabia fundamental para a sua sobrevivência como país independente. Infelizmente, questões de vária ordem vieram a impedir essa cooperação, que teria sido, a todos os títulos de importância excepcional.

Repare-se contudo, que alguma coisa foi aplicada, como corolário deste espírito cooperante — a Polícia Portuguesa permaneceu em Moçambique durante seis meses para além da independência, facto que normalmente é desconhecido. E durante esse período não houve significativas perturbações sociais ou políticas.

Em suma, a transformação das Forças Armadas Portuguesas de instrumento de guerra em instrumento de paz e cooperação, constituiu o suporte de uma política de transição eficaz e a garantia de uma transferência de poderes, desenvolvida nos exactos termos acordados em Lusaca.


Ver em:
“Transformação de umas forças armadas de guerra em forças armadas de paz”, Associação 25 de Abril (Org.), Actas do Seminário 25 de Abril, 10 anos depois, pp. 339-340.





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