terça-feira, 13 de dezembro de 2016

ONDE ANDAM OS FLAMINGOS DOURADOS?



Em Junho de 2004 tive o privilégio de apresentar o romance do Carlos Vale Ferraz, “Flamingos Dourados”. Lembrei-me deste texto a propósito de um escrito recente que este autor publicou na revista InComunidade, que aliás muito recomendo: http://www.incomunidade.com/v51/art.php?art=274

Fui buscá-lo e aqui o deixo. Não cheguei ao ponto de apresentar o autor como um mágico, mas julgo que não fiquei muito longe…

Julgo que este livro será muito difícil de encontrar, mas vale a tentativa.

  
(…)

Se viesse aqui falar do Carlos de Matos Gomes e da obra que com ele tenho feito, seria para mim muito fácil.

Falar do Carlos Vale Ferraz é mais difícil. Eu sou um leitor assíduo – desde o clássico “Nó Cego”, passando pela primeira “ressaca” da guerra, “De Passo Trocado ASP”, pelo espantosa crónica do soldado esquecido “Soldadó”, pela segunda ressaca dos “Imortais” ou “Os Lobos não usam Coleira”, do enigmático escrito sobre os “Anais dos Tristes Acontecimentos do Milénio” ou “O Livro das Maravilhas”, que alguém melhor que eu pode descodificar, até chegar à obra que hoje aqui nos reúne -  “Os Flamingos Dourados”.

Também sou um incondicional leitor e concordante das pequenas crónicas com que o Carlos Vale Ferraz por vezes nos brinda na imprensa diária, reflexões sobre a situação actual.

Tenho sido porta-voz de um alargado conjunto de amigos para que o Carlos de Matos Gomes se deixe de outras coisas e passe simplesmente a escrever. E que assine com o nome que bem entender. Não tenho conseguido grande êxito, mas assisti a pequenas partes da construção das suas duas últimas obras.

Estamos portanto situados:
Tenho trabalhado com o Carlos de Matos Gomes de quem sou amigo, leio o Carlos Vale Ferraz, que muito aprecio, e incito o primeiro a convencer o segundo a escrever mais.

Vamos agora ao que mais interessa – “Os Flamingos Dourados”. É a terceira ressaca da guerra colonial. Para mim foi uma surpresa, pois não era esta perspectiva que eu esperava. Depois de ler, compreendi. O Carlos Vale Ferraz está cada vez mais próximo do Calos de Matos Gomes.

Vou apenas focar dois aspectos interessantes dos “Flamingos”.

Em primeiro lugar:
O capitão Francisco Manuel fez a guerra em Angola, como alferes, em 1961, na Companhia dos Aventureiros e é capitão de Abril. É filho do coronel Luís Manuel que esteve na Índia e foi adido militar em Londres. Aí casou com Mary Wilson, filha (descendente) de John Wilson, destacado membro da Maçonaria. Francisco Manuel é um dos prováveis portadores (talvez pouco provável) de um “Diamante Azul”, vindo das profundezas da história de Portugal, irmão-paralelo de um outro Francisco Manuel, guerreiro e escritor do século XVII e das campanhas da Restauração, Francisco Manuel de Melo. Tem como ajudante, na sua fase actual de afectado pelo stress de guerra, um cabo Matos (este Matos dá-me que pensar) que vem a ser assassinado, em vez do seu capitão, porque alguém procura o “Diamante Azul”.

Este “Diamante Azul” foi levado por D. António Prior do Crato, quando perdeu o reino para Filipe II. Era a mais importante jóia da coroa portuguesa, símbolo da independência, transformando-se numa espécie de Santo Graal. Apesar de tudo, ficou desde então na família, e foi parar ao seu descendente Humberto Crato (que passou para a oposição e morreu assassinado em Espanha). A trama a seguir não interessa, porque é o fio condutor do enredo. Como verão quando lerem, trata-se de discutir a questão do poder. Ou melhor – a questão da origem do poder. Este foi o problema mais longamente discutido depois de 1640, também com intervenção do primeiro Francisco Manuel; mas como sabem, foi também um dos principais enredos em que todos nós nos envolvemos nos idos de 1974 e 1975, com a activa participação do segundo Francisco Manuel. O “Diamante Azul” andou por aí, passou para Espanha, foi à mão de um escritor panfletário, que, apesar disso, nunca o viu; terá feito parte dos trastes do nosso capitão Francisco Manuel; foi à mão do presidente da Fundação O Homem e a Obra para ser exibido na exposição com o título “Esplendor de Portugal – Nós e os Outros”, durante o seu Congresso “As Conferências do Milénio”. Mas, para alívio de todos, incluindo a maior parte dos que estão nesta sala, este diamante da exposição é falso. O verdadeiro vai seguir o seu caminho, e para saberem onde fica, têm que ler o livro.

A propósito, suponho que o verdadeiro John Wilson existiu, tornando-se famoso nos meios intelectuais e científicos ingleses no primeiro terço do século XIX. Tanto poderia ser bisavô do nosso Francisco Manuel, com descendente dos contemporâneos de Francisco Manuel de Melo. Se foi da Maçonaria não consegui averiguar, mas o seu pensamento e a sua escola podem levar-nos a essa conclusão.

Vamos agora ao segundo ponto que gostaria de trazer aqui. Já falei de um escritor panfletário – é o Manuel Costa. O seu grupo, os Manuelinhos, é uma criação genial (lembram-se do Manuelinho de Évora, doido muito conhecido e estimado na cidade, e em nome de quem se escreviam os panfletos incendiários contra os castelhanos, durante a fase final do período filipino?). No grupo temos portugueses, como o padre capelão Nuno Maria (capelão dos Aventureiros e padre da paróquia de Agualva-Cacém com carta de despedimento do bispo), o capitão Francisco Manuel, que faz lá uma perninha, um espanhol – o Francisco Quevedo, e um inglês – o Ned Marchmont. Vejamos estes dois.

Todos conhecemos o Francisco Quevedo, contemporâneo de Francisco Manuel de Melo, escritor espanhol do século XVII. Foi perseguido, esteve preso, escreveu poesia e verdadeiros manifestos políticos, pouco comuns na época. Em 1635 os seus inimigos publicam em Valência, o maior e mais feroz ataque ao escritor – um libelo intitulado “O tribunal da justa vingança”. Posso pedir-vos para se lembrarem deste título, quando lerem “Os Flamingos Dourados”. Nesse manifesto, Francisco Quevedo é denunciado como “mestre de erros, doutor em desvergonhas, licenciado em bobo, bacharel em “suciedades”, catedrático de vícios e protodiabo entre os homens”. Portanto, um digno companheiro dos manuelinhos, obreiros de panfletos incendiários.

E agora o inglês. O personagem dos “Flamingos Dourados” chama-se Ned Marchmont. O contemporâneo do nosso Francisco Manuel de Melo do século XVII, que bem poderia ter estado em Portugal, chama-se Marchmont Nedham. Ambos são jornalistas. O personagem esteve em Angola com Os Aventureiros, onde conheceu o então alferes Francisco Manuel; depois da revolução veio a Portugal e voltou sempre ao seio do seu grupo de amigos. Persegue a história do “Diamante Azul”. Todos o irão apreciar quando lerem o livro. O verdadeiro, foi o jornalista favorito de Cromwell. Fez parte de um grupo de pensamento que veio a apelidar-se de neo-romanos, que teve como ambiente de fundo a proclamação da Inglaterra como estado livre, onde fez companhia a John Milton. Ambos publicaram uma série de editoriais no periódico oficial “Mercurius Politicus” que construíram os alicerces para o nascimento, em Inglaterra, de uma teoria republicana da liberdade e do governo até 1656. Quando teve de explicar por que se tinha tornado jornalista, Marchmont Nedham (o Ned Marchmont do nosso livro) afirma simplesmente: “Eu peguei na pena para discordar de Sua Majestade... e para deitar fora máscaras, servidões e disfarces”.

Pela minha parte só tenho que vos aconselhar a acompanharem este espantoso grupo através da escrita do autor que aqui nos reúne – o Carlos Vale Ferraz.

Outros aspectos, e aquele título do manifesto contra Francisco Quevedo não me sai da lembrança – O tribunal da justa vingança - vamos com certeza abordá-los durante a nossa conversa.

Um último ponto. O narrador, o procurador geral da República, Serafim Forte, recebe a primeira mensagem de Manuel Costa juntamente com os seus escritos dispersos, com os quais pretende denunciar a situação a que Portugal chegou. O seu pedido é sugestivo: “Preciso que organizes um livro. Pode ter a forma de romance (até conviria, porque na ficção podem dizer-se as verdades com maior liberdade e menor risco)”. Espero que apreciem como se dizem as verdades num romance. É que a História não serve de nada se não a utilizarmos na nossa acção.


E o que é espantoso neste “romance” é o enlaçamento entre história e ficção, entre duas épocas igualmente tumultuosas, entre três faces de um poliedro invulgar – a transição filipo-restauração (ou seja a história) com nomes reais (Francisco Manuel de Melo, Diogo Soares, Miguel de Vasconcelos); a guerra-revolução-transição em que nós estivemos envolvidos (com nomes paralelos trazidos do tumulto restaurador) e o romance, em que personagens de natureza, atitudes, convicções e ideias paralelas às dos nossos antepassados, vagueiam por entre nós (e ainda por cima, temos quase a certeza de os conhecermos, encerrando este “quase”, a prudente incerteza da ficção).


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