terça-feira, 6 de dezembro de 2016

O CÓDICE DE SANTA CATARINA - APRESENTAÇÃO



Nesta 2ª Parte do texto de Apresentação do livro “As Defesas da Ilha de Santa Catarina”, tento fazer uma síntese da política de defesa após a Restauração, com referência especial ao Brasil. Tive para isso o apoio do meu amigo Rui Carita, que fez o favor de rever o texto e fazer as recomendações que achou pertinentes.

Termino com uma nota sobre a importância da preservação dos arquivos e da informação que guardam e também da relação, sempre difícil, entre arquivos e regimes políticos.


Parte 2


Rosto do códice original, propriedade
do Arquivo Histórico Militar.

 3.     A prioridade da política defensiva do espaço ibérico durante o período filipino, entre 1580 e 1640, foi “eminentemente marítima”, com o objectivo de salvaguardar o império comum e defender o Mare Clausum. Na primeira parte do século XVII, enquanto durou a união ibérica, a instabilidade e as ameaças foram permanentes, tanto no Oriente, como no Brasil e nas ilhas atlânticas. Contudo, a partir da aclamação de D. João IV no final de 1640, passou a existir um quadro político-militar completamente diferente, que obrigou a rever, como é natural, todas as orientações de defesa que vinham do anterior.

Da parte portuguesa, a principal preocupação passou a ser a afirmação da soberania sobre o território metropolitano, complementado com as preocupações ultramarinas, e, em especial, do Atlântico, suporte económico da coroa portuguesa da dinastia de Bragança, dada a decadência do quadro do Índico.

As primeiras directivas militares da Restauração foram para a reforma em larga escala do sistema defensivo continental europeu, com uma ampla campanha de fortificação da raia terrestre, à época ainda com inúmeros castelos medievais. Ao mesmo tempo houve consciência da absoluta necessidade de assegurar o território brasileiro e, como seu suporte humano de apoio, as costas africanas, especialmente a de Angola, até pela fragilidade e distância dos territórios do Índico.

Estabelecida a paz com Castela, a partir de 1668, os interesses portugueses voltaram-se essencialmente para o Brasil e para a tentativa de manutenção das fantásticas fronteiras desenhadas pela expansão bandeirante e que definiam para Portugal mais de um terço da América Latina. Vai ser essencialmente nesse quadro que se vão desenvolver as actividades da engenharia e da arquitectura militar portuguesas, assim como o reconhecimento desse imenso território, a sua tomada de posse e a inventariação dos seus recursos, essenciais para a cativação dos impostos pela coroa portuguesa. Este aspecto levou a que o principal esforço português se desviasse essencialmente para o Brasil e para assegurar as viagens das chamadas “naus dos quintos”, com os respectivos impostos.

Com a centralização do poder régio e, principalmente, com o advento do gabinete do marquês de Pombal, inicia-se uma nova etapa no conhecimento do território continental português. A partir de então estavam lançadas as bases do estado centralizado, de raiz iluminista, o chamado “despotismo iluminado” e o gabinete de Pombal não recuaria, mesmo quando foi necessário deslocar povoações inteiras, se a sua localização não era considerada a melhor.

Parte desse trabalho foi mais uma vez entregue aos engenheiros militares, dado que se entendia estar em causa a defesa colectiva, com base na cativação de verbas gerais para esses trabalhos e na mobilização das respectivas populações.

Também no Brasil a fortificação portuguesa dos meados do século XVIII foi colocada várias vezes à prova numa série de conturbadas situações políticas e, embora nem sempre capaz de responder às ameaças, mostrou-se no entanto geralmente eficaz.

A situação mudou nos inícios do século XIX, pela completa alteração dos pressupostos políticos para que tinham sido edificadas as defesas em causa. As mudanças políticas europeias que levaram à invasão do território português por desproporcionadas forças conjuntas da França e da Espanha eram uma premissa que até então não se tinha colocado como possível. A invasão de Portugal levou à saída da Corte para o Brasil, facto que alterou profundamente toda a situação portuguesa e obrigou ao repensar de toda a política de defesa do País. As sucessivas invasões francesas de Portugal e a ocupação do território por forças inglesas levaram a considerar complexos sistemas de defesa interna, essencialmente do centro nevrálgico político que era a cidade de Lisboa.

Por outro lado, tornado o Brasil cabeça do Império, uma nova centralidade da Coroa Portuguesa obrigou a uma perspectiva substancialmente diferente do exercício do poder, perspectiva que os historiadores portugueses têm tido dificuldade em compreender, até hoje.


4.     Eu tive o privilégio de exercer o cargo de director do Arquivo Histórico Militar de Lisboa durante catorze anos, de 1993 a 2007.

Como resultado da minha experiência queria realçar que os arquivos têm uma relação íntima com a informação e que só a sua boa organização pode garantir, nas actuais sociedades, um eficaz acesso à memória que guardam. E que, sem essa informação e essa memória, dificilmente alguém pode tomar boas decisões, seja qual for o nível do seu exercício do poder.

Contudo, os arquivos não são apenas um instrumento do bom exercício do poder. Os arquivos guardam as provas dos factos administrativos, jurídicos, históricos, pelo que o seu zelo é tão útil à defesa dos direitos do cidadão, como à defesa dos interesses do Estado. Talvez por isso possamos falar da relação, sempre tão difícil, entre regimes políticos e arquivos.

A democracia, tanto mais quanto for evoluída, cultiva a memória dos factos, em nome da liberdade, da equidade, dos interesses dos cidadãos e do Estado, do equilíbrio e das diferenças. O segredo tem os limites da lei. A sua relação com os arquivos rege-se por princípios simples.

Os regimes de ditadura cultivam o mito e tendem a esconder ou esquecer os factos. Inventam a memória. A sua relação com os arquivos é difícil.

Pode a lei assegurar uma profunda mudança na administração pública, no que concerne à definição dos direitos dos cidadãos, da igualdade perante os poderes e do acesso à informação, mas a verdade é que a sua concretização se tem mostrado sempre muito difícil.

Contudo, um povo que não preserva a sua memória, não merece os seus antepassados, nem a sua História. Fica à deriva, sem perceber que a História lhe dá certezas, que os antepassados lhe apontam rumos, que a memória lhe assegura uma alma. Em vez de se empenhar em caminhar, confunde-se à procura do caminho. Recorre a experiências estranhas, em vez de pensar com os pensamentos dos seus avós.

No exercício do meu cargo de director do Arquivo Histórico Militar de Lisboa procurei cumprir um programa exigente de preservação, abertura à sociedade e divulgação do património documental à minha guarda. Foi nesta condição que, num dia de 2006, recebi um pedido da Universidade Federal de Santa Catarina, em que o Arquitecto e Professor Roberto Tonera, referindo a participação do meu amigo, também Arquitecto e Professor Mário Mendonça de Oliveira da Universidade Federal da Bahia, me expunha o projecto de publicação em fac-simile do Códice de Santa Catarina, manuscrito propriedade do Arquivo que eu dirigia. A aceitação foi imediata e as negociações muito breves. Com o apoio do Exército Português rapidamente concluímos que a realização da publicação era de enorme vantagem para todos, com isso se cumprindo um dever intrínseco ao papel dos arquivos públicos.

Devo dizer que foi com emoção que tive notícias da concretização do projecto, mesmo que sejam passados três anos após ter deixado as funções de director do Arquivo Histórico Militar. A emoção cresceu com o encargo de escrever esta Apresentação, tarefa que aceitei sem vacilar.

Possa este acto influenciar de algum modo a política de salvaguarda e preservação de um património comum da humanidade, em especial de Portugal e dos países nascidos à sombra destas Fortificações! Se compreendermos a dimensão da nossa riqueza de memórias comuns, será fácil enfrentarmos os desafios do nosso futuro, construindo novos baluartes para a defesa do património que nos aproxima – a história, a língua, a amizade.


Publicado em:

Roberto Tonera e Mário Mendonça de Oliveira (org.), As defesas da Ilha de Santa Catarina e do Rio Grande de São Pedro em 1786 de José Correia Rangel, Santa Catarina, UFSC, 2011.



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