domingo, 8 de janeiro de 2017

GUERRA COLONIAL - ESTAVA O EXÉRCITO PREPARADO?




Em 2011 fui convidado pela Fundação Mário Soares a apresentar uma comunicação ao Colóquio “1961 – O Ano ‘terrível’ de Salazar”, sobre o Exército nas vésperas da guerra colonial. Aproveito hoje para prestar sentida homenagem ao seu mentor, Dr. Mário Soares, que acaba de nos deixar.
Procurei fazer um retrato realista, considerando que o Exército não estava preparado, mas admitindo que se adaptou com considerável rapidez à tremenda mudança a que foi obrigado.
Divido o texto em quatro partes para mais fácil leitura. Mas publico todas as partes de seguida, em diferentes posts.



Cartaz do colóquio realizado na Fundação Mário Soares. 

Parte 1

Quando a guerra colonial começou, em Março de 1961, as Forças Armadas Portuguesas estavam mal preparadas para enfrentar os acontecimentos.

Apesar de tudo, ao longo da última década, a partir do início dos anos 50, tinha sido desenhado um novo perfil estratégico e organizativo da força militar, que orientava os vários ramos das Forças Armadas para um conceito mais adequado aos tempos de mudança. Só que a consciência da nova situação internacional e em especial a sua tradução em medidas concretas se arrastou ao longo dos anos, não se ultrapassando em muito o mero edifício burocrático que foi sendo construído. Apenas nos últimos anos, a partir de 1958, se imprimiu um ritmo mais efectivo às reformas necessárias.

A questão colonial, que em Portugal vinha da Conferência de Berlim e dos dramáticos acontecimentos que se lhe seguiram, nunca foi objecto, por parte das autoridades portuguesas dos vários regimes, de uma solução coerente, razoável e exequível. Não é reconhecível uma linha de actuação adequada às capacidades do país, dentro do quadro de relações que se foram estabelecendo entre os vários poderes coloniais e destes com as respectivas colónias.

Ora, se até à Segunda Guerra Mundial tal atitude nunca chegou a configurar uma situação de rotura com as linhas de força da política colonial europeia, a verdade é que tudo se transformou depois da Guerra.

O movimento descolonizador nasceu e propagou-se com base no ambiente internacional saído da Guerra. As novas condições internacionais, reconhecidas pelas orientações da Carta das Nações Unidas, geraram sentimentos de autonomia e novas capacidades de luta dos povos não autónomos.

Em Portugal, o regime do Estado Novo, pela sua própria natureza, não se adaptou aos “ventos da História”. Não evoluiu, não se transformou e teve sempre dificuldade em reconhecer a mudança que os tempos exigiam. As soluções possíveis foram-se estreitando com o passar dos anos e quando a guerra colonial estalou em Angola, o regime não estava preparado para uma resposta credível – nem política, nem militarmente.

Deste conjunto de incapacidades, interessa-nos focar a questão militar e, em especial, o Exército.

(…)

As reformas, tímidas e hesitantes vinham de longe, do pós-Segunda Guerra Mundial. Ultrapassado o período difícil de dois ou três anos depois do fim da guerra, em que o regime se viu confrontado com uma situação internacional pouco propícia à sua continuidade, o desenho da ameaça soviética e o início da Guerra-Fria concederam-lhe mais um período de vigência (1). A entrada de Portugal na NATO, como país fundador, em 1949 (2), deu um novo alento ao regime e imprimiu um rumo distinto às questões relacionadas com as Forças Armadas. A partir daí, os responsáveis militares tiveram que levar a cabo um trabalho continuado de reestruturação de princípios e da organização (3).

A década de 50 foi um tempo de significativas alterações militares em Portugal, em qualquer dos ramos das Forças Armadas. Em primeiro lugar, um certo número de militares portugueses teve acesso a tecnologias avançadas e, com elas, a um novo sistema de organização de forças, assim como a diferentes e mais exigentes processos de formação, de comando e de relações entre os vários intervenientes. Em consequência deste impacto, foram nascendo novos conceitos de estratégia nacional, de defesa militar, de planeamento e de doutrinas militares, que tinham por objectivo final uma transformação radical da forma de utilizar as forças armadas. O Exército de massas, virado para a actuação na Península, com uma forte componente de acção interna, vai cedendo lugar a um conceito de força aeronaval, paralela a uma componente terrestre mais ligeira e eficaz (sem que tivesse sido posta em causa a defesa interna do regime).

Ao longo da década modifica-se a estrutura superior de comando, com um ministro da Defesa, um Chefe do Estado-Maior General, a separação da Força Aérea e do Exército, embora se mantenham um ministro do Exército e um ministro da Marinha, assim como um subsecretário de Estado da Aeronáutica (4).

É importante frisar que a NATO proporcionou crescentes contactos de oficiais das Forças Armadas com outros países membros, através da frequência de cursos e estágios nas respectivas escolas de formação, com oportunidades de conhecimento de sociedade mais evoluídas e, sobretudo, democráticas.

Esta aprendizagem preparou uma geração de militares para uma mais alargada compreensão do mundo, mas não ditou, necessariamente, adesão a muitas das mais importantes ideias de mudança, nascidas no pós-Guerra e depois incluídas na Carta das Nações Unidas e assumidas pelo movimento descolonizador.

Por outro lado, a grande massa dos quadros do Exército manteve as suas rotinas e as suas convicções, continuando alheado ou aderindo relutantemente às inovações trazidas pelos novos tempos.

Em resumo, à medida que a década decorre, algumas reestruturações se vão efectuando, mas sem que se ultrapasse um certo nível de inovação e de autonomia técnica, que pudesse pôr em causa o comprometido apoio das Forças Armadas ao regime.

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(1) Em 6 de Setembro de 1944, com a situação militar na Europa clarificada, Salazar abandona as funções de Ministro da Guerra, sendo investido como titular do cargo o, até então, Subsecretário de Estado, Fernando dos Santos Costa. O novo ministro irá desempenhar um papel relevante, no seio do Exército, até 1958.

(2) A adesão de Portugal ao Tratado do Atlântico, em 1949, vai provocar no Exército ajustamentos adequados aos novos compromissos militares. Uma das decisões mais importantes tomadas nesse âmbito é a da instalação de um vasto campo militar, para manobras, em Santa Margarida. Quando, em 1953, as obras de edificação do campo se encontram já adiantadas, é criado oficialmente o comando do Campo de Instrução Militar de Santa Margarida (CIMSM), o qual, desde essa época, não mais deixou de constituir a infra-estrutura mais importante do exército.

(3) A organização superior do Ministério do Exército é de novo reestruturada em 1959 (DL 42.564, de 7 de Outubro). São de realçar as seguintes alterações:
            –   O Chefe do Estado-Maior (CEME), embora continue subordinado ao Ministro do Exército, assume claramente a figura de topo do ramo;
            –   O CEME passa a ser coadjuvado por um Vice-CEME;
            –   Desaparece o cargo de Administrador-Geral do Exército;
            –   É criado o cargo de Inspector-Geral do Exército, na dependência directa do Ministro;
            –   Os cargos de Ajudante-General e de Quartel-Mestre-General passam à directa dependência do CEME.

(4) Com a criação do cargo de Ministro da Defesa, no âmbito da Presidência do Conselho de Ministros (DL 37.909, de 1 de Agosto de 1950), o Ministério da Guerra passa a designar-se por Ministério do Exército. Simultaneamente, é criado o cargo de Subsecretário de Estado da Aeronáutica. O mesmo diploma extingue as funções de Major-General e, provisoriamente, passa para o recém-criado cargo de Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas as suas competências de comandante operacional. As funções de Vice-Presidente do Conselho Superior do Exército, por seu turno, são atribuídas ao Chefe do Estado-Maior do Exército.


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