domingo, 22 de janeiro de 2017

PORTUGAL E A GLOBALIZAÇÃO - FUNÇÕES DO ESTADO



Em 2015, a Associação de Oficiais das Forças Armadas (AOFA) publicou um livro sobre as funções do Estado no qual tive o gosto de participar com um texto que se intitulou “Portugal e a segurança num ambiente de globalização”. Apesar se esta área não ser de todo da minha esfera de interesses, não quis deixar de responder ao pedido da AOFA. Acabei por considerar essa participação uma experiência interessante, que alargou os meus horizontes.

Publico aqui esse texto e ao relê-lo verifico como as suas linhas principais se adequam ao tempo que passa…
  





Ideia geral
De acordo com as ideologias dominantes, as sociedades modernas têm perceções diferentes quanto às funções do Estado, mas existe hoje, na tradição democrática, a ideia das suas obrigações essenciais. Os objetivos que o Estado deve alcançar têm variado ao longo do tempo, inserindo-se frequentemente num conceito estratégico que os enquadra e afirma.
O desenho das funções do Estado só se torna consistente se tiver em conta não apenas as ameaças, as debilidades e as relações com outros Estados ou organizações, mas também a história, as tradições e a evolução do pensamento da sociedade acerca de si própria.
Na fase final do século XX assistiu-se, por exemplo, a uma mudança radical do conceito de segurança, em face da dinâmica do processo de globalização, que veio pôr em causa os padrões históricos das relações entre Estados.
A diferenciação entre o nacional e o estrangeiro conheceu uma erosão contínua, embora a emergência desta nova situação não tenha uma distribuição uniforme. Ao mesmo tempo que o global invadiu o quotidiano, alguns fenómenos locais mais próximos conheceram também uma expansão equivalente.
Podemos dizer que, desde as duas décadas finais do século XX, foi posto em causa o tipo anterior de relações entre Estados, pelas profundas alterações dos meios e das capacidades tecnológicas postas ao serviço do Homem. Em poucos anos, a humanidade passou a ser globalmente vizinha, com o dramático encurtamento das distâncias.
Esta nova circunstância obrigou a repensar o papel dos Estados, das suas funções e objetivos, e neste novo ambiente, a reequacionar a questão da segurança das populações e comunidades, que sempre foi um dos seus exclusivos fins.

A globalização e as suas consequências
Seguindo alguns especialistas, podemos afirmar que a globalização tem dois sentidos principais, historicamente interdependentes e de influências mútuas – a globalização político-económica e a globalização técnico-cultural. Por um lado, assistimos ao crescimento de uma economia mundial integrada (triunfo dos princípios capitalistas) e por outro, afirma-se um processo complexo de inter-relacionamentos do conhecimento, da informação, dos comportamentos, entre a valorização das componentes globais e da afirmação dos valores locais.
Neste ambiente, é possível salientar algumas características fundamentais para a análise do contexto de mudança da política mundial e das respetivas consequências, no enquadramento da segurança das comunidades e países.
Assim, devemos ter em atenção que a globalização se insere num grande movimento histórico com mais de cinco séculos, embora com uma dinâmica de aceleração a partir do último quartel do século XX nunca antes conhecida, e que, no ambiente atual, é um movimento irreversível. Os Estados, tal como os conhecemos, terão a sua capacidade de ação independente cada vez mais limitada. E embora possam continuar a deter uma fatia importante do poder de decisão, a soberania de cada um ficará cada vez mais limitada pela dinâmica da economia global.
Também devemos ter em atenção que a globalização está a demonstrar um efeito desigual, tanto no impacto da economia, como no processo cultural. Essas diferenças abrangem não apenas os Estados e as regiões, como os grupos e as classes sociais. O alcance das tecnologias que caracterizam a mudança é muito desigual, os impactos ambientais tendem a desfavorecer as regiões já desfavorecidas, as desigualdades, em todas as circunstâncias, acentuam-se entre os que têm e os que não têm, a insegurança aumenta onde ela já é precária.
De qualquer forma, a questão não tem a ver com a emergência da globalização, mas sobretudo com a sua natureza, e é aí que deve centrar-se o debate. As formas que têm sido privilegiadas, baseadas sobretudo em modelos ideológicos, acabam por impor soluções indesejadas pelas comunidades.
Ora, o que se torna indispensável é aproveitar o processo de globalização no sentido de procurar as melhores soluções para um conjunto de problemas que afetam os povos, direcionando as políticas para a obtenção de progressos com base no benefício múltiplo e numa visão mais adequada das necessidades do homem. No fundo, poderíamos aproveitar as oportunidades oferecidas pela globalização técnico-cultural para chegar a relações económicas de maior igualdade.
Finalmente, a era da globalização vem alterando muitos dos conceitos tradicionais ligados à segurança. De facto, o Estado está agora mais aberto e tem menos poderes para enfrentar as situações críticas, por si só. De certa forma, a globalização exige adaptação contínua em relação aos anteriormente indiscutíveis valores da soberania tradicional.

Portugal, contributo para um conceito de segurança
A história recente de Portugal alterou profundamente o seu posicionamento no concerto mundial, não só pelas consequências resultantes da Revolução Portuguesa de 1974, instauração do regime democrático e independências dos antigos territórios coloniais, como pela adesão de Portugal à CEE, depois transformada em Comunidade Europeia.
A primeira consequência visível foi o regresso de Portugal ao seu território inicial, de âmbito europeu, embora os cinco séculos de presença no mundo constituam um património histórico de valor incalculável e seguramente um elemento essencial na definição do papel de Portugal no mundo.
De acordo com análises habituais, outros elementos essenciais se têm considerado na definição dos objetivos do Estado português, no âmbito da segurança da sua comunidade.
Assim, com base na sua localização geográfica, devemos referir o valor das suas posições estratégicas no Atlântico e o vasto espaço marítimo e aéreo, onde confluem importantes rotas internacionais. Também tem sido considerado o efetivo valor das comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo. Finalmente, nas últimas décadas, Portugal tem valorizado o seu posicionamento na comunidade internacional, pelo seu papel de parceiro construtivo e pacífico, de diálogo e de aproximação. Consideram-se ainda as mudanças no quadro das relações internacionais e respetivas consequências, como elementos de enquadramento das tarefas do Estado português, não apenas no contexto da segurança, mas também do seu contributo para a estabilidade e a resolução de conflitos. Finalmente, a participação na Comunidade Europeia alterou profundamente o conceito territorial, pela diluição das fronteiras e pelas consequências dos tratados europeus de livre circulação.
Simplificando, poderá dizer-se que a fronteira de segurança tende a ficar próxima da fronteira da Aliança Atlântica, que a fronteira económica tende a alargar-se à dimensão da União Europeia e que a fronteira cultural mantém em grande parte as componentes do espaço lusófono e da língua portuguesa.
Em consequência, pode inferir-se, por exemplo, que as atuais relações de Portugal com a vizinha Espanha se desenrolam tanto através das organizações internacionais em que ambos participam, como são relevantes os esforços conjuntos para a construção bilateral de uma nova relação.
Contudo, a sociedade portuguesa mantém debilidades que devem ser consideradas na definição do seu posicionamento no concerto das nações, sendo habitual destacar alguns problemas estruturais, como a incipiência do seu tecido produtor, a ausência de estratégias persistentes de desenvolvimento e de produtividade, as altas taxas de desemprego e a consequente fuga de população jovem qualificada, o envelhecimento da população, o desequilíbrio das contas públicas, o aumento das assimetrias sociais e regionais.
Tal situação tem-se traduzido na persistência da dependência histórica de apoios externos, nem sempre conseguidos em situação de mútua vantagem, pela debilidade negocial de Portugal.

A Constituição da República Portuguesa
As tarefas fundamentais do Estado português estão definidas no artigo 9º da Constituição. Entre elas incluem-se a garantia da independência nacional e criação de condições políticas, económicas, sociais e culturais que a promovam, a garantia dos direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de Direito democrático, a defesa da democracia política e a participação democrática dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais.
Em consequência, a Constituição, no que respeita especificamente à Defesa Nacional, atribui ao Estado, no seu artigo 273, a obrigação de assegurar essa defesa, apontando os objetivos a garantir: “a independência nacional, a integridade do território e a liberdade e a segurança das populações contra qualquer agressão ou ameaça externas”, sempre “no respeito da ordem constitucional, das instituições democráticas e das convenções internacionais”.

Conceito Estratégico de Defesa Nacional
Desde os anos 80 do século XX, em especial depois da adesão de Portugal à CEE, aproximadamente coincidente com o fim da guerra fria, as prioridades estratégicas de Portugal têm sido consideradas no âmbito da Comunidade Europeia, da Aliança Atlântica e da Comunidade de Países de Língua Portuguesa. De forma genérica, Portugal tem enunciado alguns interesses orientadores da sua presença no mundo – afirmação da sua identidade, inserção num conjunto de alianças determinantes para a sua segurança e defesa, assim como para a sua prosperidade, afirmação da sua credibilidade como Estado, valorização das comunidades portuguesas, e contribuição para a paz e o progresso internacionais.
As várias versões do Conceito Estratégico de Defesa Nacional que têm sido aprovadas vêm reconhecendo a decisiva importância do vetor militar no apoio à política externa do Estado, como instrumento de participação frequente em ações geradoras de segurança internacional.
Por outro lado, a mudança do sistema mundial, que a globalização tem proporcionado, vem acentuando uma progressiva interdependência mundial, que se estende da política à economia e mesmo aos sistemas de defesa e militares. Tal situação impõe uma constante atenção à capacidade de relacionamento internacional e à articulação das políticas comuns no âmbito da rede dos aliados e países amigos, à gestão dos riscos e das ameaças e à concertação de políticas internas que contribuem para o fortalecimento das capacidades de Portugal.



Conclusões
Em conclusão, é indiscutível que os Estados democráticos assumem atualmente um conjunto de funções inalienáveis, entre as quais se conta a criação de um ambiente de segurança, que os cidadãos e as comunidades apreciam e exigem. Mas o processo de globalização, e em especial a aceleração que conheceu desde as duas décadas finais do século XX, têm obrigado os Estados a rever e adaptar as suas funções, sem que tal signifique qualquer substancial alteração do conceito de segurança ou doutras funções essenciais do Estado. O novo ambiente criado pelas mudanças nas relações dos povos, das comunidades e dos Estados, face à globalização, tem exigido uma progressiva mudança no relacionamento entre Estados, tornando cada vez mais complexa a matriz das relações internacionais, em especial no que respeita à componente da segurança. No que lhe diz respeito, Portugal vem contribuindo de forma positiva para a criação de um ambiente internacional de paz, estabilidade e resolução de conflitos, no âmbito próprio ou em coordenação com os seus parceiros e aliados, tanto da Comunidade Europeia, como da Aliança Atlântica, como da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.
Porque a Constituição da República Portuguesa contém um conjunto de obrigações do Estado, tanto no que respeita às suas tarefas fundamentais, como aos objetivos a garantir no âmbito da Defesa Nacional, os poderes democráticos têm estabelecido um Conceito Estratégico de Defesa Nacional, a que todos os componentes do Estado se acham vinculados.
Em suma, enquanto as mudanças no sistema mundial vêm criando uma obrigação de permanente adaptação das políticas de relacionamento internacional, o Estado português deverá preservar uma capacidade de atuação própria no concerto das Nações e dos novos poderes, por forma a garantir o essencial das suas funções, sob pena de contribuir para a sua irrelevância e autodestruição.
No âmbito da segurança e da defesa, o Estado português não pode deixar de conciliar o seu papel no seio das organizações internacionais e dos tratados que o obrigam, com a afirmação dos seus interesses próprios e inalienáveis, canalizando os recursos adequados ao cumprimento dos seus objetivos de afirmação da identidade e da prosperidade do povo português.
Finalmente, as Forças Armadas, como componente essencial da defesa nacional, devem poder desempenhar cabalmente as missões que lhe estão atribuídas, tanto no âmbito da prevenção da paz e segurança, como na participação em missões internacionais previstas nos tratados assinados por Portugal.


Referências bibliográficas principais:
BOOTH, Ken, “Teorias e Práticas da Segurança no Século XX:
Sequência Histórica e Mudança Radical”, Nação e Defesa, Outono 2001, pp. 19-50. Ver em: http://comum.rcaap.pt/bitstream/123456789/1439/1/NeD099_KenBooth.pdf
FERREIRA, Pedro Teles, Política Externa e Defesa Nacional: Razões de Estado. Contraditório Think Tank, Julho 2013. Ver em: www.contraditorio.pt
SANTOS, José Alberto Loureiro dos, “O Estado e as Políticas de Defesa”, Revista Militar, Dezembro de 2007. Ver em: http://www.revistamilitar.pt/artigo.php?art_id=250



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