Nesta 2ª Parte do texto de
Apresentação do livro “As Defesas da Ilha de Santa Catarina”, tento fazer uma
síntese da política de defesa após a Restauração, com referência especial ao
Brasil. Tive para isso o apoio do meu amigo Rui Carita, que fez o favor de
rever o texto e fazer as recomendações que achou pertinentes.
Termino com uma nota sobre
a importância da preservação dos arquivos e da informação que guardam e também da relação, sempre difícil, entre arquivos e regimes políticos.
Parte 2
Rosto do códice original, propriedade do Arquivo Histórico Militar. |
3.
A prioridade da política defensiva do
espaço ibérico durante o período filipino, entre 1580 e 1640, foi
“eminentemente marítima”, com o objectivo de salvaguardar o império comum e
defender o Mare Clausum. Na primeira parte do século XVII, enquanto
durou a união ibérica, a instabilidade e as ameaças foram permanentes, tanto no
Oriente, como no Brasil e nas ilhas atlânticas. Contudo, a partir da aclamação
de D. João IV no final de 1640, passou a existir um quadro político-militar
completamente diferente, que obrigou a rever, como é natural, todas as
orientações de defesa que vinham do anterior.
Da
parte portuguesa, a principal preocupação passou a ser a afirmação da soberania
sobre o território metropolitano, complementado com as preocupações
ultramarinas, e, em especial, do Atlântico, suporte económico da coroa portuguesa
da dinastia de Bragança, dada a decadência do quadro do Índico.
As
primeiras directivas militares da Restauração foram para a reforma em larga
escala do sistema defensivo continental europeu, com uma ampla campanha de
fortificação da raia terrestre, à época ainda com inúmeros castelos medievais.
Ao mesmo tempo houve consciência da absoluta necessidade de assegurar o
território brasileiro e, como seu suporte humano de apoio, as costas africanas,
especialmente a de Angola, até pela fragilidade e distância dos territórios do
Índico.
Estabelecida
a paz com Castela, a partir de 1668, os interesses portugueses voltaram-se
essencialmente para o Brasil e para a tentativa de manutenção das fantásticas
fronteiras desenhadas pela expansão bandeirante e que definiam para Portugal mais
de um terço da América Latina. Vai ser essencialmente nesse quadro que se vão
desenvolver as actividades da engenharia e da arquitectura militar portuguesas,
assim como o reconhecimento desse imenso território, a sua tomada de posse e a inventariação
dos seus recursos, essenciais para a cativação dos impostos pela coroa
portuguesa. Este aspecto levou a que o principal esforço português se desviasse
essencialmente para o Brasil e para assegurar as viagens das chamadas “naus dos quintos”, com os respectivos impostos.
Com
a centralização do poder régio e, principalmente, com o advento do gabinete do
marquês de Pombal, inicia-se uma nova etapa no conhecimento do território
continental português. A partir de então estavam lançadas as bases do estado
centralizado, de raiz iluminista, o chamado “despotismo iluminado” e o gabinete
de Pombal não recuaria, mesmo quando foi necessário deslocar povoações
inteiras, se a sua localização não era considerada a melhor.
Parte
desse trabalho foi mais uma vez entregue aos engenheiros militares, dado que se
entendia estar em causa a defesa colectiva, com base na cativação de verbas
gerais para esses trabalhos e na mobilização das respectivas populações.
Também
no Brasil a fortificação portuguesa dos meados do século XVIII foi colocada
várias vezes à prova numa série de conturbadas situações políticas e, embora
nem sempre capaz de responder às ameaças, mostrou-se no entanto geralmente
eficaz.
A
situação mudou nos inícios do século XIX, pela completa alteração dos
pressupostos políticos para que tinham sido edificadas as defesas em causa. As mudanças
políticas europeias que levaram à invasão do território português por
desproporcionadas forças conjuntas da França e da Espanha eram uma premissa que
até então não se tinha colocado como possível. A invasão de Portugal levou à
saída da Corte para o Brasil, facto que alterou profundamente toda a situação
portuguesa e obrigou ao repensar de toda a política de defesa do País. As
sucessivas invasões francesas de Portugal e a ocupação do território por forças
inglesas levaram a considerar complexos sistemas de defesa interna,
essencialmente do centro nevrálgico político que era a cidade de Lisboa.
Por
outro lado, tornado o Brasil cabeça do Império, uma nova centralidade da Coroa
Portuguesa obrigou a uma perspectiva substancialmente diferente do exercício do
poder, perspectiva que os historiadores portugueses têm tido dificuldade em
compreender, até hoje.
4.
Eu tive o privilégio de exercer o
cargo de director do Arquivo Histórico Militar de Lisboa durante catorze anos,
de 1993 a
2007.
Como resultado da minha
experiência queria realçar que os arquivos têm uma relação íntima com a
informação e que só a sua boa organização pode garantir, nas actuais
sociedades, um eficaz acesso à memória que guardam. E que, sem essa informação
e essa memória, dificilmente alguém pode tomar boas decisões, seja qual for o
nível do seu exercício do poder.
Contudo, os arquivos não
são apenas um instrumento do bom exercício do poder. Os arquivos guardam as
provas dos factos administrativos, jurídicos, históricos, pelo que o seu zelo é
tão útil à defesa dos direitos do cidadão, como à defesa dos interesses do
Estado. Talvez por isso possamos falar da relação, sempre tão difícil, entre
regimes políticos e arquivos.
A democracia, tanto mais
quanto for evoluída, cultiva a memória dos factos, em nome da liberdade, da
equidade, dos interesses dos cidadãos e do Estado, do equilíbrio e das
diferenças. O segredo tem os limites da lei. A sua relação com os arquivos
rege-se por princípios simples.
Os regimes de ditadura
cultivam o mito e tendem a esconder ou esquecer os factos. Inventam a memória.
A sua relação com os arquivos é difícil.
Pode a lei assegurar uma
profunda mudança na administração pública, no que concerne à definição dos
direitos dos cidadãos, da igualdade perante os poderes e do acesso à informação,
mas a verdade é que a sua concretização se tem mostrado sempre muito difícil.
Contudo, um povo que não preserva a sua memória, não
merece os seus antepassados, nem a sua História. Fica à deriva, sem perceber
que a História lhe dá certezas, que os antepassados lhe apontam rumos, que a
memória lhe assegura uma alma. Em vez de se empenhar em caminhar, confunde-se à
procura do caminho. Recorre a experiências estranhas, em vez de pensar com os
pensamentos dos seus avós.
No
exercício do meu cargo de director do Arquivo Histórico Militar de Lisboa
procurei cumprir um programa exigente de preservação, abertura à sociedade e
divulgação do património documental à minha guarda. Foi nesta condição que, num
dia de 2006, recebi um pedido da Universidade Federal de Santa Catarina, em que
o Arquitecto e Professor Roberto Tonera, referindo a participação do meu amigo,
também Arquitecto e Professor Mário
Mendonça de Oliveira da Universidade Federal da Bahia, me
expunha o projecto de publicação em fac-simile do Códice de Santa Catarina, manuscrito propriedade do Arquivo que eu
dirigia. A aceitação foi imediata e as negociações muito breves. Com o apoio do
Exército Português rapidamente concluímos que a realização da publicação era de
enorme vantagem para todos, com isso se cumprindo um dever intrínseco ao papel
dos arquivos públicos.
Devo
dizer que foi com emoção que tive notícias da concretização do projecto, mesmo
que sejam passados três anos após ter deixado as funções de director do Arquivo
Histórico Militar. A emoção cresceu com o encargo de escrever esta
Apresentação, tarefa que aceitei sem vacilar.
Possa
este acto influenciar de algum modo a política de salvaguarda e preservação de
um património comum da humanidade, em especial de Portugal e dos países
nascidos à sombra destas Fortificações! Se compreendermos a dimensão da nossa
riqueza de memórias comuns, será fácil enfrentarmos os desafios do nosso futuro,
construindo novos baluartes para a defesa do património que nos aproxima – a
história, a língua, a amizade.
Publicado
em:
Roberto
Tonera e Mário Mendonça de Oliveira (org.), As
defesas da Ilha de Santa Catarina e do Rio Grande de São Pedro em 1786 de José
Correia Rangel, Santa Catarina, UFSC, 2011.
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