A propósito de alguns dos problemas
que nos assolam hoje em dia, lembrei-me de um texto que publiquei em 1992, há
portanto 24 anos, num volume de Atas de um colóquio organizado pela Universidad
Nacional de Educación a Distancia (UNED), em Mérida, que se chamou “Portugal,
España y Africa en los últimos cien años”.
Há pequenos detalhes que talvez
corrigisse hoje, mas no essencial revejo-me nas ideias que aqui reproduzo.
Dois modelos de descolonização
Durante o período da descolonização
surgiram em Portugal dois modelos principais para a independência das colónias.
Um deles, projecto lógico do ponto de vista dos interesses imediatos do
descolonizador, preconizava a imposição de condições prévias, como garantia do
empenhamento português. Os futuros países deveriam assegurar certo tipo de
transição, conceder certas vantagens e privilégios a Portugal e aos
portugueses, integrar determinadas regras e princípios. Era um projecto lógico,
mas evidentemente inexequível.
O outro modelo, baseado na análise
directa dos factos, pretendeu preservar, de forma indirecta, a continuidade
portuguesa, sem que, para isso, fosse necessário impor qualquer condição
prévia, antes argumentando com as vantagens mútuas de certas ligações e da
manutenção de certos princípios. Era um modelo imposto pela situação que se
vivia depois do 25 de Abril.
A imposição de condições prévias
configurava um modelo neocolonial, já aplicado à África por outras potências
europeias, e era assumido pelas forças conservadoras e pelos interesses
económicos, em especial os que estavam implantados em África. Durante alguns
meses o seu representante privilegiado foi o general Spínola.
O modelo da descolonização
consensual foi assumido pelo MFA e pelas forças de esquerda dessa época. Foram
estas forças que vieram a sobrepor-se às primeiras e a assumir, pela parte
portuguesa, o papel que lhes coube na descolonização.
Os factores essenciais que motivaram
este posicionamento poderão resumir-se:
· Existência de movimentos de libertação nos cinco
territórios africanos que, ou tinham conduzido uma guerra prolongada contra o
poder colonial, ou tinham, pelo menos, assumido o combate contra a presença
portuguesa;
· Certa sintonia ideológica entre os representantes das
partes envolvidas;
· Fragilidade política e militar de Portugal no momento
crucial das negociações de transferência do poder;
· Modelo dominante das relações internacionais baseado
na capacidade de intervenção directa das grandes potências, em especial da
União Soviética.
Desta primeira fase resultou um
modelo novo de descolonização europeia, no qual as imposições da Metrópole
foram reduzidas a um nível mínimo, ainda assim baseadas no princípio da mútua
vantagem.
É evidente que
este modelo é hoje muito discutível, tanto nas razões que o impuseram, como nas
consequências que em geral lhe são imputadas.
Aliás, desde muito cedo, poucos
foram os que souberam discernir as vantagens da aplicação do modelo português.
A maior parte das vezes perdeu-se, talvez por uma má consciência politicamente
insuportável, a noção das virtualidades contidas nas relações resultantes da
aplicação do modelo consensual de descolonização. O Estado português, durante
um longo período após a descolonização, não soube transformar em projectos
concretos de cooperação, as condições potencialmente favoráveis que herdou do
período da descolonização. Foi necessário esperar alguns anos até ser assumido
o chamado «pragmatismo» nas relações com os novos países africanos. De uma
forma geral chegou tarde, mas pôde ainda recuperar algumas daquelas
virtualidades.
Deverá a
democracia servir de moeda de troca?
O panorama africano é hoje
profundamente diferente da situação da década de setenta e início da década de
oitenta. De facto, no final da última década aconteceu uma viragem de profundas
repercussões não só para África mas para o mundo inteiro. A desintervenção das
grandes potências trouxe ao de cima novas realidades em África, fustigada por
uma insuperável crise económica que vincava ainda mais a sua situação de região
mais pobre do planeta.
As mudanças no Leste Europeu
criaram, no Ocidente, a ideia, mais uma vez eurocentrista, de que a solução dos
problemas do mundo se reduzia à exportação
do sistema político a que ela própria aportara, depois de vários séculos de
experiências e de muitas opções falhadas.
A solução democrática em África,
defendida pelo liberalismo ocidental e aceite por muitos dos regimes africanos,
está envolvida por uma componente de desespero pela parte destes, em face da
ineficácia de todas as soluções anteriormente tentadas. Mas será o desespero um
bom companheiro da democracia?
Embora muito aplaudida, esta onda de
democratização em África é uma hipótese
ainda não testada, ou com testes de resultados pouco aliciantes. Contrariamente
ao processo histórico europeu (ou melhor, ocidental), onde a democracia é o
resultado final de uma longa evolução, em África ela prepara-se para ser o
início dum processo histórico novo, querendo esquecer ou ignorar as raízes do
modo de estar africano.
Pior, porém, que esta experiência
impulsionada pelo Ocidente, parece ser a posição de alguns países colocados na
vanguarda deste combate pela importação da “nova” solução. De facto, enquanto
no passado recente as ajudas económicas e de cooperação em favor dos países
africanos se baseavam em critérios diversos, que iam desde a vantagem mútua até
à afirmação de esferas de influências
preventivamente conservadas, muito recentemente parece pretender-se que o
critério base para o desenvolvimento da política de cooperação, seja a
instauração de regimes democráticos.
Parece evidente que restarão poucas
alternativas que não pareçam irrealistas, ou mesmo absurdas. Contudo, se a
África deve preparar os processos democráticos, a Europa deve preparar-se para
assistir, provavelmente, ao fracasso das suas tentativas de impor um modelo
que, em princípio, só acasala com a prosperidade.
Uma vez iniciadas as transformações
internas preparatórias da mudança de regime, a que os dirigentes actuais das
ex-colónias portuguesas têm respondido com muita disponibilidade, parece
indispensável não impormos mais uma condição prévia, aceitando os resultados
das eleições, mesmo que possam parecer desfavoráveis aos nossos secretos
desejos.
O modelo de valores dos povos africanos
é substancialmente diferente do nosso, apesar da contínua assimilação de
heranças deformadoras da sua ancestralidade. A questão das fronteiras nacionais
é sem dúvida uma questão de grande sensibilidade, que impõe cortes dolorosos,
mas não impede a sobrevivência, e mesmo a predominância, de indestrutíveis
ligações transnacionais. Um outro problema prende-se com a adopção das línguas
europeias, não apenas como línguas oficiais, mas sobretudo como línguas
maternas. Os novos dirigentes africanos sabem como esta mudança se torna
indispensável, mas desconhecem os riscos que ela encerra.
A questão das línguas é, de facto,
de fundamental importância para os novos países africanos, uma vez que a
adopção de uma língua comum se transforma num factor de unidade interna, assim
como num factor de diferença em relação a países vizinhos.
Europa suportada pela África e América, William Blake, 1796 |
Analisada do ponto de vista
estritamente económico, a cooperação com a África não parece fundamental para a
Europa. Se na época do colonialismo a necessidade de matérias primas comandava
o tipo de relações estabelecida com África, a verdade é que hoje esse factor
deixou de pesar da mesma maneira. Não é mesmo muito difícil imaginar a
possibilidade de um corte económico com África sem graves prejuízos para a
Europa. Contudo, cada vez mais as interdependências se multiplicam, obrigando a
uma reflexão aprofundada sobre as relações planetárias. Embora na Europa o
nível actual de consciência das dependências seja ainda muito difuso, parece
não restarem dúvidas que começa a manifestar-se com maior vigor. Existe, de
facto, maior percepção do carácter global de certas políticas e de certas
situações, que, sem ultrapassarem formalmente o âmbito dum país ou duma região,
podem estender a suas consequências a áreas muito mais vastas.
Há dois campos que poderemos
destacar (sem a pretensão de os eleger como determinantes), numa primeira
aproximação a este problema da interdependência mútua e da globalização
planetária. O primeiro prende-se, muito naturalmente com a ecologia, na sua
componente da desflorestação e respectivas consequências climáticas. O mundo
industrializado começa a ter consciência da importância da manutenção de certos
equilíbrios, só possível com participação de muitos Estados do terceiro mundo,
incluindo os africanos. Assente neste princípio, a cooperação apresenta-se
baseada na mútua vantagem, único modelo capaz de sustentar a sua eficácia.
O outro campo apresenta-se ainda
mais difuso na consciência europeia mas parece capaz de ser rapidamente
compreendido. Trata-se da questão das migrações. É sabido que as populações de zonas desfavorecidas tendem a
transferir-se para zonas mais ricas. Este fenómeno poderá produzir-se em
pequena escala, medida hoje em milhares de pessoas, fenómeno necessário
normalmente desejado por ambas as partes e até fomentado, ou poderá
eventualmente assumir características de migração maciça, medida em milhões de
pessoas, fenómeno preocupante e indesejável em especial pelas regiões de
destino. Face à situação actual da
África não parece de excluir uma tendência migratória que venha a assumir essas
dimensões e cujo destino seja exactamente a Europa.
Salientados estes aspectos de
tendente globalização dos fenómenos humanos, parece justificada a atenção que
nos devem merecer as políticas de cooperação com África. Os investimentos
realizados neste âmbito podem amplamente justificar-se pela necessidade mútua
de estabilização das populações, assim com da manutenção de níveis baixos de
desarborização. Os auxílios europeus têm de perder o carácter de interferências
para se transformarem numa aplicação de mútua vantagem, facilmente
compreensível pelas populações de ambos o lados.
Relativamente aos casos especiais de
Angola e Moçambique, devemos ter presente a situação concreta, onde a procura
da paz aparece como objectivo prioritário. Os esforços de todos os
intervenientes dirigem-se para a obtenção, no mais curto prazo, de compromissos
de cessar-fogo, por forma a que se possam criar condições básicas de aplicação de
planos de desenvolvimento. Nesta situação, a exigência de um espírito aberto
por parte dos europeus em relação às necessidades destes povos, é ainda mais premente. Uma atitude
pragmática, fugindo da imposição de condições, sem deixar de defender princípios,
é aqui ainda mais necessária. Não podemos esquecer que lidamos com países
extremamente carenciados, embora singularmente aptos a assumirem a experiência
democrática.
Retirar a estes países fundos de
ajuda e cooperação, só porque os processos de mudança não estão concluídos ou
podem parecer demorados, é matar à nascença a hipótese, provavelmente mais
viável aqui do que em muitas regiões de África, de êxito da experiência
democrática, tão do agrado do sentimento europeu actual.
Nota: Publicado inicialmente em “Portugal,
España y Africa en los últimos cien años – IV Jornadas de Estudios
Luso-Españoles”, Mérida, Universidad Nacional de Educación a Distancia, 1992,
págs. 165-169.
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