A Associação 25 de Abril organizou, em
1984, um seminário sob o tema “25 de Abril, 10 anos depois”. Apresentei nessa
altura uma comunicação com o título “Transformação de umas Forças Armadas de
guerra em Forças Armadas de paz”. O texto foi depois publicado pela Associação
nas respetivas Atas.
Com os factos ainda muito vivos,
procurei enumerar os passos fundamentais que demos nesses poucos meses de
transição, entre o Acordo de Lusaca (7 de Setembro de 1974) e a independência
de Moçambique (25 de Junho de 1975). É esse tempo que recordo ao publicar o
texto referido.
Victor Crespo, alto-comissário e Joaquim Chissano, primeiro-ministro do Governo de Transição. Ambos souberam interpretar o sentido do Acordo de Lusaca e o aplicaram em conformidade. Foto de Carlos Gil. |
Em
Moçambique, após os incidentes de 7 de Setembro e de 21 de Outubro de 1974, foi
possível chegar ao fim do período de transição num clima de tranquilidade
social. Não se pense que foi um processo simples. O instrumento fundamental
para o clima de paz que se viveu durante os oito meses que medeiam entre o fim
de Outubro e a independência de Moçambique foram as Forças Armadas de ambos os
lados e a surpreendente capacidade de integração entre ambas.
Quando
se assinou o Acordo de Lusaca, as Forças Armadas Portuguesas estavam
destroçadas. Elas acabavam de viver dois períodos contraditórios entre si, e
também contraditórios no próprio conteúdo de cada um. Em 25 de Abril de 1974 as
Forças Armadas apresentavam evidentes sinais de cansaço e perturbação. Cansaço
pelo esgotamento físico e anímico dos quadros, pela degradação da instrução,
pela tendência nivelante dos potenciais de meios, especialmente na componente aérea,
com o aparecimento dos mísseis terra-ar, e pela acção do Movimento de Capitães,
que logicamente perturbava as cadeias de comando.
Após
o 25 de Abril, os sinais e os motivos deteriorantes multiplicaram-se em cadeia.
Primeiro, a hierarquia, de uma forma geral, não aceitou a mudança, nem
compreendeu o sentido descolonizador do Programa do MFA. Mais, tentou
ajustar-se através de alterações de superfície, mantendo o comportamento
essencial do período anterior. Segundo, as tropas interpretaram o 25 de Abril
no seu sentido mais amplo, sem consideração de etapas intermediárias — o fim da
guerra e o regresso imediato foram os objectivos rapidamente assumidos.
Terceiro, o MFA, embora com alguns pontos de vista não coincidentes no seu
interior, procurou fazer compreender à hierarquia e às tropas o verdadeiro
sentido do 25 de Abril. À hierarquia explicando que o MFA, não preconizando
embora independências imediatas, era um movimento que pretendia conduzir à
solução política dos conflitos, questão evidentemente relacionada com a
provável independência do Ultramar. Às tropas, tentando fazer compreender que o
MFA, embora desejasse apressar a paz, não podia fazê-lo sem considerar outros
objectivos e outros valores que lhe eram complementares.
Não
é de admirar, por tudo isto, que as Forças Armadas tivessem chegado ao Acordo
de Lusaca numa situação penosa, profundamente perturbadas e com fracas reservas
morais e psicológicas. Mas o acordo de Lusaca funcionou como um poderoso
antídoto injectado nas Forças Armadas.
O
conhecimento do cessar-fogo oficialmente assinado e a marcação da data da
independência, com a inevitável transformação da natureza das funções das
Forças Armadas, puderam constituir o embrião da recuperação que um novo
comando, com prestígio e decidido, pôde operar em dois escassos meses. É nestes
dois meses, de meados de Setembro a meados de Novembro que se faz a
transformação de um corpo disperso e sem vontade numas Forças Armadas dispostas
a enfrentar as tarefas, não menos difíceis e arriscadas, de contribuir e
garantir a aplicação do Acordo de Lusaca.
As
medidas tomadas, parecendo simples, não foram fáceis. Em primeiro lugar, foi
adaptada a cadeia de comando, através da mudança de pessoas, da simplificação
de processos e da regulamentação da cadeia do MFA, em moldes específicos, mas
operativos. Aliás, o facto de alguns elementos do MFA terem aceitado acompanhar
o Alto-Comissário na sua missão a Moçambique, viria a confirmar-se como um
inestimável contributo para os resultados alcançados. Em segundo lugar, foi esclarecida
a doutrina de actuação, os objectivos a atingir, os processos a empregar e o
comportamento que deveria presidir à nova missão das Forças Armadas. Em
terceiro lugar, aplicaram-se sucessivas alterações de dispositivo, adaptando as
unidades no terreno, às missões atribuídas. Em quarto lugar, intensificou-se
uma aproximação de comandos e uma extensa e oportuna acção de esclarecimento e
informação interna das tropas, normalmente efectuada pela estrutura do MFA.
Esta política deu efeitos surpreendentes. A colaboração Forças
Portuguesas/Forças da Frelimo processou-se praticamente sem perturbações, com
experiências de convívio nos mesmos quartéis e nas mesmas condições.
As
comissões mistas (Comissão Militar Mista e as suas delegações regionais)
funcionaram quase sempre em perfeita harmonia, solucionando por comum acordo,
os conflitos e os problemas que inevitavelmente foram surgindo. Um primeiro
ciclo de aprendizagem de algumas questões técnicas foi de imediato
proporcionado a elementos da Frelimo, num verdadeiro espírito de cooperação
resultante do Acordo de Lusaca — infraestruturas da Marinha e da Força Aérea e
formação de quadros e tropas de polícia. A redução do dispositivo das Forças
Portuguesas, a passagem do testemunho às Forças da Frelimo e o embarque de
regresso a Portugal processaram-se igualmente sem incidentes assinaláveis.
A
aproximação de pontos de vista, a aceitação e o diálogo eram de tal forma um
facto, que o comando português, a pedido da Frelimo elaborou um documento de
reestruturação (de Forças de Libertação em Forças Regulares) das futuras Forças
Armadas de Moçambique — Exército, Marinha e Força Aérea. A parte portuguesa
dispunha-se mesmo a participar, pelo tempo que fosse necessário, nessa
reestruturação, que a parte moçambicana sabia fundamental para a sua
sobrevivência como país independente. Infelizmente, questões de vária ordem
vieram a impedir essa cooperação, que teria sido, a todos os títulos de
importância excepcional.
Repare-se
contudo, que alguma coisa foi aplicada, como corolário deste espírito
cooperante — a Polícia Portuguesa permaneceu em Moçambique durante seis meses
para além da independência, facto que normalmente é desconhecido. E durante
esse período não houve significativas perturbações sociais ou políticas.
Em
suma, a transformação das Forças Armadas Portuguesas de instrumento de guerra
em instrumento de paz e cooperação, constituiu o suporte de uma política de
transição eficaz e a garantia de uma transferência de poderes, desenvolvida nos
exactos termos acordados em Lusaca.
Ver
em:
“Transformação
de umas forças armadas de guerra em forças armadas de paz”, Associação 25 de
Abril (Org.), Actas do Seminário 25 de
Abril, 10 anos depois, pp. 339-340.
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