Na sequência do post
anterior, publico aqui o texto da Apresentação do livro coordenado pelos meus
amigos brasileiros, arquitetos Mário Mendonça de Oliveira e Roberto Tonera,
magnífico exemplar, que merece ser apreciado e guardado: “As Defesas da Ilha de
Santa Catarina e do Rio Grande de São Pedro em 1786 de José Correia Rangel”. Faço-o em duas Partes.
Parte 1
Capa da edição coordenada pelos meus amigos Roberto Tonera e Mário Mendonça de Oliveira e lançada em Floripa, na UFSC, em 7 de Setembro de 2011. |
1.
A edição em fac-simile do chamado Códice de Santa Catarina, cujo original
pertence ao Arquivo Histórico Militar de Lisboa, é um acontecimento cultural de
grande relevo. Cumpre-me realçá-lo nesta apresentação.
O
que nós temos nos Arquivos são documentos. Mas, por mais detalhados que sejam,
eles não são a vida, não completam a História.
Qualquer
documento, vestígio da presença humana, coloca-nos irremediavelmente perante
várias questões: o que nos conta, quem é o seu autor, qual o contexto em que
foi elaborado, que silêncios o acompanham?
Aqui
se inserem as intenções (ou aquilo que nós percebemos ou imaginamos das suas
intenções), o ambiente, os valores, as relações, a trama da vida.
Mas
se tudo é passado, nem tudo é História.
Primeiro,
só é História, melhor, só pode vir a ser História, a memória recuperada. Essa
memória está por todo o lado, e é tanto mais consistente quanto mais houve
cuidado na sua preservação. Isso vale tanto para a nossa relação com o passado,
como para a relação dos nossos vindouros com o tempo de hoje.
Por
isso, ao mesmo tempo que se aperfeiçoam os processos de procura do passado, na
descoberta dos vestígios e dos testemunhos históricos, também se aperfeiçoam os
métodos de preservação dos sinais da presença do homem no mundo, para que no
futuro se possa melhor compreender a nossa vida actual.
Assim,
Memória e História são realidades interligadas numa relação biunívoca, e não
existem uma sem a outra. Ambas dão sentido à vida, transportando-nos no Tempo e
dando-nos razões para existirmos e prosseguirmos.
2.
Em 20 de Julho de 1802, o Príncipe
Regente, futuro D. João VI, criou o posto de Inspector das Fronteiras e Costas
Marítimas, a quem deu a missão de “examinar cuidadosamente o estado das
fronteiras e costas marítimas, propor os planos de defesa que parecerem mais
apropriados, levantar cartas e mapas militares das praças, torres e posições
que forem ordenadas”.
Pouco
depois, por decreto de 4 de Setembro do mesmo ano, o Príncipe Regente
estabeleceu o Arquivo Militar (Archivo Militar, na grafia da época). O
decreto justifica-o porque “convindo que estes importantes trabalhos sejam
fiel e cuidadosamente conservados e colocados com a ordem e método que melhor
possa facilitar o uso deles, sou servido criar para esse efeito um Archivo
Militar, em que se deverão reunir não só todos os trabalhos, a que mando
proceder pela Inspecção, mas também todas as memórias, cartas e planos
militares existentes, assim as que respeitam a esta Monarquia e suas Colónias,
como os que forem relativos aos Países Estrangeiros”.
Finalmente,
o rei acrescenta: “E considerando Eu a importância de um semelhante
Depósito: Hei por bem criar para a direcção dele um Director, que além dos
distintos conhecimentos militares e graduação que para isso o deverão habilitar
haja de reunir circunstâncias pessoais, que o façam digno da Minha Real
confiança”.
É
por isso que, logo a 8 de Setembro, o rei nomeia o director do Arquivo, com a
seguinte justificação: “Considerando que para um emprego de tanta
importância convém que Eu haja de destinar pessoa que pelas suas qualidades
seja digna da Minha Real confiança, e reúna a esta principal circunstância a de
possuir distintos conhecimentos militares, e sendo-Me constantes os sentimentos
de Honra e de Fidelidade de D. Pedro Vito de Menezes marquês de Marialva; como
igualmente a sua aplicação aos estudos da sua profissão, a exemplar
assiduidade, zelo e inteligência com que se tem empregado nas comissões do Meu
Real serviço de que tem sido encarregado, e por esperar dele que desempenhará
muito à Minha satisfação, esta de que sou servido incumbi-lo; Hei por bem
nomeá-lo director do Archivo Militar”.
E
embora a história do Archivo se tenha afastado, como tantas vezes, das
linhas essenciais que o rei assim deixava definidas, a verdade é que o seu
património documental se conservou pelos anos fora, constituindo hoje um
espólio arquivístico de incalculável valor para a memória do Exército
Português, do Brasil, dos novos países africanos de língua portuguesa e de
todos os territórios que Portugal administrou
Os
herdeiros deste património são hoje a Arma de Engenharia Militar e o Arquivo
Histórico Militar, como depositários desse riquíssimo património.
Estes
dois órgãos têm-se empenhado em preservar, valorizar e divulgar o acervo
documental que possuem, na certeza de contribuírem para o conhecimento do
passado de Portugal, da sua presença no mundo e das relações que ao longo de
cinco séculos foram estabelecidas com tantos povos e tantas gentes. Da
documentação integrante do seu património, deve destacar-se um aspecto
fundamental da memória conservada pelo Exército – a memória da fortificação
militar espalhada pela aventura do homem português nos quatro cantos do mundo.
Os
documentos na posse do Exército neste âmbito particular reflectem uma face
decisiva dessa grande aventura de Portugal, acentuando as linhas mestras da sua
política – defesa estratégica de rotas, ocupação de entrepostos comerciais,
construção de centros urbanos de intercâmbio, marcação de fronteiras de posse.
As fortificações espalham-se por todos os continentes onde Portugal esteve
presente, assemelhando-se, porque reflectem as constantes dessa presença, e
divergindo, devido às profundas diferenças dos ambientes locais.
Entre
todos, o Brasil constitui a mais espantosa construção dessa aventura. Através
do património documental que sobrevive nos Arquivos dos dois lados pode
lançar-se um olhar para a acção desses ousados engenheiros e outra destemida
gente luso-brasileira, que souberam marcar fronteiras e consolidar territórios
de imensidão nunca antes vista. Estes documentos proporcionam-nos hoje um
encontro com os sítios, a lembrança dos antepassados construtores, a história
dos edifícios, dos lugares, das cidades, como introdução a uma visão mais ampla
das influências e da memória comum de dois povos e duas nações.
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