Em Junho de 2004 tive o privilégio de
apresentar o romance do Carlos Vale Ferraz, “Flamingos Dourados”. Lembrei-me
deste texto a propósito de um escrito recente que este autor publicou na
revista InComunidade, que aliás muito recomendo: http://www.incomunidade.com/v51/art.php?art=274
Fui buscá-lo e aqui o deixo. Não
cheguei ao ponto de apresentar o autor como um mágico, mas julgo que não fiquei
muito longe…
Julgo que este livro será muito difícil
de encontrar, mas vale a tentativa.
(…)
Se
viesse aqui falar do Carlos de Matos Gomes e da obra que com ele tenho feito,
seria para mim muito fácil.
Falar
do Carlos Vale Ferraz é mais difícil. Eu sou um leitor assíduo – desde o
clássico “Nó Cego”, passando pela primeira “ressaca” da guerra, “De Passo
Trocado ASP”, pelo espantosa crónica do soldado esquecido “Soldadó”, pela
segunda ressaca dos “Imortais” ou “Os Lobos não usam Coleira”, do enigmático
escrito sobre os “Anais dos Tristes Acontecimentos do Milénio” ou “O Livro das
Maravilhas”, que alguém melhor que eu pode descodificar, até chegar à obra que
hoje aqui nos reúne - “Os Flamingos
Dourados”.
Também
sou um incondicional leitor e concordante das pequenas crónicas com que o
Carlos Vale Ferraz por vezes nos brinda na imprensa diária, reflexões sobre a
situação actual.
Tenho
sido porta-voz de um alargado conjunto de amigos para que o Carlos de Matos
Gomes se deixe de outras coisas e passe simplesmente a escrever. E que assine
com o nome que bem entender. Não tenho conseguido grande êxito, mas assisti a
pequenas partes da construção das suas duas últimas obras.
Estamos
portanto situados:
Tenho
trabalhado com o Carlos de Matos Gomes de quem sou amigo, leio o Carlos Vale
Ferraz, que muito aprecio, e incito o primeiro a convencer o segundo a escrever
mais.
Vamos
agora ao que mais interessa – “Os Flamingos Dourados”. É a terceira ressaca da
guerra colonial. Para mim foi uma surpresa, pois não era esta perspectiva que
eu esperava. Depois de ler, compreendi. O Carlos Vale Ferraz está cada vez mais
próximo do Calos de Matos Gomes.
Vou
apenas focar dois aspectos interessantes dos “Flamingos”.
Em
primeiro lugar:
O
capitão Francisco Manuel fez a guerra em Angola, como alferes, em 1961, na
Companhia dos Aventureiros e é capitão de Abril. É filho do coronel Luís Manuel
que esteve na Índia e foi adido militar em Londres. Aí casou com
Mary Wilson, filha (descendente) de John Wilson, destacado membro da Maçonaria.
Francisco Manuel é um dos prováveis portadores (talvez pouco provável) de um
“Diamante Azul”, vindo das profundezas da história de Portugal, irmão-paralelo
de um outro Francisco Manuel, guerreiro e escritor do século XVII e das
campanhas da Restauração, Francisco Manuel de Melo. Tem como ajudante, na sua
fase actual de afectado pelo stress de guerra, um cabo Matos (este Matos dá-me
que pensar) que vem a ser assassinado, em vez do seu capitão, porque alguém
procura o “Diamante Azul”.
Este
“Diamante Azul” foi levado por D. António Prior do Crato, quando perdeu o reino
para Filipe II. Era a mais importante jóia da coroa portuguesa, símbolo da
independência, transformando-se numa espécie de Santo Graal. Apesar de tudo,
ficou desde então na família, e foi parar ao seu descendente Humberto Crato
(que passou para a oposição e morreu assassinado em Espanha). A trama a seguir
não interessa, porque é o fio condutor do enredo. Como verão quando lerem,
trata-se de discutir a questão do poder. Ou melhor – a questão da origem do
poder. Este foi o problema mais longamente discutido depois de 1640, também com
intervenção do primeiro Francisco Manuel; mas como sabem, foi também um dos
principais enredos em que todos nós nos envolvemos nos idos de 1974 e 1975, com
a activa participação do segundo Francisco Manuel. O “Diamante Azul” andou por
aí, passou para Espanha, foi à mão de um escritor panfletário, que, apesar
disso, nunca o viu; terá feito parte dos trastes do nosso capitão Francisco
Manuel; foi à mão do presidente da Fundação O Homem e a Obra para ser exibido
na exposição com o título “Esplendor de Portugal – Nós e os Outros”, durante o
seu Congresso “As Conferências do Milénio”. Mas, para alívio de todos,
incluindo a maior parte dos que estão nesta sala, este diamante da exposição é
falso. O verdadeiro vai seguir o seu caminho, e para saberem onde fica, têm que
ler o livro.
A
propósito, suponho que o verdadeiro John Wilson existiu, tornando-se famoso nos
meios intelectuais e científicos ingleses no primeiro terço do século XIX.
Tanto poderia ser bisavô do nosso Francisco Manuel, com descendente dos
contemporâneos de Francisco Manuel de Melo. Se foi da Maçonaria não consegui
averiguar, mas o seu pensamento e a sua escola podem levar-nos a essa
conclusão.
Vamos
agora ao segundo ponto que gostaria de trazer aqui. Já falei de um escritor
panfletário – é o Manuel Costa. O seu grupo, os Manuelinhos, é uma criação
genial (lembram-se do Manuelinho de Évora, doido muito conhecido e estimado na
cidade, e em nome de quem se escreviam os panfletos incendiários contra os
castelhanos, durante a fase final do período filipino?). No grupo temos
portugueses, como o padre capelão Nuno Maria (capelão dos Aventureiros e padre
da paróquia de Agualva-Cacém com carta de despedimento do bispo), o capitão
Francisco Manuel, que faz lá uma perninha, um espanhol – o Francisco Quevedo, e
um inglês – o Ned Marchmont. Vejamos estes dois.
Todos
conhecemos o Francisco Quevedo, contemporâneo de Francisco Manuel de Melo,
escritor espanhol do século XVII. Foi perseguido, esteve preso, escreveu poesia
e verdadeiros manifestos políticos, pouco comuns na época. Em 1635 os seus inimigos
publicam em Valência, o maior e mais feroz ataque ao escritor – um libelo
intitulado “O tribunal da justa vingança”. Posso pedir-vos para se lembrarem
deste título, quando lerem “Os Flamingos Dourados”. Nesse manifesto, Francisco
Quevedo é denunciado como “mestre de erros, doutor em desvergonhas, licenciado
em bobo, bacharel em “suciedades”, catedrático de vícios e protodiabo entre os
homens”. Portanto, um digno companheiro dos manuelinhos, obreiros de panfletos
incendiários.
E
agora o inglês. O personagem dos “Flamingos Dourados” chama-se Ned Marchmont. O
contemporâneo do nosso Francisco Manuel de Melo do século XVII, que bem poderia
ter estado em Portugal, chama-se Marchmont Nedham. Ambos são jornalistas. O
personagem esteve em Angola com Os Aventureiros, onde conheceu o então alferes
Francisco Manuel; depois da revolução veio a Portugal e voltou sempre ao seio
do seu grupo de amigos. Persegue a história do “Diamante Azul”. Todos o irão
apreciar quando lerem o livro. O verdadeiro, foi o jornalista favorito de
Cromwell. Fez parte de um grupo de pensamento que veio a apelidar-se de
neo-romanos, que teve como ambiente de fundo a proclamação da Inglaterra como
estado livre, onde fez companhia a John Milton. Ambos publicaram uma série de
editoriais no periódico oficial “Mercurius Politicus” que construíram os
alicerces para o nascimento, em Inglaterra, de uma teoria republicana da
liberdade e do governo até 1656. Quando teve de explicar por que se tinha
tornado jornalista, Marchmont Nedham (o Ned Marchmont do nosso livro) afirma
simplesmente: “Eu peguei na pena para discordar de Sua Majestade... e para
deitar fora máscaras, servidões e disfarces”.
Pela
minha parte só tenho que vos aconselhar a acompanharem este espantoso grupo
através da escrita do autor que aqui nos reúne – o Carlos Vale Ferraz.
Outros
aspectos, e aquele título do manifesto contra Francisco Quevedo não me sai da
lembrança – O tribunal da justa vingança - vamos com certeza abordá-los durante
a nossa conversa.
Um
último ponto. O narrador, o procurador geral da República, Serafim Forte,
recebe a primeira mensagem de Manuel Costa juntamente com os seus escritos
dispersos, com os quais pretende denunciar a situação a que Portugal chegou. O
seu pedido é sugestivo: “Preciso que organizes um livro. Pode ter a forma de
romance (até conviria, porque na ficção podem dizer-se as verdades com maior
liberdade e menor risco)”. Espero que apreciem como se dizem as verdades num
romance. É que a História não serve de nada se não a utilizarmos na nossa acção.
E o
que é espantoso neste “romance” é o enlaçamento entre história e ficção, entre
duas épocas igualmente tumultuosas, entre três faces de um poliedro invulgar –
a transição filipo-restauração (ou seja a história) com nomes reais (Francisco
Manuel de Melo, Diogo Soares, Miguel de Vasconcelos); a
guerra-revolução-transição em que nós estivemos envolvidos (com nomes paralelos
trazidos do tumulto restaurador) e o romance, em que personagens de natureza,
atitudes, convicções e ideias paralelas às dos nossos antepassados, vagueiam
por entre nós (e ainda por cima, temos quase a certeza de os conhecermos,
encerrando este “quase”, a prudente incerteza da ficção).
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