O David Martelo lançou em
1999 o seu terceiro livro a que chamou “A Espada de Dois Gumes”. Teve a
gentileza de me convidar para fazer a sua apresentação. Publico agora o texto
que me serviu de base para essa apresentação, tanto em Lisboa, como no Porto.
Gostaria
de começar por agradecer ao David Martelo o convite que teve a gentileza de me
fazer, no sentido de eu dizer algumas palavras na apresentação deste seu livro.
Aceitei com muito agrado e aqui lhe manifesto publicamente o meu apreço pela
obra que vem construindo.
Em
três anos consecutivos, o David Martelo trouxe a público três livros. Tenho
seguido com grande atenção a sua obra, até porque o David Martelo me tem dado o
privilégio de ler os seus escritos antes de serem publicados. Em todos lhe
prestei a colaboração que me pediu, com diligência e sinceridade.
Em
1997, O David Martelo trouxe a público (evidentemente com o apoio da sua
editora, a Europa-América) o seu primeiro livro - "O Exército Português na
Fronteira do Futuro".
Dele
nos ficou a ideia de se tratar de cuidada análise das condicionantes
estratégicas, políticas e militares de Portugal. Nele o autor apresentou
soluções para o Exército do futuro. Através dele o autor propõe um modelo
concreto para o problema militar.
Ficaram-me
na memória, entre outras, três ideias fundamentais: Primeira - a discussão do
conceito de fronteiras da soberania e fronteiras sentimentais, como base de
dolorosos cortes e indispensáveis opções; segunda - a infindável hesitação de
Portugal entre dois continentes, a África e a Europa; terceira - a necessidade
de encontrar um rumo para o Exército, entre as opções do exército de conscrição
e do exército profissional.
O
David Martelo alertava então para a necessidade de "buscar soluções sérias
para todos os anacronismos e obsolescências de que enferma a Instituição
Militar". O que constatamos é que os caminhos percorridos nestes dois
últimos anos são tímidos, desgarrados, por vezes contraditórios. Dificilmente
poderemos distinguir uma estratégia; não se encontrou nenhum modelo, ou, pior
ainda, o que se esboça não tem o consenso necessário e não apresenta soluções
com uma eficácia mínima; em rigor, não foi apresentado nenhum plano. As medidas
que se vão conhecendo são avulsas e prometem deixar o Exército a olhar para o
seu umbigo, o pior que lhe pode acontecer.
Infelizmente,
o David Martelo, há dois anos é bom notar, pregou no deserto e tinha razão
quando deixava um alerta final: "É a batalha do conhecimento que urge vencer".
O
ano passado, lançou o David Martelo, e a sua editora, um novo livro - "As
Mágoas do Império".
Pareceu-me
sempre que o David Martelo tinha deixado, no seu primeiro livro, uma questão
por resolver. O autor intuía que, para pensar Portugal, para abordar todos os
problemas que apontara em torno da Instituição Militar, era urgente fechar um
caso pendente, limpar as sombras de uma História que parecia tolher-nos,
desenvencilhar os portugueses de teias e de empecilhos sobreviventes. Em suma,
era necessário libertar Portugal, radicalmente, do peso sobrante do Império.
Cruzada para que o David Martelo, desta vez, partiu sozinho, em luta com
fantasmas, com ignorâncias, com crendices, com esquizofrenias. O David Martelo
tentou limpar o sótão de Portugal, colocando cada coisa no seu lugar, na sua
dimensão e no seu tempo.
E
abordou a questão do Império pelo lado irrecusável e envolvente.
O
David Martelo não abordou o Império pelo lado da violência, da exploração ou da
humilhação. Não o abordou pelo lado dos ódios. Nem sequer da nostalgia.
Abordou-o pelo lado da mágoa, o que tem a vantagem de apelar ao debate. Apesar
disso, o David Martelo encontrou a forma mais suave de nos dizer o que afinal
foi dito, sempre com palavras
cautelosas, pensadas, magoadas, como gosta de fazer.
O
império, se teve heroísmos, também teve vilezas; se teve compreensões,
construiu-se em alicerces de violências; se teve actos de generosidade, teve um
infindo rol de humilhações; se gerou benefícios mútuos, fundou-se em relações
de exploração sistemática; se teve aproximações e relações equitativas, elas
foram encobertas por uma prática comum de domínio - na escravatura, no trabalho
forçado, na violência impune.
O
David Martelo quis dizer-nos, com as suas "Mágoas", que do
império só restam duas coisas: fazer a
História e olhar o futuro, guardar as mágoas e não repetir o passado.
O
desafio enorme que o David Martelo lançou a Portugal e aos seus dirigentes foi
este e muito simples: os povos que estiveram integrados no império português,
conquistaram as suas independências. E desde esse dia (exactamente desde esse
dia) são Estados livres, soberanos, iguais. Mesmo com mágoa, ou mal disfarçadas
arrogâncias. E enquanto estes sentimentos não se extinguirem ou forem extirpados,
as relações com esses povos e os novos Estados persistirão numa base incómoda.
O
David Martelo quis dizer-nos estas coisas fundamentais. A discussão que se
privilegiou, infelizmente, foi um "fait-divers", embora com a
vantagem de confirmar as nostalgias que ainda sobram, afinal aquilo que o David
Martelo tanto desejava ultrapassar.
Vem
agora o nosso autor com o seu terceiro livro, "A Espada de dois
Gumes".
Que
poderei dizer-vos deste novo livro?
A
ideia que tenho é que o David Martelo, homem de Abril e participante activo no
regresso de Portugal ao Mundo, anda agora, de pena em punho, a arrumar todos os
nossos sótãos, todas as nossas caves, todos os nossos recônditos esconderijos.
A
maior parte dos portugueses, a instituição militar, cada um de nós, tem contas
a saldar com histórias da sua própria vida. O David Martelo tentou saldar as
nossas contas com o império. Quer agora aliviar-nos do crédito ou do débito com
o Estado Novo - com o "fascismo" ou com a "Revolução
Nacional".
Não
fomos capazes de pensar a instituição militar, como nos propunha no seu
"Exército Português", não parecemos capazes de cicatrizar as feridas
imperiais, como nos aconselhou nas "Mágoas do Império", vamos ver
agora se embainhamos esta "Espada de dois Gumes".
Quarenta
e oito anos na história de um povo, no desenho da sua mentalidade e dos seus
comportamentos, pode ser um tempo longo - porque se extinguiram as pontes
geracionais, porque se quebrou a cadeia de transmissão de outras vivências e
conhecimentos. O Estado Novo moldou-nos a todos - aos que o construíram e
apoiaram, aos que se lhe opuseram e o combateram. Também aos que pretenderam
ignorá-lo ou ser-lhe indiferentes, porque só poderia fugir ao molde do Estado
Novo quem, sendo indiferente, ignorasse a própria vida.
Tem
por isso razão o David Martelo em confrontar-nos com o nosso molde. E se é à
instituição militar que ele tem dedicado o seu esforço de pensá-la e fazê-la
pensar, compreende-se que centre as suas preocupações nas relações da
instituição militar com o regime.
Não
vos irei dizer como se coloca o autor perante esse mostrengo de uma cabeça, mil
olhos e ouvidos, tentáculos sem conta de comprimentos variáveis. Nem do uso que
foi feito da "espada" que a "criatura" usou sempre ao seu
lado, nem da forma como os dois gumes se comportaram perante o
"espadachim" e que relações mantiveram entre si.
Mas
basta recordar a vossa própria experiência para saberem como tudo acaba, com a
Espada libertando-se e libertando, assumindo, tão tardiamente, o inevitável - a
decapitação do monstro. E como o povo, acompanhando a Espada, fez de um dia
mágico - o 25 de Abril - o dia do seu renascimento.
Resta
dizer-vos como o David Martelo, já sem fazer história, mas análise aos dias que
correm, constata que a coragem de pegar na espada e com ela fazer justiça, está
sendo paga com esquecimento, desprezo, vilipêndios.
Tudo
isto é certo. Tudo isto merece um novo combate, a que não podemos furtar-nos.
Mas deixa que te repita, meu caro David Martelo, as palavras do Otelo: "Ó
pá! Fizemos uma coisa linda".
E
isso, digo agora eu, ninguém nunca poderá roubar-nos.
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