Em 2015, a Associação de Oficiais das Forças Armadas (AOFA) publicou um livro sobre
as funções do Estado no qual tive o gosto de participar com um texto que se
intitulou “Portugal e a segurança num ambiente de globalização”. Apesar se esta
área não ser de todo da minha esfera de interesses, não quis deixar de
responder ao pedido da AOFA. Acabei por considerar essa participação uma experiência
interessante, que alargou os meus horizontes.
Publico aqui esse texto e ao relê-lo
verifico como as suas linhas principais se adequam ao tempo que passa…
Ideia geral
De acordo com as ideologias
dominantes, as sociedades modernas têm perceções diferentes quanto às funções
do Estado, mas existe hoje, na tradição democrática, a ideia das suas obrigações
essenciais. Os objetivos que o Estado deve alcançar têm variado ao longo do
tempo, inserindo-se frequentemente num conceito estratégico que os enquadra e
afirma.
O desenho das funções do
Estado só se torna consistente se tiver em conta não apenas as ameaças, as
debilidades e as relações com outros Estados ou organizações, mas também a
história, as tradições e a evolução do pensamento da sociedade acerca de si
própria.
Na fase final do século XX assistiu-se, por exemplo, a
uma mudança radical do conceito de segurança, em face da dinâmica do processo
de globalização, que veio pôr em causa os padrões históricos das relações entre
Estados.
A diferenciação entre o nacional e o estrangeiro conheceu
uma erosão contínua, embora a emergência desta nova situação não tenha uma
distribuição uniforme. Ao mesmo tempo que o global invadiu o quotidiano, alguns
fenómenos locais mais próximos conheceram também uma expansão equivalente.
Podemos dizer que, desde as duas décadas finais do
século XX, foi posto em causa o tipo anterior de relações entre Estados, pelas
profundas alterações dos meios e das capacidades tecnológicas postas ao serviço
do Homem. Em poucos anos, a humanidade passou a ser globalmente vizinha, com o
dramático encurtamento das distâncias.
Esta nova circunstância obrigou a repensar o papel dos
Estados, das suas funções e objetivos, e neste novo ambiente, a reequacionar a
questão da segurança das populações e comunidades, que sempre foi um dos seus
exclusivos fins.
A globalização e as suas consequências
Seguindo alguns especialistas, podemos afirmar que a
globalização tem dois sentidos principais, historicamente interdependentes e de
influências mútuas – a globalização político-económica e a globalização
técnico-cultural. Por um lado, assistimos ao crescimento de uma economia
mundial integrada (triunfo dos princípios capitalistas) e por outro, afirma-se
um processo complexo de inter-relacionamentos do conhecimento, da informação,
dos comportamentos, entre a valorização das componentes globais e da afirmação
dos valores locais.
Neste ambiente, é possível salientar algumas
características fundamentais para a análise do contexto de mudança da política
mundial e das respetivas consequências, no enquadramento da segurança das
comunidades e países.
Assim, devemos ter em atenção que a globalização se
insere num grande movimento histórico com mais de cinco séculos, embora com uma
dinâmica de aceleração a partir do último quartel do século XX nunca antes
conhecida, e que, no ambiente atual, é um movimento irreversível. Os Estados,
tal como os conhecemos, terão a sua capacidade de ação independente cada vez
mais limitada. E embora possam continuar a deter uma fatia importante do poder
de decisão, a soberania de cada um ficará cada vez mais limitada pela dinâmica
da economia global.
Também devemos ter em atenção que a globalização está a
demonstrar um efeito desigual, tanto no impacto da economia, como no processo
cultural. Essas diferenças abrangem não apenas os Estados e as regiões, como os
grupos e as classes sociais. O alcance das tecnologias que caracterizam a
mudança é muito desigual, os impactos ambientais tendem a desfavorecer as
regiões já desfavorecidas, as desigualdades, em todas as circunstâncias,
acentuam-se entre os que têm e os que não têm, a insegurança aumenta onde ela
já é precária.
De qualquer forma, a questão não tem a ver com a
emergência da globalização, mas sobretudo com a sua natureza, e é aí que deve
centrar-se o debate. As formas que têm sido privilegiadas, baseadas sobretudo
em modelos ideológicos, acabam por impor soluções indesejadas pelas
comunidades.
Ora, o que se torna indispensável é aproveitar o
processo de globalização no sentido de procurar as melhores soluções para um
conjunto de problemas que afetam os povos, direcionando as políticas para a
obtenção de progressos com base no benefício múltiplo e numa visão mais
adequada das necessidades do homem. No fundo, poderíamos aproveitar as
oportunidades oferecidas pela globalização técnico-cultural para chegar a
relações económicas de maior igualdade.
Finalmente, a era da globalização vem alterando muitos
dos conceitos tradicionais ligados à segurança. De facto, o Estado está agora
mais aberto e tem menos poderes para enfrentar as situações críticas, por si
só. De certa forma, a globalização exige adaptação contínua em relação aos
anteriormente indiscutíveis valores da soberania tradicional.
Portugal, contributo para um conceito
de segurança
A história recente de Portugal alterou profundamente o
seu posicionamento no concerto mundial, não só pelas consequências resultantes
da Revolução Portuguesa de 1974, instauração do regime democrático e
independências dos antigos territórios coloniais, como pela adesão de Portugal
à CEE, depois transformada em Comunidade Europeia.
A primeira consequência visível foi o regresso de
Portugal ao seu território inicial, de âmbito europeu, embora os cinco séculos
de presença no mundo constituam um património histórico de valor incalculável e
seguramente um elemento essencial na definição do papel de Portugal no mundo.
De acordo com análises habituais, outros elementos
essenciais se têm considerado na definição dos objetivos do Estado português,
no âmbito da segurança da sua comunidade.
Assim, com base na sua localização geográfica, devemos
referir o valor das suas posições estratégicas no Atlântico e o vasto espaço
marítimo e aéreo, onde confluem importantes rotas internacionais. Também tem
sido considerado o efetivo valor das comunidades portuguesas espalhadas pelo
mundo. Finalmente, nas últimas décadas, Portugal tem valorizado o seu
posicionamento na comunidade internacional, pelo seu papel de parceiro construtivo
e pacífico, de diálogo e de aproximação. Consideram-se ainda as mudanças no
quadro das relações internacionais e respetivas consequências, como elementos
de enquadramento das tarefas do Estado português, não apenas no contexto da
segurança, mas também do seu contributo para a estabilidade e a resolução de
conflitos. Finalmente, a participação na Comunidade Europeia alterou
profundamente o conceito territorial, pela diluição das fronteiras e pelas
consequências dos tratados europeus de livre circulação.
Simplificando, poderá dizer-se que a fronteira de
segurança tende a ficar próxima da fronteira da Aliança Atlântica, que a
fronteira económica tende a alargar-se à dimensão da União Europeia e que a
fronteira cultural mantém em grande parte as componentes do espaço lusófono e
da língua portuguesa.
Em consequência, pode inferir-se, por exemplo, que as atuais
relações de Portugal com a vizinha Espanha se desenrolam tanto através das
organizações internacionais em que ambos participam, como são relevantes os
esforços conjuntos para a construção bilateral de uma nova relação.
Contudo, a sociedade portuguesa mantém debilidades que
devem ser consideradas na definição do seu posicionamento no concerto das
nações, sendo habitual destacar alguns problemas estruturais, como a
incipiência do seu tecido produtor, a ausência de estratégias persistentes de
desenvolvimento e de produtividade, as altas taxas de desemprego e a
consequente fuga de população jovem qualificada, o envelhecimento da população,
o desequilíbrio das contas públicas, o aumento das assimetrias sociais e
regionais.
Tal situação tem-se traduzido na persistência da
dependência histórica de apoios externos, nem sempre conseguidos em situação de
mútua vantagem, pela debilidade negocial de Portugal.
A Constituição da República Portuguesa
As tarefas fundamentais do Estado português estão
definidas no artigo 9º da Constituição. Entre elas incluem-se a garantia da
independência nacional e criação de condições políticas, económicas, sociais e
culturais que a promovam, a garantia dos direitos e liberdades fundamentais e o
respeito pelos princípios do Estado de Direito democrático, a defesa da
democracia política e a participação democrática dos cidadãos na resolução dos
problemas nacionais.
Em consequência, a Constituição, no que respeita
especificamente à Defesa Nacional, atribui ao Estado, no seu artigo 273, a
obrigação de assegurar essa defesa, apontando os objetivos a garantir: “a
independência nacional, a integridade do território e a liberdade e a segurança
das populações contra qualquer agressão ou ameaça externas”, sempre “no
respeito da ordem constitucional, das instituições democráticas e das
convenções internacionais”.
Conceito Estratégico de Defesa Nacional
Desde os anos 80 do século XX, em especial depois da
adesão de Portugal à CEE, aproximadamente coincidente com o fim da guerra fria,
as prioridades estratégicas de Portugal têm sido consideradas no âmbito da
Comunidade Europeia, da Aliança Atlântica e da Comunidade de Países de Língua
Portuguesa. De forma genérica, Portugal tem enunciado alguns interesses
orientadores da sua presença no mundo – afirmação da sua identidade, inserção
num conjunto de alianças determinantes para a sua segurança e defesa, assim
como para a sua prosperidade, afirmação da sua credibilidade como Estado,
valorização das comunidades portuguesas, e contribuição para a paz e o
progresso internacionais.
As várias versões do Conceito Estratégico de Defesa
Nacional que têm sido aprovadas vêm reconhecendo a decisiva importância do
vetor militar no apoio à política externa do Estado, como instrumento de
participação frequente em ações geradoras de segurança internacional.
Por outro lado, a mudança do sistema mundial, que a
globalização tem proporcionado, vem acentuando uma progressiva interdependência
mundial, que se estende da política à economia e mesmo aos sistemas de defesa e
militares. Tal situação impõe uma constante atenção à capacidade de
relacionamento internacional e à articulação das políticas comuns no âmbito da
rede dos aliados e países amigos, à gestão dos riscos e das ameaças e à
concertação de políticas internas que contribuem para o fortalecimento das
capacidades de Portugal.
Conclusões
Em
conclusão, é indiscutível que os Estados democráticos assumem atualmente um
conjunto de funções inalienáveis, entre as quais se conta a criação de um
ambiente de segurança, que os cidadãos e as comunidades apreciam e exigem. Mas o
processo de globalização, e em especial a aceleração que conheceu desde as duas
décadas finais do século XX, têm obrigado os Estados a rever e adaptar as suas
funções, sem que tal signifique qualquer substancial alteração do conceito de
segurança ou doutras funções essenciais do Estado. O novo ambiente criado pelas
mudanças nas relações dos povos, das comunidades e dos Estados, face à globalização,
tem exigido uma progressiva mudança no relacionamento entre Estados, tornando
cada vez mais complexa a matriz das relações internacionais, em especial no que
respeita à componente da segurança. No que lhe diz respeito, Portugal vem
contribuindo de forma positiva para a criação de um ambiente internacional de
paz, estabilidade e resolução de conflitos, no âmbito próprio ou em coordenação
com os seus parceiros e aliados, tanto da Comunidade Europeia, como da Aliança
Atlântica, como da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.
Porque
a Constituição da República Portuguesa contém um conjunto de obrigações do
Estado, tanto no que respeita às suas tarefas fundamentais, como aos objetivos
a garantir no âmbito da Defesa Nacional, os poderes democráticos têm estabelecido
um Conceito Estratégico de Defesa Nacional, a que todos os componentes do
Estado se acham vinculados.
Em
suma, enquanto as mudanças no sistema mundial vêm criando uma obrigação de permanente
adaptação das políticas de relacionamento internacional, o Estado português
deverá preservar uma capacidade de atuação própria no concerto das Nações e dos
novos poderes, por forma a garantir o essencial das suas funções, sob pena de
contribuir para a sua irrelevância e autodestruição.
No
âmbito da segurança e da defesa, o Estado português não pode deixar de
conciliar o seu papel no seio das organizações internacionais e dos tratados
que o obrigam, com a afirmação dos seus interesses próprios e inalienáveis,
canalizando os recursos adequados ao cumprimento dos seus objetivos de afirmação
da identidade e da prosperidade do povo português.
Finalmente,
as Forças Armadas, como componente essencial da defesa nacional, devem poder
desempenhar cabalmente as missões que lhe estão atribuídas, tanto no âmbito da
prevenção da paz e segurança, como na participação em missões internacionais
previstas nos tratados assinados por Portugal.
Referências
bibliográficas principais:
BOOTH, Ken, “Teorias e Práticas da Segurança no Século XX:
Sequência
Histórica e Mudança Radical”, Nação
e Defesa, Outono 2001, pp. 19-50. Ver em: http://comum.rcaap.pt/bitstream/123456789/1439/1/NeD099_KenBooth.pdf
FERREIRA,
Pedro Teles, Política Externa e Defesa
Nacional: Razões de Estado. Contraditório Think Tank, Julho 2013. Ver em: www.contraditorio.pt
SANTOS, José Alberto
Loureiro dos, “O Estado e as Políticas de Defesa”, Revista Militar, Dezembro de 2007. Ver em: http://www.revistamilitar.pt/artigo.php?art_id=250
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