Parte 2
Programa do colóquio "1961, o Ano 'Terrível' de Salazar". |
A
campanha de Humberto Delgado, em 1958, foi, para as Forças Armadas, como para
tantos outros sectores da actividade nacional, um marco de viragem, que acabou
por representar um enorme desafio para a sobrevivência do regime.
Todas
estas circunstâncias concorreram para que uma nova equipa chegasse ao poder
militar, ainda em 1958, quando Botelho Moniz substituiu Santos Costa na pasta
da Defesa Nacional. Esta equipa envolveu-se, finalmente, numa mudança militar,
utilizando as modernas metodologias da NATO, mas tendo em conta um conceito de
defesa completamente diferente, com base nas novíssimas ameaças que pairavam
sobre as colónias portuguesas.
A
equipa do Exército era chefiada pelo ministro, Almeida Fernandes, e pelo seu
subsecretário de Estado, Francisco da Costa Gomes.
Num
dos primeiros documentos que elaboraram, datado de 24 de Junho de 1958, para
servir de directiva básica à reestruturação do Exército, procuraram
sistematizar, muito sinteticamente, mas de forma ousada, as condicionantes de
partida. No que dizia respeito à “atitude das Forças Armadas perante a situação
política vigente”, os autores são muito claros: “As Forças Armadas mantêm-se,
por disciplina e sensatez, coesas e prontas a reprimir alterações da ordem
pública. No entanto, não é o mesmo o espírito dos diversos escalões.
Nos
oficiais, para cima de Major, pode dizer-se que a maioria é simpatizante com a
situação política vigente. Pelo contrário, nos restantes oficiais, nos
sargentos e nas praças readmitidas é quase geral o descontentamento. Crê-se que
muito poucos subalternos, sargentos e praças tenham votado no candidato da
União Nacional”.
Estava
assim demonstrado que não se desconhecia a situação e que haveria muito
trabalho a fazer. Mas para que não restassem dúvidas sobre os motivos que
conduziram a esse ponto, o documento aponta depois as “Causas da situação do
país perante a situação política vigente”, e que eram, em suma – “Pouco crédito
que os quadros da actual situação política merecem ao país; Pouca eficiência do
governo; Mau funcionamento dos Serviços Públicos; Disparidade de nível de vida
das diversas classes da população; Deficiente preparação da juventude”.
Assim,
e desenvolvidas mais algumas análises pertinentes, os autores alinham, no final
do documento, as “Medidas a tomar para eliminar as causas do descontentamento
apresentadas”, que vão desde o saneamento da situação política, à remodelação
do governo e outras medidas, incluindo uma muito curiosa, que passava por
“Estudar e pôr em execução um sistema que evite a excessiva proletarização das
Forças Armadas”.
Feito
assim o enquadramento geral da situação política, tornava-se necessário voltar
ao Exército. Foi o que a nova equipa fez, através de um memorial com o título
de “Os grandes problemas do Exército”, no final desse ano de 1958. A mudança necessária
assentava no reconhecimento de que o mundo sofrera “uma tremenda alteração de
factores e de circunstâncias, depois da última conflagração internacional”, o
que tornava imperiosa a procura das “correspondentes adaptações”. Assim sendo,
quais eram então as circunstâncias que obrigavam a essas mudanças?
Segundo
o documento que seguimos, as mais “flagrantes” seriam, por esta ordem: Em
primeiro lugar, o “Aparecimento de novas armas e de novas técnicas, que
provocaram alterações nas características da luta armada (…) O conceito de
massas armadas foi substituído pelo conceito qualitativo de formações altamente
instruídas e treinadas”; em segundo lugar, a “Possibilidade e mesmo necessidade
de alargar a escala dos espaços geográficos (…)” que, em relação a Portugal e
ao Exército deveria abarcar “efectivamente, todo o conjunto dos seus
territórios espalhados pelo Mundo”; em terceiro lugar, “Efectivo alinhamento da
Nação numa política internacional determinada, a que correspondem orientações
estratégicas e padrões de preparação militar definidos e a que estamos
vinculados por concretos compromissos”; ainda, o “Carácter eminentemente
combinado das acções militares modernas, implicando uma perfeita coordenação de
actividades com tendência para a integração de medidas e serviços”; em
consequência e finalmente, deveria assinalar-se “o facto de estar em curso o
estudo de um mais equilibrado esforço orçamental, entre os três ramos das
Forças Armadas”.
O
que é surpreendente neste “Memorial” é o pouco relevo da questão colonial nas
preocupações dos novos dirigentes do Exército. Apesar de constatarem a dimensão
mundial dos futuros conflitos, reconhecendo portanto a necessidade de incluir os
territórios portugueses espalhados pelo mundo na “escala dos espaços
geográficos”, a verdade é que nada configura a consideração da ameaça do
movimento descolonizador e da sua chegada a esses territórios. Porventura,
mesmo para esta equipa, conhecedora, evoluída e atenta às mudanças, seria cedo
para a percepção do avanço desse movimento anticolonial, destinado a mudar
radicalmente o mundo nas duas décadas seguintes!
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