Como diretor do Arquivo Histórico
Militar fiz parte da Comissão Luso-Brasileira para a Salvaguarda e Divulgação
do Património Documental (COLUSO, abreviadamente), composta por duas secções,
uma brasileira e outra portuguesa.
Em Julho de 2003 fizemos uma reunião em
Lisboa de ambas as secções, como era habitual todos os anos, uma vez no Brasil
e outra em Portugal. Nesse ano convidámos também representantes de outros
países da CPLP. Fui encarregado da conferência de boas-vindas, em sessão
realizada na Torre do Tombo.
Chamei à minha comunicação “Projeto
Reencontro – Uma Janela para o Futuro”, que aqui mudo para um novo título.
Em
primeiro lugar desejo felicitar, em meu nome e em nome da Secção Portuguesa da
COLUSO, os organizadores e os participantes deste Seminário sobre o Património
Arquivístico nos Países da CPLP. É nestes encontros que surgem as oportunidades
de conhecimento, de intercâmbio e de cooperação, susceptíveis de concretizar
desafios e projectos comuns. Este seminário pode constituir um passo decisivo
para uma aproximação dos Arquivos da lusofonia, no sentido da salvaguarda,
preservação e acesso a um imenso património que guarda uma parte importante da
nossa memória comum.
O
processo de autonomia e independência dos territórios dependentes, ocorrida nos
séculos XIX e XX, conduziu à dispersão da documentação de natureza histórica
respeitante aos vários países envolvidos.
A
investigação sobre as raízes multisseculares dos países que se autonomizaram
tem de recorrer necessariamente aos acervos documentais guardados pelos países
historicamente administrantes. Contudo, também uma parte da memória destes se
encontra depositada em instituições dos que foram colónias.
Esta
situação é reconhecida pela UNESCO que “considera património comum a
documentação pertencente a países que tiveram um passado comum”.
Interpretando
este sentimento mútuo, as relações culturais entre os novos países e as
respectivas potências administrantes têm reconhecido a complementaridade dos
respectivos patrimónios documentais e têm afirmado a necessidade de levar à
prática a partilha do seu passado comum e a recuperação conjunta das suas
raízes e memórias.
Há
muito tempo que Portugal e Brasil procuram concretizar este movimento cultural
de partilha, no sentido de recuperar a memória do período colonial de mais de
três séculos, em que ambos tiveram um passado comum. Neste sentido, e
enquadrado no espírito da UNESCO e de outros organismos internacionais, nasceu
um projecto comum que tem como finalidade a microfilmagem de documentos
existentes em Portugal e no Brasil, com interesse recíproco.
Para
a concretização deste Projecto, foi criada a Comissão Luso-Brasileira de
Salvaguarda e Divulgação do Património Documental (COLUSO), constituída por
duas Secções: a Secção Portuguesa e a Secção Brasileira. A Secção Portuguesa,
através do Projecto Reencontro, tem tido e continua a ter, como objectivo, a
microfilmagem da documentação levada por D. João VI para o Brasil e que aí
ficou, bem como da documentação produzida durante a permanência da Corte
Portuguesa no Rio de Janeiro, e portanto, enquanto ali se centralizava o
Império Português, e ainda de toda a imensa documentação anterior a este
período, que de algum modo testemunha a presença portuguesa no Brasil-colónia,
e que muitas vezes falta nos acervos documentais portugueses.
Mas
o interesse português pelas fontes documentais brasileiras não se esgota naqueles
períodos. De facto, a forte emigração portuguesa para o Brasil, com o respectivo
reflexo na vida portuguesa, que se verificou ao longo de todo o século XIX e
princípio do século XX, faz com que este fenómeno tenha de ser analisado a
partir do cruzamento de fontes documentais, das quais uma parte considerável se
encontra nos arquivos do Brasil.
Na
actual conjuntura, quando os dois países se preparam para comemorar o
bicentenário da chegada da Corte Portuguesa ao Brasil, em 2008, torna-se cada
vez mais pertinente a necessidade de intensificar o Projecto Reencontro, a par
e em conjunto com o Projecto Resgate.
Vejamos
então quais são os instrumentos de relação cultural entre Portugal e o Brasil,
com referência à área dos Arquivos. Na sequência de anteriores documentos
bilaterais orientados para o equacionamento da questão em causa, Portugal e o
Brasil assinaram, em 16 de Agosto de 1995, um Protocolo de Cooperação, no qual
ambas as partes acordavam na necessidade de adopção de “um projecto comum para
a microfilmagem de documentos históricos portugueses e brasileiros e para a
promoção da permuta de informações contidas nos acervos arquivísticos de ambos
os países”.
No
seguimento deste Protocolo foi criada a Comissão atrás referida. Por ocasião da
assinatura do Tratado Luso-Brasileiro de Amizade e Cooperação, em Porto Seguro,
a 22 de Abril de 2000, foi sublinhada a necessidade de cooperação na área da
cultura e muito particularmente na área dos Arquivos.
Em
5 de Setembro de 2001, veio a ser assinado entre os Governos dos dois países um
Protocolo Específico de Colaboração na Área dos Arquivos como resultado de um
trabalho concreto que se vinha desenvolvendo, e que intencionalmente remete
para o longo historial de tentativas de aproximação neste campo. Este Protocolo
refere a aproximação das comemorações do bicentenário da chegada da Corte
Portuguesa ao Brasil em 2008, para, no seu Artigo Sexto, expressamente
comprometer as duas partes a prorrogarem a “vigência das respectivas Secções da
Comissão Luso-Brasileira para a Salvaguarda e Divulgação do Património
Documental”.
Resultando
decerto do aprofundamento das relações entre os dois países, foi assinado em 17
de Maio de 2002 o Programa de Intercâmbio Cultural Luso-Brasileiro, cujo Artigo
18º dedicado aos Arquivos diz: “As Partes prosseguirão a cooperação na
microfilmagem, bem como a inclusão em outros suportes electrónicos, de
documentação existente nos arquivos de ambos os países e relevante para a
história comum portuguesa e brasileira, no âmbito do Projecto
Reencontro/Resgate e examinando em conjunto a viabilidade de participação nesse
projecto de países de tradição cultural comum”.
Finalmente,
na recente reunião dos Ministros da Cultura do Brasil e de Portugal, que teve
lugar no Rio de Janeiro a 9 e 10 de Abril de 2003 foi acentuada e inserida em
adenda à Acta, a importância dos resultados e da necessidade de continuação dos
Projectos Reencontro e Resgate, ao mesmo tempo que de novo era manifestado
interesse na possibilidade de elaborar um novo Projecto relativo à reprodução
de documentação referente aos países da Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa (CPLP) existente nos Arquivos de Portugal, do Brasil, e dos outros
países lusófonos.
Por
outro lado, este sentido geral traduziu-se também na chamada “Carta do Rio”
assinada em 20 de Novembro de 2002 por responsáveis e representantes dos
Arquivos Nacionais de seis países lusófonos que decidiram propor à CPLP, a
criação de um Comité Especial com o objectivo de integrar as actividades
desenvolvidas pelos Arquivos dos respectivos países.
Permitam-me,
a este propósito, mais umas palavras.
Os
Arquivos Nacionais, complementados com os outros Arquivos de cada país, guardam
a memória documental da administração e do exercício do poder central, dos
poderes acessórios e das actividades relevantes da sociedade. De uma forma
geral, essa memória traduz-se na sobrevivência de séries e colecções
documentais que desenham, testemunham e transmitem a complexa rede de relações,
hierarquias e decisões das variadíssimas faces da administração e das
actividades políticas, económicas, sociais, culturais, etc.
Reconstituir
todas essas imensas teias e as suas sucessivas transformações, através das
provas documentais, é uma das tarefas essenciais dos Arquivos. Toda a
investigação histórica e de outras ciências humanas e sociais age com base na
capacidade de reconstituir o ambiente e as cadeias de acção das sociedades
objecto de estudo. Ora, as circunstâncias e peculiaridades de cada época e de
cada espaço geográfico ditaram, muitas vezes de forma fortuita, a sobrevivência
e salvaguarda das provas documentais que hoje constituem as nossas memórias
colectivas. Por isso, elaborar guias de fontes que permitam localizar,
reconstituir, recuperar e compreender as séries e colecções documentais e as
respectivas hierarquias e entidades produtoras parece traduzir a tarefa estratégica
dos Arquivos modernos. E se o investigador puder um dia saber o que existe,
onde existe, em que condições existe; se puder com relativa facilidade efectuar
pesquisas cruzadas entre Arquivos, definir as continuidades e interrupções
documentais relacionadas com as suas orientações de investigação; se puder
aceder à leitura ou reprodução dos documentos localizados e determinar
razoavelmente as condições desse acesso; se tudo isso vier a ser possível,
então os Arquivos estão cumprindo a sua missão essencial, construindo uma ponte
sólida entre os patrimónios guardados nos seus imensos depósitos e a
capacidade, inteligência e perspicácia interpretativa dos investigadores e
estudiosos, tudo contribuindo para o cumprimento de uma estratégia cultural inerente
a cada povo – o de nos conhecermos através do passado, de nos aproximarmos
através da história, de nos projectarmos através de relacionamentos
privilegiados.
Todos
estes imensos projectos dos guias das fontes e todos os projectos directa ou
indirectamente seus acessórios traduzem esforços, estratégias e capacidades que
devem e podem integrar-se num tão amplo quanto possível plano geral, que nos
permita saber o que temos, onde está, em que condições se encontra, como será
possível fazer com que as espécies documentais se reencontrem na sua lógica de
produção inicial, tudo resultando de um enorme esforço comum concertado,
transparente e mutuamente compreendido.
Este
plano estratégico, já preliminarmente definido ou com necessidade de
aprofundamento, não pode, evidentemente, pôr em causa a identidade,
especificidade e natureza de cada um dos Arquivos participantes, antes deve
acentuar o seu especial papel no conjunto dos seus parceiros de projectos, por
forma a que se possa reflectir, no resultado final, a relação de cada um com as
circunstâncias de que é herdeiro.
O
voto que a Secção Portuguesa da Comissão Luso-Brasileira para a Salvaguarda e
Divulgação do Património Documental aqui deseja deixar claramente expresso é o
de que, em conjunto, saibamos definir os caminhos de aproximação, planear as
estratégias de mútua e geral vantagem e concretizar as necessárias acções
técnicas, com vista a consolidar a amizade, a capacidade de diálogo e a
aproximação de pontos de vista que potenciem a resolução das grandes tarefas
que temos pela frente. E que saibamos, num salutar e muito amplo projecto
comum, definir uma estratégia de vantagens multilaterais, potenciando as
capacidades de cada um dos países da lusofonia.
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