Em 2010, fui convidado a participar
numa Jornada de Estudos no ISCTE, sobre o tema “Militares e Sociedade, Marinha
e Política”.
Apresentei uma comunicação sobre o
Movimento dos Capitães e a forma como eu próprio via o aparecimento e o
desempenho desse movimento.
O texto veio depois a ser publicado,
pelo que destaco aqui apenas a sua primeira parte, como enquadramento da
questão.
A primeira vez que me propus estudar
este movimento como fenómeno social, fi-lo com o meu amigo, coronel e
sociólogo, Manuel Braz da Costa, sendo o texto publicado na Revista
Crítica de Ciências Sociais (CES,
Coimbra), nº 15/16/17 de Maio de 1985, acessível on-line.
Reformulado, este
estudo foi depois publicado por Luísa Tiago de Oliveira em “Militares e
Política – o 25 de Abril”, 2014.
Aqui fica, com um título um pouco
diferente…
Falando sobre o Movimento dos Capitães no Arquivo Histórico Ultramarino, em 2009. |
Após
o 25 de Abril, os participantes do Movimento dos Capitães sabiam bem que o
movimento era obra de uns tantos, e não de todos, nem sequer de muitos. A nossa
lógica construiu-se em bases bem determinadas, mas nem sempre coincidentes. É
certo que não ignorávamos a oposição ao regime, pois a história nos ensinava
que ao longo da ditadura muitas vozes de militares se tinham levantado, sempre
prontamente dominadas pela acção dos defensores do regime. Mas o que nos uniu,
a um certo número de militares do Exército, foi a oposição à guerra, ou à forma
de fazer aquela guerra, ou ao desprestígio das Forças Armadas (a que
pertencíamos) por causa daquela guerra. Tudo começou com pequenos ou muito
pequenos núcleos de oficiais que se atreveram (porque a necessidade era
premente) a falar sobre a guerra e sobre o regime a propósito da guerra.
Nesses
pequenos núcleos gerou-se uma dinâmica própria de aproximação e conquista de
outros e outros oficiais, sem que a mancha fosse larga de mais. Era necessário
ter capacidade para questionar as soluções do regime, se não na sua política
interna, ao menos, e no mínimo, na sua política colonial (ou melhor, do
Ultramar). Assim progrediram as adesões, em torno da guerra, em torno das
Forças Armadas, em torno de algum questionamento do regime. Mas o que fica
sempre de pé, é a natureza do movimento que surge e se amplia. As questões
corporativas são de facto habilmente aproveitadas, mas elas integram, por
inteiro, a panóplia das justificações de base do movimento. Do que não podem
restar dúvidas é do conceito que sustenta a emergência de um movimento autónomo
dentro do Exército. O movimento dos capitães nunca se confundiu com o Exército,
que sabia muito bem não representar. Também o MFA, continuador abrangente do
movimento dos capitães, se afirmou contra as Forças Armadas, transportador de
ideias diferentes, gerador de um programa político de transição para uma
sociedade democrática. Estes conceitos geraram-se no interior do movimento dos
capitães, à parte e mesmo em oposição ao pensamento das Forças Armadas.
As
Forças Armadas são uma organização complexa, que nos regimes ditatoriais se
constitui como um dos seus suportes essenciais. Pode acontecer que as Forças
Armadas, como instituição, se disponham a derrubar um regime. Mas não foi isso
que aconteceu no derrube do Estado Novo. Confundir o movimento dos capitães/MFA
com as Forças Armadas, acho que é um erro evidente.
Contudo,
depois do 25 de Abril, conquistado o poder, embora não ocupados, de início,
muitos lugares do poder, gerou-se naturalmente um movimento de integração das
Forças Armadas (de todos os seus membros e das suas estruturas) na nova
realidade, em especial no sentido democrático da mudança, ou seja, no espírito
do MFA.
Como
seria natural, as resistências a este conceito foram múltiplas e extensas.
Podemos dizer que de ambos os lados. Os militares participantes do movimento
temiam a força de uma organização comprometida e conservadora, julgavam que
seriam facilmente absorvidos pela estrutura institucional, e rapidamente o
sentido democrático (e até revolucionário) do seu projecto viria a ser
inteiramente esquecido e porventura revertido. Enquanto isso, muitos dos militares
não participantes do movimento viam nos elementos participantes pessoas que
dificilmente as Forças Armadas (mesmo as novas Forças Armadas) conseguiriam
integrar. Achavam que eles seriam sempre elementos desestabilizadores, sem
cultura castrense, sem a noção da disciplina que os militares têm de assumir,
sejam quais forem os contornos da instituição militar.
Geraram-se
assim uns imensos mal-entendidos. Por um lado, muitos militares que nunca
apoiaram o movimento, que sempre evitaram qualquer compromisso antes do 25 de
Abril, procuraram recuperar o estatuto de participantes, de integrados no novo
espírito revolucionário, alguns até ultrapassando em muito as directrizes
essenciais que deram forma ao projecto do MFA. Estes apostavam na vitória da
revolução, que trituraria todos aqueles que não estivessem na frente. Mas por
outro lado, também muitos outros, incluindo alguns dos que eram participantes
activos do movimento, acharam que se iam ultrapassando todos os limites que o
projecto comportava e que não fazia sentido acompanhar uma cavalgada que
perdera o sentido do razoável. Eles apostaram que o processo se encarregaria de
estabilizar ou mesmo reverter os excessos iniciais, e que as Forças Armadas
regressariam ao que sempre teriam de ser – um corpo estável, ao serviço do novo
regime.
No
meio ficou um núcleo de militares conscientes das novas realidades e defensor
do projecto inicial do MFA e dos seus limites, assim como do cumprimento das
promessas incluídas no programa apresentado e aplaudido pela sociedade. Em face
dos conflitos que se geraram, das disputas de facções que se foram ajustando a
projectos políticos distintos, da força que as facções foram exibindo, das
novas dinâmicas que a sociedade assumiu e expressou, o processo avançou numa
bissectriz oscilante, até que as suas ondulações se passaram a guiar por regras
maioritariamente aceites pela sociedade.
Quando
o período de grande dinâmica se foi findando, emergiu uma sociedade com novos
valores, prezando a liberdade e a democracia, e deixando ao povo (ao conjunto
de todas as pessoas) a responsabilidade de construir e defender uma sociedade
democrática.
Os
militares tiveram destinos múltiplos, mas muitos dos participantes no movimento
inicial não regressaram às Forças Armadas. Outros integraram-se sem grande
dificuldade e outros nunca deixaram o seu lugar. Houve muitos que foram
rejeitados, de uma maneira ou de outra, pelas Forças Armadas, umas vezes
vítimas da sua conduta, outras vezes vítimas de vários ajustes de contas.
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