Este texto foi publicado na Revista da Associação 25 de Abril, Toronto, 2013.
Em 1982 comemorei o 25 de Abril no
Brasil, nas cidades do Rio de Janeiro e de S. Paulo. Acompanhei nessa viagem o
conselheiro da revolução António Marques Júnior, que recentemente nos deixou.
Este texto é também uma homenagem de saudade.
Pela resolução 83/82 de 21 de Abril,
o Conselho da Revolução, pouco antes de terminar o seu mandato, promoveu a
oficial general o “Capitão” João Sarmento Pimentel, velho republicano,
militante da oposição ao regime do Estado Novo, que viveu largos anos exilado
no Brasil. O Marques Júnior foi encarregado de lhe entregar as estrelas de
general, deslocando-se para esse propósito a sua casa, em S. Paulo. Pela
amizade que nos ligava e por várias conversas que já tivéramos acerca desta promoção,
entendeu convidar-me para o acompanhar. Foi para mim um enorme privilégio.
Em virtude de se comemorar nesse ano
o 8º aniversário do 25 de Abril, aproveitámos para passar alguns dias junto da
comunidade portuguesa do Rio de Janeiro, antes de seguirmos para S. Paulo. O
Marques Júnior tornou-se desde logo uma estrela, não só junto dos portugueses,
mas também junto dos brasileiros que se associaram às comemorações do 25 de
Abril. Com a sua sensibilidade, entusiasmo, sentimento e verdadeira paixão pela
revolução portuguesa e pela conquista da liberdade em Portugal, o Marques
Júnior sensibilizou todos os que assistiram à sessão comemorativa e
emocionou-se quando teve de falar sobre a nossa revolução. Foi uma espontânea
simpatia mútua, entre ele e todos os que o escutavam.
Lembro-me que estava presente a
escritora brasileira Lygia Fagundes Teles que muito se comoveu com o capitão
português e que teve para com ele palavras de muita admiração por aquilo que os
capitães tinham feito em Portugal, ao restituir a liberdade ao povo, o que mais
uma vez sensibilizou profundamente o Marques Júnior. Numa das noites assistimos
a uma representação teatral, com a sala completamente cheia, tendo um dos
actores saudado a nossa presença na sala, o que desencadeou uma prolongada
salva de palmas. E como não podia deixar de ser, mais uma vez o Marques Júnior
expôs toda a sua emoção, embargando-se-lhe a voz ao tentar agradecer.
Para mim foi também uma surpresa
enorme. Já conhecia o Marques Júnior desde o 25 de Abril e já tinha trabalhado
com ele nas comemorações do 3º aniversário do 25 de Abril, mas nunca me tinha
apercebido desta sua face tão humana e sensível.
Daí em diante a cena era sempre a
mesma, quando se falava em democracia, liberdade, 25 de Abril, capitães, era
certo e sabido que ambos ficávamos comovidos, de olhos húmidos e voz embargada,
a que se seguiam as palmas compensadoras.
Recompensados com este acolhimento
fraterno nos mais diversos eventos em que participámos no Rio de Janeiro,
seguimos para S. Paulo para cumprirmos a missão que levávamos. Em toda a
viagem, desde Lisboa, fomos planeando o nosso encontro com o “Capitão”, que
conhecíamos dos seus livros e da sua vida. Eu terminara o curso de História em
1980 e tivera oportunidade de ler as “Memórias do Capitão”, publicadas em 1974,
ano da Revolução. Levava o livro comigo para conseguir a dedicatória, pelo que
tivemos oportunidade de reler, por exemplo, a sua participação na primeira
revolta contra a Ditadura Militar em 3 de Fevereiro de 1927, no Porto. Numa
escrita vigorosa, como aliás em todo o livro, o Capitão explica como se adiou a
revolta de 31 de Janeiro, data simbólica, para 3 de Fevereiro, sendo que, mesmo
assim, Lisboa só poderia apoiar a revolta 12 horas depois! “Acreditando na
promessa, aceitaram [os revolucionários do Porto] implicitamente a derrota”,
afirma o Capitão. E nem isso, pois os revolucionários de Lisboa só saíram no
dia 7 (a “revolução do remorso”, como lhe chama nas suas Memórias), podendo
assim a ditadura “bater os seus inimigos, primeiro um e, depois deste vencido,
o outro”.
Conversando sobre o longo e corajoso
rumo de vida do nosso antecessor, que se exilara logo a seguir à revolução do
Porto de 1927 e só voltara a Portugal depois do 25 de Abril para comemorar
finalmente a liberdade de todos, concluíamos que seria um privilégio podermos
falar com o nosso anfitrião e entregar-lhe as estrelas de general, afinal mais
merecidas do que muitas outras…
O Marques Júnior preparava algumas
palavras para dizer na ocasião, mas acabou por desistir e concluir que diria as
palavras que o coração lhe ditasse no momento…
Fomos directamente para sua casa,
onde toda a família nos esperava. Era o dia 25 de Abril de 1982!
O Capitão (que aliás já era coronel,
anteriormente promovido pelo Conselho da Revolução!) João Sarmento Pimentel
recebeu-nos na sua cadeira de rodas, do alto dos seus 94 anos, com um visível
contentamento e agrado, que as suas palavras de boas vindas acentuaram e, mais
uma vez, nos comoveram. O Marques Júnior, no seu curto improviso disse o que
era essencial, antes de se calar emocionado - o quanto Portugal devia aos
lutadores antifascistas, e como o 25 de Abril não fora mais que a continuação dessa
mesma luta do povo português. E que as estrelas que lhe levávamos eram um
tributo justo e mínimo à sua resistência em prol da liberdade e da democracia,
agora implantadas em Portugal. Acho que o Marques Júnior não deixou de fora
nenhuma das palavras que lhe embargavam a voz e lhe humedeciam os olhos!
No fim, saímos de sua casa com a
plena satisfação do dever cumprido, e eu trazia um autógrafo na primeira edição
das “Memórias do Capitão” que não podia deixar de me enternecer: “Ao major
Aniceto Afonso, homenagem do general João Sarmento Pimentel. São Paulo, 25 de
Abril de 1982”, encimado pelo seu ex-libris!
O que hoje posso aqui deixar é o
parágrafo final do Prefácio de Jorge de Sena: “Se lesse estas páginas, o Camões
que escreveu as cartas picarescas, as canções diáfanas de espiritualidade, e
soube tão bem o que é o heroísmo que fez Fernão Veloso contar dos Doze de
Inglaterra, por certo enxugaria, oh disfarçadamente, uma lágrima de satisfação.
Afinal, ainda Portugal vai dando, numa mesma pessoa, homens e escritores”.
E posso também envolver nesta
homenagem o meu companheiro António Marques Júnior, membro por direito da
galeria dos homens excepcionais que Portugal ainda vai dando…
Dois aspetos das comemorações do 25 de Abril no Rio de Janeiro em 1982.
Autógrafo do autor no meu exemplar das "Memórias do Capitão".
Fico feliz com o que acabo de ler. O Marques Júnior, tive o prazer de o conhecer num Curso de Transmissões das Armas que decorreu no final de 1973, no Regimento de Transmissões, em Sapadores - lisboa, quando ambos já participávamos nas reuniões de preparação do 25 de Abril. Honra à sua memória, que, tão bem soubeste traduzir no que sobre ele referes. Quanto a nós, já somos amigos de muitos anos, foste tu que me introduziste no Movimento dos capitães, em Agosto de 1973, tinha eu acabado de chegar de Moçambique e, estavas tu prestes a partir para lá. Regresso onde comecei, estou feliz com o que li, e presto também a minha homenagem ao Gen. João Sarmento Pimentel que, graças ao nosso 25ABR74,viu, merecidamente, a sua figura reconhecida. Obrigado Aniceto.
ResponderEliminarObrigado, meu caro amigo, pelas tuas palavras. São histórias da nossa história pessoal e da História do nosso país. Acho que vivemos momentos únicos e disso temos boas memórias! Abraço.
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