Este texto foi publicado na Revista da Associação Cultural 25 de Abril, Toronto, 2016.
Em finais de 2009, quando
eu e o Carlos de Matos Gomes fazíamos investigação para o nosso livro “Alcora – O
Acordo Secreto do Colonialismo” tivemos acesso ao arquivo de Marcelo Caetano
depositado na Torre do Tombo, devidamente autorizados pelo filho do antigo
Presidente do Conselho de Ministros. A parte respeitante à correspondência é
mais pobre do que poderia pensar-se, embora com interesse para o levantamento
de algumas relações de poder da época.
Entre outros assuntos que
nos interessaram, vou hoje destacar uma carta que o Engº. Jorge Jardim (1) enviou ao Ministro da Defesa, Sá Viana Rebelo,
e da qual este deu conhecimento a Marcelo Caetano, com data de 18 de Abril de
1973, portanto um ano antes do movimento revolucionário do 25 de Abril de 1974,
que depôs Marcelo Caetano e inaugurou o actual regime democrático.
Existe a ideia da pouca
influência que Jorge Jardim teria junto do Governo Português, nesta época, em
especial depois do afastamento de Salazar. O teor e o conteúdo desta carta
parece indicar o contrário, pelo menos no que respeita à questão colonial e às
relações que uma importante facção do regime queria estabelecer com a África do
Sul, no âmbito do Acordo secreto já então muito avançado.
É sobre este assunto que
Jorge Jardim primeiro se debruça, nos seguintes termos:
“O seu colega da República da África do
Sul, com quem estive em Cape Town em 29/03/73, envia-lhe os mais amigos
cumprimentos e confirmou-me o propósito de ir visitá-lo a si, a Lisboa (…)
Preocupando-se altamente com a evolução
dos problemas no Malawi e na Zâmbia, reafirmou-me que poderíamos contar com
todo o decidido apoio por parte da República da África do Sul.
Foi mesmo muito entusiástico quanto à
nossa política de “envolvimento progressivo” da Zâmbia pela concessão de
facilidades.
Não poupou comentários agrestes, e
mesmo violentos, quanto à atitude rodesiana de encerramento da fronteira com a
Zâmbia (…)
Penso que desejará apreciar consigo a
eventualidade da transferência para Pretória de alguns serviços “Alcora” e
assegurou-me, muito enfaticamente, que de modo algum transmitiriam aos
rodesianos informações que se pudessem ligar com o nosso planeamento bilateral
de actuação.
Ainda acerca da estrutura “Alcora”,
pediu-me para eu ter demorada entrevista com o capitão de mar-e-guerra W.N. du
Plessis e solicitou-me para a si referir o interesse que teriam em ver
reforçada a participação portuguesa na P.A.I.O. (2)
Este
interesse, segundo detalhadamente me veio a explicar o comandante Du Plessis,
resulta de considerarem esse órgão do “Alcora” como muito importante para a
coordenação de informações, podendo nele recolherem-se dados de interesse para
o esforço comum e para além do trabalho que vem realizando o “Sub-Committee of
Inteligence” instituído em Junho de 1971.
Segundo me foi referido, para além do
pessoal auxiliar, o “PAIO” teria a participação permanente de um oficial (com a
patente de coronel) por Portugal, pela RAS e pela Rodésia.
No nosso caso parece que se seguiu a
orientação de a representação portuguesa no PAIO ser confiada ao adido militar
em Salisbury.
Consideram que, devido às muitas
atribuições e responsabilidades que incidem sobre o nosso adido militar, essa
colaboração portuguesa se tem revelado insuficiente e muito apreciavam se lhe
fosse possível, a si, designar oficial qualificado para permanente participação
no PAIO.
Aqui lhe transmito esse pedido do seu
colega Botha e as explicações que me foram dadas, complementarmente, pelo
comandante Du Plessis em 30/03/73.
O comandante Du Plessis dirige o
departamento de informação estratégica nos serviços do general Du Toit (M.I.A.)
que provavelmente acompanhará o ministro Botha a Lisboa.
Por este seu colega foi-me confirmado
que o Governo de Pretória considera muito favoravelmente a concretização da
assistência que por si lhe foi solicitada, quando da reunião de Lourenço
Marques”.
Jorge Jardim aproveita a
carta para abordar outro assunto de muito melindre, ainda relacionado com a
situação nas colónias e um obscuro fornecimento de material de guerra a
Portugal. Diz o seguinte:
“Por último quero referir-me ao
fornecimento de munições soviéticas a Portugal e de que me tenho vindo a ocupar
no seguimento do que me foi solicitado pelo Comandante-Chefe e teve a sua
aprovação.
O “Cláudia” saiu efetivamente de porto
russo para Trípoli com aquele equipamento, anunciando a data de chegada a
Lisboa que foi sendo progressivamente adiada.
Isso me levou a fazer algumas
indagações (…) Dessas indagações me resultou a informação de que o “Cláudia”
transportava, igualmente, material para outro destino na Europa.
A demora em Trípoli resultou das
negociações para esse outro fornecimento e de aguardarem a chegada de elementos
que o acompanhariam.
Fiquei altamente preocupado com a
possibilidade de nos vermos envolvidos em alguma tramóia escandalosa, no âmbito
internacional, em que pudéssemos figurar como “bode expiatório”.
Fiz assim saber a Gunter Leinhauser (em
contacto com emissário meu em Hamburgo) que não consentiríamos na passagem do
“Cláudia” (3) por Lisboa desde que trouxesse a bordo outro equipamento para
eventual cliente diverso.
Recebi o mais formal compromisso de que
isso não aconteceria e quando se verificou o apresamento do “Cláudia” bem avaliará
o alívio que senti pela inspirada preocupação que tinha tomado.
Todo o nosso material se perdeu naquele
apresamento mas, ao menos, foi exclusivamente o I.R.A. que ficou com a
responsabilidade (…)
Gunter Leinhauser assegurou-me que
faria em breve o reembolso da primeira prestação que havíamos liquidado (a 2ª
prestação nunca chegou a ser transferida para a Suíça) e disponho de valiosa
carta dele autógrafa em tal sentido (…)
Como sabe, o seu gabinete dispõe de
fotocópia do conhecimento de carga relativo ao transporte do nosso material no
“Cláudia”.
Como se vê, um assunto surpreendente,
com contornos bastante obscuros, a necessitar outra investigação que na altura
não estávamos interessados em fazer. Mas o assunto não deixa de suscitar
perplexidades que estão, tanto quanto conheço, por investigar. Apesar do muito
trabalho que se tem feito sobre estes anos finais do Estado Novo e em especial
da situação nas colónias onde havia operações militares, são ainda muitos os
assuntos que estão a precisar de novos interessados e de novos projectos de
investigação.
Com o livro que publicámos
em 2013 sobre o acordo “Alcora” entre Portugal, a África do Sul e a Rodésia (4) ficou esclarecida uma boa parte das relações estabelecidas pelos três governos
de então, no sentido de resistir aos “ventos da História” que já sopravam sobre
África havia muito tempo e aos quais Portugal e os regimes racistas da África
Austral continuavam a querer resistir.
Quanto ao assunto da compra
de armas e outro equipamento pelo governo português durante o período da guerra
colonial, em especial na sua fase final, está ainda muito por esclarecer. Mas
não deixarão de ser surpreendentes as conclusões que vierem a ser estabelecidas,
em resultados de estudos sérios sobre esta época. Esperemos que tal seja
possível.
..............
(1) Jorge
Jardim, engenheiro agrónomo, era nesta data um importante empresário da
comunidade branca de Moçambique. Tinha privado com Salazar e aceitara missões
diplomáticas específicas e difíceis durante o período da guerra colonial. As
relações com Marcelo Caetano nunca foram tão próximas, mas ele continuou a servir
de agente especial em várias missões importantes para o regime. A partir de
1972 tentou uma aproximação à Frelimo através do Presidente Kaunda da Zâmbia,
tendo apresentado um programa de transição política para Moçambique (Programa
de Lusaca) que nunca chegou a ter luz verde de qualquer das partes.
(2) PAIO
ou Permanent Alcora Inteligence Organization (Organização Permanente de
Informações Alcora) era um dos organismos conjuntos que os negociadores
sul-africanos e portugueses estavam a implementar, a fim de coordenarem
políticas e ações militares no âmbito da África Austral e do chamado “Exercício
Alcora”, uma verdadeira aliança política e militar.
(3) A
história do navio “Cláudia” é conhecida. Está referida, por exemplo, no livro
“Historical Dictionary of Naval Intelligence” de autoria de Nigel West,
publicado no Reino Unido, em 2010. O que o autor não refere é a circunstância
de o navio também transportar material de guerra para Portugal, além da carga
que se destinava ao IRA.
(4) Já está nas livrarias a 2ª edição deste livro, pela editora Objectiva, a apresentar brevemente. O prefácio a esta edição é de Jaime Gama.
Nota: Ver aqui duas fotos
da captura do navio “Claudia” em Março de 1973:
Capa da 2ª edição de "Alcora, o Acordo Secreto do Colonialismo".
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