Este
texto foi publicado no livro Trás-os-Montes
e Alto Douro – Mosaico de Ciência e Cultura. S.l., 2011, pp. 259-263.
Coordenação de Armando Palavras.
Para a sua publicação neste blogue, será
dividido em três partes, a primeira com a ideia geral sobre os reconhecimentos
militares em meados do século XIX; a segunda com o reconhecimento concreto
desde o Pocinho até Miranda; a terceira com algumas considerações finais.
Parte 1
Às
oito horas da manhã do dia 2 de Janeiro de 1845, o capitão de Engenharia
Belchior José Garcês Sobral (1) iniciava o reconhecimento do “Itinerário da Barca
do Pocinho à cidade de Miranda, passando pela vila de Moncorvo, aldeias de
Carviçais, Lagoaça, Sendim e outros pontos notáveis, fazendo parte da grande e
antiga estrada denominada hoje ‘Mourisca’ que conduz de Portugal a diferentes
partes de Espanha”. No título do seu relatório, feito no quartel de Bragança e
datado de 2 de Fevereiro de 1845, o capitão Sobral acrescentava: “Esta estrada
é real e de muito trânsito”(2).
Porque
fazia o Exército este reconhecimento? Havia duas tarefas que decorriam desde há
muito anos, a que o Exército se encontrava ligado – a Carta Geral do Reino e o
Plano Geral de Defesa do Reino. Muitos trabalhos de campo, como os
reconhecimentos, poderiam ser úteis aos dois projectos.
Sem
mencionar preocupações anteriores, foi a partir de 1788 que a Academia das
Ciências de Lisboa começou a discutir mais profundamente a forma de levar a
efeito os trabalhos necessários à realização de uma Carta Geral do Reino.
Custódio Gomes Vilas Boas (3) foi a pessoa a quem a Academia pediu a elaboração
de um parecer sobre o assunto. As suas preocupações confluíram em duas
direcções – por um lado, a determinação da posição geográfica de uma rede de
pontos para apoio dos levantamentos topográficos, e por outro, o levantamento
da configuração do terreno, a realizar por comarcas, com posterior
uniformização (4). Mas quem iniciou os trabalhos foi Francisco António Ciera
(5), eminente matemático, que entre 1790 e 1791 percorreu Portugal e escolheu
uma série de pontos que, entre si, constituíssem um adequado sistema de
triangulação, como base dos trabalhos geodésicos da Carta. Depois de uma viagem
ao Sul, partiu para o Norte em Abril de 1791, para uma missão de dois meses,
ficando a sul do rio Douro (6). Completou o reconhecimento no final do ano,
entre Outubro e Novembro, em que visitou a Galiza, acompanhado de oficiais
espanhóis, e Trás-os-Montes. Vários engenheiros militares estiveram ligados a
estes trabalhos, que prosseguiram até 1804, altura em que foram interrompidos,
pelas dificuldades que o país atravessava.
Em
consequência dos acontecimentos políticos ocorridos em Portugal, desde as
Invasões Francesas até às Lutas Liberais, só terminadas em 1834, bem como os
conflitos internos que se prolongaram até à década de quarenta, os trabalhos da
Carta Geral do Reino só muito tardiamente foram retomados, ainda assim de forma
muito incipiente. Na década de trinta, Filipe Folque (7) e Pedro Folque (8)
iniciaram os trabalhos de triangulação, de levantamento e reconhecimento do
terreno, prosseguindo depois os trabalhos, até à realização da primeira carta
de Portugal, a Carta Geográfica de Portugal de 1865, na escala 1/500.000.
Para
esta realização tinham também contribuído os estudos feitos por uma comissão
nomeada em Dezembro de 1843, constituída por engenheiros militares (João José
Ferreira de Sousa, Filipe Folque e Luís Herculano Ferreira) a fim de que
“propusesse um sistema geral de Escalas, de Convenções e de Desenho Topográfico
para servir de norma nos trabalhos da Carta do Reino, a fim de os tornar mais
fáceis, uniformes e homogéneos” (9).
Por
outro lado, o Plano Geral de Defesa do Reino era também uma preocupação antiga,
que o Conde de Lippe, a partir de 1762, o Príncipe Waldeck, nos anos de 1797 e
1798, ambos comandantes do Exército Português e outros comandantes portugueses tinham
recomendado e mesmo realizado, através de longos reconhecimentos territoriais e
reorganização das forças militares de Portugal.
Mas
foram as Invasões Francesas que tornaram urgente a realização dos estudos e dos
reconhecimentos para o estabelecimento do Plano de Defesa. Neste campo, e apesar
de todos os trabalhos que entretanto se foram realizando, é notável o documento
elaborado pelo brigadeiro José Maria das Neves Costa (10), em resposta a uma
portaria de 11 de Abril de 1838 e datado de 1841, ano da sua morte (11). Nestas
Observações, escreve o autor:
“Desenvolvendo mais as precedentes ideias, observamos que, não havendo
actualmente quem tenha conhecimento geral e exacto da natureza geográfica do
nosso território, precisamos conhecer ao menos aproximadamente os seus
principais Rios e Montanhas que formam outros tantos dos principais obstáculos
naturais, que especialmente dificultam as operações de guerra”. E acrescenta:
“A respeito dos mencionados obstáculos naturais, observaremos também que ainda
quando os pudéssemos conhecer percorrendo toda a superfície terrestre do Reino,
não dispensaria isso a redacção de uma carta militar aonde eles se achassem
representados, pois seria esse o melhor modo pelo qual poderíamos perceber as
mútuas relações de grandeza, posição e distâncias dos referidos obstáculos
entre si, e a respeito daqueles terrenos mais acessíveis ou transitáveis que
entre eles mediassem e pelos quais, com mais probabilidade se devam esperar as
operações da guerra”.
O que Neves Costa queria dizer é que os trabalhos da
Carta e os trabalhos do Plano de Defesa podiam apoiar-se mutuamente e seguir
simultâneos ou paralelos, já que nem um nem outro tinham conhecido grandes
progressos nos últimos tempos. No fundo, os reconhecimentos no terreno serviam
não só para estudar os obstáculos, mas também para recolher as informações e as
medidas topográficas e geodésicas. Parece, no entanto, não ter sido isso que
aconteceu, já que os trabalhos de reconhecimento para o Plano de Defesa estavam
no terreno dois anos depois e os trabalhos do levantamento e dos estudos
cartográficos só vão iniciar-se em 1859.
…
[1] Belchior José Garcês Sobral, oficial
do Real Corpo de Engenheiros do Exército.
2 Ver o original no Arquivo Histórico
Militar (AHM), cota 3/1/19/7.
3 Custódio Gomes Vilas Boas, oficial
engenheiro do Exército e membro da Academia das Ciências de Lisboa. Fez vários
levantamentos topográficos do território português e publicou várias obras
científicas de Astronomia, Geografia e outras.
4 Maria Helena Dias, “As explorações
geográficas dos finais de Setecentos e a grande aventura da Carta Geral do
Reino de Portugal”. Revista da Faculdade
de Letras, Porto, 2003, p. 384-385.
5 Francisco António Ciera, eminente
matemático, astrónomo e cartógrafo português (1763-1814), foi o criador do
telégrafo óptico português, instrumento inovador para a sua época.
6 Francisco António Ciera, Viagem geográfica e astronómica pelo Reino
de Portugal para a construção da carta topográfica e determinação do grau do
meridiano (AHM, cota 4/1/16/21).
7 Filipe Folque, General engenheiro do
Exército e Doutor em Matemática por Coimbra (1800-1874). Em 1843 recebeu a
incumbência de realizar a carta topográfica de Portugal na escala 1/1000.000,
juntamente com seu pai, Pedro Folque.
8 Pedro Folque, General engenheiro do
Exército (1744-1848) distinguiu-se em várias missões ao serviço de Portugal,
tendo trabalhado na década de noventa do século XVIII com Francisco António
Ciera na Carta Geográfica do Reino. Várias vezes encarregado de trabalhos
geodésicos fundamentais, chegou a ser comandante do Real Corpo de Engenheiros
entre 1835 a
1848.
9 Ver o respectivo relatório no AHM,
cota 3/1/13/21.
10 José Maria das Neves Costa foi
oficial do Real Corpo de Engenheiros (1774-1841), fez inúmeros trabalhos
topográficos no início do século XIX, entre os quais a organização das Linhas
de Torres Vedras durante a 3ª invasão francesa. Nunca deixou de trabalhar e
escrever sobre o terreno, a topografia, a cartografia e a defesa.
11
José Maria das Neves Costa, Considerações militares tendentes a mostrar
quais sejam no território português os terrenos cuja topografia ainda falta
conhecer para servir de base a um sistema defensivo do Reino, que seja conforme
com a sua natureza geográfica e com os princípios gerais da ciência da guerra, 1841 (Ver o original no
AHM, cota 3/1/13/7).
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