terça-feira, 9 de março de 2021

 A GUERRA DE LIBERTAÇÃO EM MOÇAMBIQUE

Volto agora a este blog, por onde irei passando de vez em quando.


O Congresso da Comissão Internacional de História Militar realizou-se, em 2011, no Rio de Janeiro, com um tema geral sobre as independências do mundo colonial desde o século XVIII até à atualidade. Como eu e o coronel David Martelo fazíamos parte da delegação da Comissão Portuguesa de História Militar, por sermos respetivamente representantes nos comités de Arquivos e Bibliografia, propusemos apresentar uma comunicação no plenário da Comissão sobre Moçambique. É bem certo que estávamos, porventura, a ultrapassar o que nos dizia respeito, mas pareceu-nos que, na ausência de representantes de Moçambique, poderíamos acrescentar alguma informação dum período que tínhamos vivido com grande intensidade. É claro que não deixámos de ser muito questionados por outras delegações africanas, mas isso só concorreu para aprofundarmos o conhecimento que então tínhamos da experiência moçambicana.

Acompanhado de um power-point elaborado para o efeito e que aqui não reproduzo, a comunicação foi a seguinte:



1. Situação geral

     Moçambique tornou-se independente em 25 de junho de 1975. O acordo de transferência do poder tinha sido assinado entre Portugal e a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) no dia 7 de setembro de 1974, nove meses antes. As negociações só foram possíveis depois da Revolução dos Cravos em Portugal, em 25 de Abril de 1974, que derrubou o regime português do Estado Novo.

A guerra durou em Moçambique dez anos. O regime português, a ditadura salazarista, continuada por Marcelo Caetano, nunca formulou uma solução para a guerra que levasse em conta o ambiente internacional de apoio ao movimento descolonizador, nem as recomendações e resoluções da ONU que apoiavam os processos de independência dos territórios não-autónomos e muito menos o sentimento nacionalista dos povos coloniais.

É nossa intenção abordar a questão do processo moçambicano que conduziu à independência em 1975, interrogando-nos sobre a importância que a guerra de libertação teve (e continua a ter) na construção de uma identidade nacional, e no reforço da consciência de pertença a uma nação coincidente com as fronteiras traçadas pelas potências coloniais europeias.

 

 2. Antecedentes

    O movimento descolonizador, pelas razões que são conhecidas, reforçou-se depois da Segunda Guerra Mundial, levando à independência de vários territórios coloniais e à constituição de novos países. Costuma apontar-se a Conferência de Bandung, em abril de 1955, como um acontecimento decisivo para o reforço do apoio à ideia descolonizadora de todos os territórios dependentes.

Em cerca de 20 anos, as potências coloniais europeias foram cedendo, perante a pujança do movimento descolonizador, às reivindicações e à luta dos povos pela sua autodeterminação, acabando por dar origem a algumas dezenas de novos países, desde o Extremo Oriente, ao Médio Oriente, ao Norte de África e à África subsariana. Em meados da década de sessenta, poucos casos complexos estavam por resolver, estando estes especialmente localizados na África Austral, em que se incluíam as colónias portuguesas de Angola e Moçambique, a Rodésia e a África do Sul do regime de apartheid.

Por outro lado, as grandes potências emergentes da II Guerra Mundial, Estados Unidos da América e União Soviética, na disputa de zonas de influência, apoiaram a formação de resistências contra a presença europeia nas suas colónias. Mesmo nos territórios onde o nacionalismo pretendeu preservar o seu próprio processo de luta, a influência das grandes potências esteve invariavelmente presente, quer no apoio ideológico e doutrinário, quer no apoio material.

Em Moçambique, os movimentos autonomistas modernos encontram as suas raízes na década de 50 do século XX, mas a necessidade de organizar politicamente o sentimento de resistência à situação colonial começou a produzir os seus efeitos em 1960, em especial junto das comunidades moçambicanas emigradas nos territórios vizinhos. Em outubro desse ano, foi fundado, em Salisbúria (atual Harare), o primeiro agrupamento político que visava a obtenção da independência do país: a União Democrática de Moçambique (UDENAMO). Outras organizações e movimentos se constituíram com praticamente os mesmos objetivos – porem em questão o domínio colonial.

  

3. A Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO)

    O primeiro acordo entre várias organizações nacionalistas moçambicanas que questionavam o poder colonial foi celebrado a 2 de junho de 1962, em Acra, no Gana, levando à constituição da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), movimento reconhecido desde logo por vários países africanos.

Como os grupos constitutivos da FRELIMO eram de base étnica ou regional, a coesão revelou-se desde o início muito frágil, razão da escolha de Eduardo Mondlane como presidente, por não proceder de nenhum desses grupos.

Mondlane tinha estudado Antropologia e Sociologia nos Estados Unidos, começando a trabalhar para a ONU em 1961. Nos Estados Unidos foi ainda professor da Universidade de Siracusa, mas, no início de 1962, decidiu empenhar-se inteiramente na luta de libertação nacional. Foi então encarregado de organizar o I Congresso da FRELIMO em Dar-es-Salem, em setembro de 1962, Congresso que veio a consolidar a organização e a prepará-la para o início da luta armada. Mas as rivalidades étnicas e a luta pelo poder seriam, desde então, uma constante.

De 1962 até ao início das hostilidades, a FRELIMO consolidou a sua retaguarda no Tanganica (atual Tanzânia, independente a partir de dezembro de 1961), contando com apoios diversificados, desde os Estados Unidos no início, até à Argélia, Egito, Marrocos, países socialistas e à China.

Contudo, a liderança de Eduardo Mondlane e a vida da FRELIMO não foram tranquilas nos anos de 1962 e 1963. A primeira direção da Frente, saída do ato da fundação, acabou por se desmembrar em maio de 1963. Estes acontecimentos marcariam a organização, na qual sempre permaneceu uma fratura entre os quadros diretivos, a maioria proveniente do Sul do território e a grande massa dos combatentes recrutados nas populações do Norte. De qualquer modo, o Movimento continuou a preparar a insurreição militar.

No período de 1963 e 1964, a situação africana modificou-se consideravelmente, em especial nas fronteiras das colónias portuguesas. Ainda em 1963, Zanzibar juntou-se ao Tanganica, criando a Tanzânia, com Julius Nyerere como Presidente e o líder de Zanzibar como vice-presidente. Em 1964 deu-se a independência do protetorado britânico da Niassalândia, que adotou o nome de Malawi. A Rodésia do Norte também alcançou a sua independência, adotando o nome de Zâmbia, e tendo como presidente Kenneth Kaunda. Tanto o Malawi como a Zâmbia eram países interiores, dependentes das saídas para o mar controladas por Portugal. 

  

4. O início da guerra

    Desde princípios de 1964 a situação em Moçambique era de pré-insurreição. Ainda que formalmente não tivesse estalado o conflito, guerrilheiros da FRELIMO, vindos da Tanzânia, e que tinham recebido treino militar na URSS e na China, entraram clandestinamente no país e começaram a preparar os distritos de Cabo Delgado e de Niassa para a futura insurreição militar.

A sua ação mítica, tida pela própria organização como a marca do início da luta armada, deu-se na noite de 25 de setembro de 1964, com o ataque a um posto administrativo de Cabo Delgado, a 10 km da fronteira da Tanzânia, levado a efeito por um destacamento de 12 guerrilheiros, sob o comando de Alberto Chipande. Embora se possa considerar que outras ações mais ou menos simultâneas ocorreram em outros locais do Norte do território, a verdade é que, a partir de então, os incidentes violentos não pararam de aumentar.

Dentro das boas regras da guerra subversiva, os guerrilheiros espalhavam a insegurança na zona, dificultando a atividade rotineira das populações e pondo em causa a capacidade das autoridades para exercerem o seu domínio. Eram, ainda, ações de valor militar modesto, mas que criavam o ambiente de resistência que era pretendido. Para além disso, a FRELIMO iniciou, ao mesmo tempo, uma campanha de divulgação, junto das populações, dos objetivos da sua luta.

As primeiras ações diretamente contra as tropas portuguesas ocorreram ainda no ano de 1964, provocando as primeiras baixas em combate.

  

5. O conflito militar em Moçambique

     A partir do início da luta armada, em 1964, tanto a FRELIMO como as forças portuguesas em Moçambique deviam ter definido uma estratégia de atuação.

Contudo, neste período inicial das hostilidades, os objetivos da FRELIMO eram muito limitados. As suas preocupações estavam sobretudo centradas na unidade das várias correntes que constituíam o movimento, no sentido de as disputas não colocarem em causa a sua própria sobrevivência. As condições eram bastante desfavoráveis.

Em primeiro lugar, opunham-se, no seu interior, grupos de origem e formação muito diferentes, entre quadros urbanizados e cultos, que entendiam Moçambique como um todo, nas suas fronteiras estabelecidas (sem valorização da sua pertença a qualquer grupo étnico), e muitos militantes, e também dirigentes, que provinham de estruturas mais tradicionais e que tendiam a valorizar as reivindicações dos povos de onde provinham. Este conflito agudizou-se em torno da disputa do poder por Eduardo Mondlane, representante do entendimento moçambicano do papel da FRELIMO e Lázaro Kavandame, chefe Maconde, representante dos grupos étnicos do Norte de Moçambique, que se estendem pelo território da Tanzânia.

Este conflito principal só veio a resolver-se com a morte de Eduardo Mondlane, assassinado em Dar es Salem em 3 de fevereiro de 1969 por uma encomenda armadilhada (ação levada a efeito pela PIDE, polícia política portuguesa), e a consequente entrega voluntária às autoridades portuguesas de Lázaro Kavandame, receoso de ser acusado do assassínio do presidente.

A segunda questão essencial tem a ver com a estratégia propriamente militar.

Pela análise de situação, parece fácil compreender que a zona decisiva, tanto em termos político-militares, como do ponto de vista económico e social, era a zona central do território, distrito de Manica e Sofala, corredor das relações com a Rodésia (atual Zimbabué, unilateralmente independente em 1965, tendo no poder uma minoria branca) e região de atividades económicas essenciais e de presença da comunidade branca. Uma parte desta região, significativamente designada “corredor da Beira”, por assegurar as ligações do porto da Beira com a Rodésia, incluindo o caminho de ferro, a estrada e o oleoduto, representava, em termos militares, a zona decisiva do conflito.

O comando português, embora ciente desta circunstância, nunca formulou com clareza esse entendimento. A FRELIMO sempre teve em mente este objetivo, mas as circunstâncias e os fatores de decisão só muito tarde lhe foram favoráveis. Contudo, quando pôde dispor dessas condições, que alcançou em 1972, aproveitou-as de forma decisiva.

O comando português compreendeu o enorme avanço da FRELIMO muito tarde, quando outras circunstâncias já o impediam de traçar a adequada estratégia de oposição à sua penetração no coração do território, tanto mais que Portugal enfrentava uma guerra em três territórios, Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, mobilizando cerca de 170.000 homens.

A partir de então, sem que as forças portuguesas dispusessem de capacidade de manobra para fazer frente a este avanço, a vitória militar do movimento de libertação era uma questão de tempo. Estas circunstâncias vieram a influenciar o movimento militar que levou à Revolução Portuguesa, quando, em janeiro de 1974, a população branca oriunda desta zona central do território se manifestou contra a forma como as Forças Armadas portuguesas conduziam a guerra, apercebendo-se finalmente da proximidade do conflito militar.

Em resumo, a FRELIMO, no primeiro período da sua existência, teve de resolver conflitos internos até à sua estabilidade organizativa, o que só conseguiu em 1969, com a chegada de Samora Machel à presidência do movimento e a ascensão definitiva ao poder dos quadros mais conscientes dos objetivos nacionalistas.

Por outro lado, a força portuguesa presente no território não chegou a desenvolver uma estratégia militar destinada a impedir o acesso dos guerrilheiros à zona decisiva do território, focando a luta, em primeiro lugar no Norte, e em segundo lugar em torno da construção da grande barragem de Cahora-Bassa, na zona de Tete, e das linhas de apoio a essa construção.

  

6. A África e as nações

        Na África a sul do Sahara existia uma geração de líderes africanos que parecia capaz de assumir o desafio de mudança e de desenvolvimento dos novos países, de Nkrumah a Nyerere, de Lumumba a Senghor, que constituíam a primeira geração dos movimentos de libertação.

Também nas colónias portuguesas surgiram dirigentes de elevada craveira técnica e intelectual, como Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Eduardo Mondlane, Viriato da Cruz, os irmãos Pinto de Andrade, Aquino de Bragança, entre outros.

O itinerário desta primeira geração começou com o movimento descolonizador. É uma geração que regressa a África, depois dos seus estudos na Europa e um pouco por todo o mundo, que tem maior consciência da exploração a que estavam sujeitas as populações africanas, que aspira a dirigir os novos países que ela própria vai criar.

Esta geração de nacionalistas, herdeira das fronteiras estabelecidas na Conferência de Berlim, acabou por ter de destruir as estruturas tradicionais dos povos africanos, talvez de forma ainda mais radical e violenta do que os europeus tinham feito.

Os novos dirigentes nacionalistas não se integravam nas estruturas tradicionais dos povos, já não possuíam laços orgânicos com os seus grupos originários e não podiam, por isso, aspirar a serem seus chefes, nem estavam interessados nisso. O seu programa foi criar um novo país e integrar nele um novo povo, isto é, um somatório de povos sem o necessário cimento cultural comum. O cimento mais evidente para a primeira construção desse amálgama comum, assentava precisamente na luta de libertação.

O tribalismo era um perigoso concorrente para os novos nacionalistas, a quem disputava o poder. O tribalismo é em si mesmo um tipo de nacionalismo. Por isso foi combatido pelos dirigentes dos movimentos de libertação, por o considerarem contra os interesses dos povos e da sua libertação. Mas, na realidade, o tribalismo representava os tradicionais valores dos povos de África, questão que os novos dirigentes nacionais não puderam ultrapassar sem novos e extensos conflitos.

  

7. Moçambique e a construção de uma identidade nacional 

Construir uma identidade nacional foi (e continua a ser) um dos maiores desafios da geração que levou Moçambique à independência depois de dez anos de luta armada.

Em Moçambique, o grupo de Samora Machel, que sucedeu a Mondlane como presidente do movimento, irá conduzir a FRELIMO até à independência, ultrapassando, através de lutas fratricidas, todos os opositores. Este grupo pretendia iniciar uma revolução social, cujo paradigma de base era a luta de libertação nacional, mas trazendo associado o fim de criar um “Homem novo”. Tratava-se, em suma, de levar à prática as teorias da guerra revolucionária de subverter a ordem colonial e de eliminar a influência ocidental em território africano, mediante a aplicação de influências ideológicas próximas do marxismo‑leni­nismo.

Esta opção, juntamente com outras razões que devem ser consideradas, conduziu à guerra civil, pouco depois da independência. Foi uma guerra tão ou mais violenta que a guerra de libertação. Atingiu todo o país, e portanto também as regiões do Sul, onde a guerra da independência não tinha chegado, constituindo, para essas populações, mais numerosas que as do Norte, a única guerra que lhes restou na memória.

Mas a raiz da construção do primeiro nacionalismo e da consequente identidade comum, está na guerra de libertação. Socorremo-nos das palavras de José Luís Cabaço, membro do governo de transição de Moçambique, por parte da FRELIMO, entre setembro de 1974 e a independência, em junho de 1975, na sua tese de doutoramento, Moçambique – Identidade, Colonialismo e Libertação: “Opunham-se neste conflito [da FRELIMO com o poder tradicional] o protonacionalismo e a ideia de nação. Frente a frente foram-se polarizando dois planos de identidade coletiva: a) a conceção de uma independência confinada à própria região e comunidade etnolinguística (…); b) o processo prescritivo de uma nova identidade construída em torno da pertença a um território geográfico que aceitava as fronteiras coloniais, cuja identidade se devia ir estruturando pela participação numa tarefa comum, a luta armada, e pela identificação num objetivo comum, a independência. (…) o movimento de libertação como embrião do Estado”[1].

No Moçambique de hoje continua a discutir-se o problema, na consciência da sua importância para qualquer estratégia nacional. Aliás, do programa do governo para o período 2010-2014 consta, como objetivo central, a “Consolidação da Unidade Nacional”, definida esta da seguinte forma: “A unidade nacional, que foi um dos fatores decisivos da vitória do povo moçambicano na luta contra a dominação estrangeira, constitui uma das prioridades centrais da ação política do Governo, mormente na promoção da moçambicanidade, autoestima individual e coletiva e da valorização da nossa diversidade e dos nossos heróis e talentos”[2].

Mas não devemos deixar de ouvir a voz daquele chefe tradicional entrevistado por Alcinda Honwana, em 2002, que lhe disse: “Com o fim dos chefes tradicionais (…) as pessoas deixaram de usufruir da proteção dos antepassados e as coisas começaram a correr mal. (…) Toda a vida da comunidade ficou destruída, pois já não havia respeito pelos velhos, respeito pelos antepassados, respeito pelas nossas tradições”[3]. 

Em suma, a ideia de liberdade, associada à luta pela independência, traz consigo, frequentemente, o problema da inexistência da coesão nacional para, uma vez obtida a vitória, pôr em andamento um programa político de progresso e de paz. O caso de Moçambique não é, nesse aspeto, diferente de muitos outros, mesmo daqueles que, historicamente, poderiam ter obrigação de construir, com mais solidez e mais rapidamente, um projeto comum de unidade nacional. Tal como nesses casos, a frase fez-se Moçambique, agora é necessário fazer os moçambicanos é o perfeito paradigma da dificuldade existente na construção de novas unidades políticas, sempre que o levantamento do Estado precede a consolidação da Nação.

 

Muito obrigado.

 


[1] S. Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 320.

[2] Programa Quinquenal do Governo para 2010-2014, aprovado em 5 de abril de 2010 pela Assembleia da República de Moçambique.

[3] Espíritos vivos, tradições modernas. Maputo: Promedia, 2002, p. 171.


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