segunda-feira, 24 de julho de 2017

ARQUIVOS PORTUGUESES - UMA MUDANÇA NOTÁVEL


Em 29 de Novembro de 2006, a empresa de Almada “SHP, Consultoria Informática Lda.” levou a cabo as suas II Jornadas InfoGest/ArqGest, tendo-me convidado a apresentar uma comunicação sobre os arquivos militares e sobre as relações que o Arquivo Histórico Militar estabeleceu com a Empresa para construir a sua aplicação informática para tratamento da documentação.

Aceitei com muito gosto, apresentei um ponto de situação que está hoje bastante desatualizado, mas não deixa de ter importância por ter marcado uma época na mudança dos Arquivos em Portugal. A empresa SHP continua hoje empenhada nos seus objetivos e voltei a ter uma relação com ela passados mais de dez anos, como explico mais à frente.

Em primeiro lugar, recordo aqui o texto da minha comunicação de 2006.


1. Os arquivos militares

Quero dizer-vos que estou aqui com muito gosto. Em primeiro lugar porque esta iniciativa representa um enorme esforço dos seus organizadores para divulgar uma acção ímpar a favor dos arquivos portugueses; depois porque estou ligado desde o início ao desenho e à consolidação deste grande objectivo de construção de um projecto informático português de grande qualidade, o InfoGest, tema das Jornadas que aqui nos reúnem; finalmente porque, como director do Arquivo Histórico Militar vai fazer 14 anos, sei que foi o InfoGest que fez a diferença no projecto do Arquivo, obrigando a maior parte dos outros sectores a acompanharem a mudança e a assumirem a necessidade de se incluírem na modernização.

É esta última circunstância que me leva a falar-vos, em primeiro lugar, dos arquivos militares, condição essencial de investigação académica e científica sobre os assuntos respeitantes às Forças Armadas e à sua relação com a História de Portugal.

Ao contrário do que é normalmente pressuposto, o Estado português do pós-25 de Abril entende que a administração pública é aberta e transparente, não havendo motivos para fixar prazos temporais genéricos para a abertura da documentação ou dos arquivos, com excepção de casos especiais. Toda a documentação produzida pela administração pública tem sido considerada como imediatamente acessível, salvo se estiver abrangida pelas excepções previstas na lei actual. O Estado, obrigado a garantir sistemas de arquivos eficientes, tem a obrigação de disponibilizar o acesso ao seu labor administrativo e à sua própria memória, proporcionando dessa forma o exercício de um direito de cidadania.

Ou seja, o Estado e as suas instituições não têm que presumir intenções de quem consulta a documentação resultante das suas actividades, ou de como utiliza e se serve da informação nela contida. São apenas obrigados a resguardar o que a lei presume como de conhecimento inconveniente ou lesivo para outrem, durante um prazo previamente definido. 

A estas considerações gerais, que me parecem claras e suficientemente prudentes, não queria deixar de acrescentar uma nota pessoal. 


Portão de entrada para o Arquivo Histórico Militar,
em Santa Apolónia.

Como director do Arquivo Histórico Militar e responsável pela parte histórica do Arquivo da Defesa Nacional depositado em S. Julião da Barra, contactei nestes dois Arquivos com centenas de investigadores e dezenas de jornalistas. Sempre procurei compreender as suas necessidades de conhecimento, de acesso à documentação, de informação necessária aos seus objectivos de investigação. Tenho procurado interpretar a lei em favor da investigação, mais do que em favor da tradição de reserva, embora tendo sempre em conta o que nela é imperativo. Pois nunca, mas nem num único caso, alguém utilizou abusivamente qualquer informação indevida ou qualquer erro de acesso.

Os leitores dos Arquivos, especialmente aqueles que frequentam pessoalmente as suas salas de leitura, com o fim de se informarem, fundamentarem as suas teses ou basearem as suas reportagens ou reconstituições históricas, são pessoas de enorme honestidade intelectual, de profundo e inteligente sentido patriótico, de sólidas convicções científicas e profissionais. Eu pelo menos assim o presumo e assim o tenho sentido.

Devo também afirmar uma evidência que me parece relevante – a administração do Estado deve ser transparente e as instituições cumpridoras não podem recear a verdade. A sociedade moderna e os cidadãos conscientes e livres exigem explicações claras, compreensíveis e sem subterfúgios. Os representantes do povo e os encarregados da administração pública devem, em permanência, explicações abertas aos cidadãos que os sustentam. Por isso os Arquivos não são esconderijos, são casas de portas e janelas abertas; por isso a administração pública não pode ser abusivamente secreta, antes liminarmente transparente.

Quero dar-vos um exemplo concreto. Respeita aos arquivos da guerra colonial. Como todos sabem, a acção das Forças Armadas portuguesas em Angola, na Guiné e em Moçambique na parte final do regime do Estado Novo, foi decidida pelo Estado português, na forma objectiva que então assumia – era de sua natureza agir sem publicidade, sem transparência, sem igualdade, sem justiça e sem imparcialidade (estas palavras estão hoje em vigor, como princípios de acção da administração pública). A acção militar foi por isso considerada como um acto secreto. Para a administração pública não havia guerra, na sociedade não havia discussão.

As Forças Armadas Portuguesas estiveram empenhadas numa guerra de silêncios.

Imagem da Guerra Colonial retirada do Portal InfoGestNet.

É por isso que, neste contexto, ganha relevo que o Exército, logo em 1995 (20 anos após as últimas operações militares) e pouco depois da publicação da lei do acesso aos documentos da administração pública, admitisse a abertura dos arquivos sobre a guerra, aos quais deviam aplicar-se apenas as exclusões previstas na legislação em vigor. Foi esse passo que possibilitou a recolha de muitas das informações necessárias à abordagem de algumas temáticas que felizmente têm vindo a público. É isso que vem impulsionando a investigação sobre esse importante período da história militar recente em Portugal. É isso que sustenta a opção por diversas teses de doutoramento e outras, que hoje se encontram em curso. 

Não me parece necessário referir os temas destas teses ou a sua importância. O que é necessário evidenciar é que só a disponibilização (aliás obrigatória) dos arquivos, possibilita essa investigação; e que essa investigação valoriza e consolida o conhecimento da memória colectiva dos povos.

Mas nem tudo está bem em Portugal, no que respeita aos arquivos. O último inquérito efectuado pelo Arquivo Nacional (Torre do Tombo) “descobriu” mais de 700 Km (digo bem, 700 Km) de documentação respeitante à administração pública, não integrada em nenhum arquivo histórico e em parte significativa completamente abandonada, como a comunidade arquivística muito bem sabe.

Nestas circunstâncias, parece-me óbvio que as Forças Armadas só terão a ganhar se souberem participar na construção de uma consciência colectiva da sua missão (no período da guerra, no 25 de Abril, no período posterior e na actualidade), permitindo e incentivando o conhecimento de si próprias.


2. O Arquivo Histórico Militar

Quando iniciei as minhas funções como director do Arquivo Histórico Militar em 1993, não havia ali um único computador, não se punha a hipótese de utilização de recursos informáticos nem se reconheciam as vantagens da construção de bases de dados. O sistema de arquivos do Exército estava bloqueado, não havia pessoal qualificado e não se utilizavam normas arquivísticas modernas.

O percurso que fizemos até aqui será melhor julgado no futuro, mas não quero deixar de vos apresentar um balanço, agora que estou prestes a deixar o Arquivo.

A primeira grande preocupação que tivemos foi a necessidade de elaborar um plano estratégico a cinco anos, cujos objectivos contemplaram as principais preocupações da época – normalização do sistema de arquivos do Exército, uso de meios informáticos e de programas adequados, qualificação do pessoal e melhoria e alargamento das instalações, em especial de novos depósitos. 

No final deste período, no ano 2000, tínhamos publicado a Portaria do Exército, com o Regulamento de Conservação Arquivística do Exército, tínhamos aumentado o quadro de pessoal efectivo de 8 pessoas não qualificadas para 25, sendo 5 técnicos superiores de Arquivo, tínhamos formado no Exército 16 técnicos profissionais e cerca de 200 pessoas com um curto estágio de 12 horas, tínhamos alargado as instalações de depósito para o dobro do existente antes e finalmente tínhamos resolvido todos as questões relacionadas com o uso de novas tecnologias – ligação à rede do Exército, rede interna, acesso a partir da Sala de Leitura, computadores, e, last but not least, tínhamos construído, em parceria com a empresa SHP, a primeira versão do InfoGest/ArqGest, como aplicativo informático de gestão dos fundos documentais.
  
Hoje, o Arquivo Histórico Militar tem percorrido um caminho sólido. O sistema de transferências e incorporações funciona e é regularmente inspeccionado; tem sido possível um ritmo razoável de abertura de novos fundos; ultrapassará em breve as 100.000 descrições e um milhão de imagens; tem publicados 60 IDD dos fundos antigos (catálogos e inventários de documentos); tem disponibilizado e continuará a disponibilizar o acesso ao seu património através da Internet, com auxílio do InfoGestNet, de que falaremos nestas Jornadas.


3. O InfoGest/ArqGest

Antes de vos falar do que representou para o Arquivo Histórico Militar a adopção de uma aplicação informática exigente, desejo prestar uma homenagem pública à empresa SHP e aos seus responsáveis. Eles têm mantido uma persistência impressionante, em favor de uma solução portuguesa e em português para a gestão documental de que a administração pública e também privada tanto carece; eles têm investido até ao limite na melhoria da solução que oferecem, esperando por um reconhecimento que ninguém nega, mas que poucos assumem. Esta aplicação já deu provas, e as Jornadas que aqui nos reúnem são disso exemplo. Aqui vamos falar sobre os novos desenvolvimentos e os novos caminhos da gestão documental – a gestão integrada, como paradigma do arquivista que sonha, a certificação digital, como garante da “realidade” de um mundo imaterial, a transferência de suporte com a salvaguarda das provas das operações efectuadas, através dos metadados, para além de outros assuntos que a todos nos preocupam e que constam do nosso programa de hoje. Não posso por tudo isto deixar de manifestar o meu reconhecimento à SHP, pelo empenho, competência e profissionalismo dos seus quadros, que tanto têm contribuído para a melhoria da questão do tratamento informático do património documental português. Muito obrigado, pois.

Cartaz de publicidade do Sistema de Pesquisas
InterArquivos (InfoGestNet).


Só mais uma palavra sobre a relação do Arquivo Histórico Militar e da aplicação InfoGest/ArqGest.

Quero testemunhar-vos como, à medida que o InfoGest foi penetrando no trabalho quotidiano do Arquivo, ele se tornou a peça essencial da nossa actividade interna. Todos sabem que há muitos problemas nos Arquivos que não se resolvem com a Informática, mas esta pode fazer uma grande parte desse trabalho. A nós obrigou-nos a decidir sobre a organização e estrutura do depósito; a codificar todo o sistema de classificação; a normalizar toda a descrição, indexação e utilização de linguagem; a tipificar os instrumentos de descrição arquivísticas, como catálogos, inventários, guias, etc.; a decidir sobre o acesso à informação e aos documentos; a participar no sistema de pesquisa inter-Arquivos através da Internet, o InfoGestNet, que é hoje o mais avançado sistema de pesquisa cruzada entre Arquivos, e sobre o qual teremos oportunidade de ouvir falar nestas Jornadas.

O último passo para tornar o InfoGest um produto de alta qualidade e um projecto capaz de mudar radicalmente o desempenho dos arquivos que o utilizam foi o InfoGestNet, aqui apresentado nas I Jornadas. Passados estes anos, já não temos dúvidas que a disponibilidade dos fundos documentais através da Internet, num sistema de “Pesquisa Inter-Arquivos”, veio indiciar uma transformação do panorama da investigação histórica em Portugal. A capacidade que este sistema tem demonstrado deveria ser suficiente para convencer aqueles que ainda estão renitentes.

O que eu quero dizer a todos é isto – é um facto que temos em Portugal e em português uma aplicação informática de alta qualidade, barata, amigável e experimentada. O que nos impede de a usarmos para alcançar o patamar seguinte, ligando as comunidades arquivística e científica?

Faz algum sentido a situação actual, em que se esboça um modelo de rede de arquivos, sem a participação dos principais arquivos?

Queremos contudo que fique claro que não preconizamos um sistema único. Apenas achamos que se torna necessário, a bem daqueles que servimos, membros da comunidade académica e científica ou simples cidadãos, efectuar a integração técnica dos vários sistemas, excluindo aqueles que não dão respostas de qualidade ou que acabaram por se tornar demasiado onerosos.
  
Não alongo mais as minhas palavras. Só queria dizer-vos que me orgulho daquilo que fizemos no Arquivo Histórico Militar. Mas tal não seria possível se não tivesse sido acompanhado por uma equipa empenhada, uma equipa fantástica que se entusiasmou com o projecto que desenvolvemos e continuamos a desenvolver no Arquivo Histórico Militar. O nosso objectivo é servir os cidadãos, salvaguardando a memória documental do Exército e criando as melhores condições para uma relação fácil e produtiva.

Sei que o nosso trabalho será continuado e acredito que a solução que ajudámos a construir e que hoje mais uma vez vai ser objecto destas Jornadas, será a solução de futuro para os Arquivos portugueses.

E tenho a certeza que a comunidade arquivística saberá dar uma resposta cabal aos desafios que enfrenta, através de passos concretos que resolvam problemas concretos, sempre no respeito do seu desígnio ético – cumprir os seus deveres de cidadania e de profissão.


As coletividades centenárias de Almada

PS: Este ano de 2017 fui convidado pelos responsáveis da empresa SHP, que continua na sua luta pela qualidade da informação arquivística, a acompanhar um projeto posto a concurso pela Câmara Municipal de Almada relativo ao tratamento arquivístico dos fundos documentais das onze coletividades centenárias do concelho. Sendo um trabalho aliciante como se imagina, aceitei e estamos a construir uma base de dados muito importante para o conhecimento da história das coletividades mais antigas de Almada, que guardam muita da memória das classes trabalhadoras do concelho.

Imagem de um documento pertencente ao fundo documental
da Associação de Socorros Mútuos Primeiro de Dezembro.

Nesta altura já estão on-line os arquivos relativos a três delas, podendo ser consultados na plataforma InfoGestNet da SHP. São elas: Associação de Socorros Mútuos Primeiro de Dezembro, Sociedade Recreativa Musical Trafariense e Clube Recreativo União e Capricho.

Imagem de um documento assinado pelo Rei D. Carlos, pertencente
ao fundo documental da Sociedade Recreativa Musical Trafariense.

Imagem de um documento do fundo
pertencente ao Clube Recreativo União e Capricho.

Notas:
1.   Para entrar na plataforma: http://www.infogestnet.com/
2.   Clicar em “Todos os Arquivos”
3.   Marcar “Arquivo Histórico de Almada – Coletividades do Concelho de Almada” (estão por ordem alfabética)
4.   Clicar em “Pesquisa Orientada” (em cima, à esquerda)
5.   Abrir a árvore e aceder ao classificador temático de cada coletividade
6.   As imagens só estão acessíveis no último nível (Processos)

7.   Outros tipos de pesquisa estão também disponíveis, mas deixo isso à curiosidade de cada um.

Nota final: Hoje o Arquivo Histórico Militar já não usa a aplicação informática InfoGest/ArqGest, embora a sua base de dados continue a estar disponível a partir do Portal InfoGestNet, embora com limitações.


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