Em 2009, participei num colóquio do
Instituto de Defesa Nacional, onde apresentei uma comunicação com o título
“Guerra Colonial – Uma Aliança Escondida”. O assunto respeitava ao acordo
“Alcora” que foi assinado em 1970 entre Portugal, a África do Sul e a Rodésia.
Mais tarde, eu e o Carlos de Matos Gomes publicámos um livro onde desenvolvemos
o tema e que se chama “Alcora, o Acordo Secreto do Colonialismo”. Esta foi a
primeira vez que um público mais exigente ouviu falar de tal acordo e alguns
dos assistentes tiveram dificuldade em aceitar a realidade. Mas nós já tínhamos
falado no assunto num colóquio em Faro em 2008, aí sim a primeira vez que o
assunto foi tratado em público.
Depois a investigação seguiu o seu
curso e hoje é assunto bastante debatido, embora deixe ainda perplexos muitos
dos que tomam contato com esta face do regime português.
O texto foi depois publicado na revista
“Nação e Defesa” e fica aqui com um novo título.
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Capa da 2ª edição do livro "Alcora, o Acordo
Secreto do Colonialismo", 2016. |
1. Na
primeira fase da guerra colonial, o regime português estava convencido que
seria capaz de encontrar uma solução para a agitação interna de Angola e de construir
uma via capaz de extinguir o problema. Portugal era um país colonial experiente
e, de uma forma geral, sempre encontrara soluções, mesmo quando foi necessário
mudar.
Para
o regime, os acontecimentos de Angola eram mais uma expressão da influência
externa, vinda do Congo, e fomentada pelo comunismo, do que uma vontade saída
das elites negras angolanas, que o regime bem sabia serem praticamente
inexistentes.
A
equipa que foi nomeada, com Venâncio Deslandes para Angola, Sarmento Rodrigues
para Moçambique, e Adriano Moreira para o Ministério do Ultramar é um sinal
inequívoco de uma estratégia que parece pensada e adequada à situação, tanto
quanto isso é possível num regime de compromissos permanentes, embora no âmbito
exclusivo dos seus apoiantes. Estes três homens eram conhecedores, moderadamente
autonomistas, com um pensamento de alguma coerência entre si. O regime parecia
apostado em encontrar uma solução, dentro do quadro da sua política ultramarina
e dos limites ditados pelo regime: autonomia controlada, prevalência do poder
português (branco se quisermos), salvaguarda dos interesses das grandes
empresas portuguesas (muita vezes contraditório com os interesses da comunidade
branca em geral).
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Embarque de tropas em Lisboa para Angola, 1961 (TT). |
Mas
houve dois factos que não tinham sido considerados na análise: a raiz dos
movimentos autonomistas, que se filiavam na mudança do mundo dependente (incluindo
a guerra revolucionária) e a falta de cultura internacional das elites brancas
das colónias (que imaginavam a perenidade do seu estatuto).
Este
equívoco durou dois anos. Em 1963 estava por terra. Depois disso nunca mais o
regime conseguiu conceber ou admitir uma doutrina coerente e um plano adaptado à
realidade, mesmo sob o seu ponto de vista. A política ultramarina do regime
transformou-se num jogo de equívocos.
E
como, apesar de tudo, as políticas são assumidas por pessoas e dependem, em
grande parte, do seu próprio pensamento, do seu empenho e tantas vezes do seu
carisma, a condução da guerra (das guerras) teve mais a ver com as
personalidades do que com o regime. Mas nunca devemos exagerar a autonomia das
personalidades em relação à natureza do regime. Nenhum dos comandantes dos teatros
de operações que se seguiram se manifestou contrário ou sequer crítico do
sistema político (e muito menos o fizeram os representantes da administração
colonial).
De
alguma forma é necessário esperarmos vários anos para termos três
comandantes-chefes com três soluções para a guerra – Spínola na Guiné, Kaúlza
de Arriaga em Moçambique e Costa Gomes em Angola. São três
soluções muito diferentes. Mas, na conjugação das suas estratégias com a
intervenção do poder de Lisboa (já assumido por Marcelo Caetano), nenhuma
constituiu uma solução para o problema colonial. A solução de Spínola, ousada
para os limites do regime, acabou recusada por Marcelo Caetano; a solução de
Kaúlza de Arriaga demonstrou ser nula do ponto de vista político e desastrosa
do ponto de vista militar; a solução de Costa Gomes, conseguindo inegáveis
êxitos militares, deixou de fora a questão essencial da solução política.
2. Esta
situação também tem a ver com as relações entre as Forças Armadas e o regime. Não
é necessário alongar este tema para compreender o papel das Forças Armadas numa
ditadura. Elas são sempre um suporte essencial do poder. Os conflitos no
interior das Forças Armadas, ou destas com outros elementos do sistema, são
conjunturais e traduzem-se em lutas de facções que não se empenham em levar
longe demais os seus posicionamentos. Fazê-lo, configuraria o questionamento do
regime.
No
caso português, as Forças Armadas foram fiel instrumento da política do Estado
Novo. A oposição à transformação interna do regime e à reformulação da sua
política colonial foi sistematicamente participada pelas Forças Armadas, tanto
em termos de definição de princípios e alternativas, como na sua execução. Não
quer isto dizer que não tenha havido oposições individuais, desconforto e
crítica interna, mas nunca chegou a configurar-se a unidade militar suficiente
para inflectir a atitude de apoio ao regime.
Movimentos
significativos de oposição ao regime só aconteceram com a tentativa de golpe
militar de Botelho Moniz em 1961 e, claro, com o movimento dos capitães, a
partir de 1973.
3. E
se internamente não seria de esperar uma consistente alternativa gerada na
sociedade ou no seio das forças armadas, talvez se pudesse esperar que a
comunidade internacional tivesse sido mais firme com a ditadura portuguesa, em
especial depois do início da guerra colonial ou, ao menos, depois da sua opção
pela resistência a todo o custo.
Nas
relações do regime português com o mundo, no período da guerra, podemos considerar
que, de uma forma geral, a grande maioria dos países foram extremamente hostis
ao regime português. E que, dentro deste mundo hostil, se situaram os países do
bloco socialista, os países do Terceiro Mundo (afro-asiáticos) e os países
nórdicos.
Mas
houve também, como suporte da sobrevivência do regime, os países que podemos
considerar indulgentes (e também colaborantes), como a Alemanha, a França, a
Inglaterra, outros países europeus e os Estados Unidos.
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Dean Rusk, secretário de estado americano em Lisboa (TT). |
Apesar
disso, os Estados Unidos ocupam um lugar à parte, nas suas relações com
Portugal, pelos múltiplos compromissos resultantes da sua condição de super-potência.
Pelo que devemos distinguir vários períodos que, tendo a ver com as sucessivas
administrações de Kennedy, Johnson e Nixon, nem sempre corresponderam
exactamente a esta lógica.
Mas,
para além dos países hostis e indulgentes/colaborantes, devemos considerar os
chamados países “irmãos”, como a Espanha e o Brasil (este depois de 1964),
inegáveis suportes morais e materiais da sua política colonial, apesar das
diferentes opções de cada um.
Finalmente,
do que gostaríamos de falar era de dois países que a linguagem local designava
por “primos” – a África do Sul e a Rodésia.
4. Vamos
partir de um princípio. O regime português tinha uma doutrina oficial em
relação às suas colónias – Portugal era um país pluricontinental e
multirracial. A África do Sul, sem rebuço, assumia a sua política oficial do
chamado “desenvolvimento separado”, na verdade, traduzido no “apartheid” e na
supremacia da raça branca. A Rodésia, depois da proclamação unilateral da Independência
em 11 de Novembro de 1965 (UDI) tornara-se um país pária em relação à
comunidade internacional, não chegando a ser reconhecido por nenhum outro país.
Nem Portugal se atreveu a tanto.
Ora
estes três países conceberam e assinaram uma Aliança política e sobretudo
militar, a que eufemisticamente chamaram “Exercício Alcora”.
Tudo
o que vamos abordar é extremamente surpreendente, como o foi para nós, quando
consultámos a documentação sobre esta íntima relação.
Um
primeiro aviso – todos os contactos e documentos Alcora foram classificados de
“Muito Secreto” ou “Top Secret”, e todos sabemos quais os procedimentos
relativos a este nível de segurança. Em princípio só participavam pessoas
devidamente seleccionadas, que ficavam impedidas de referir qualquer
envolvimento. Chega a ser espantoso como a maior parte dos militares nunca se
apercebeu da natureza dessas relações; e é intrigante tentar perceber como os
comandos portugueses iam dar a conhecer ao mundo, ao país e às Forças Armadas,
a sua opção pela aliança com os países vizinhos (foram os representantes
portugueses que sempre recusaram baixar o nível de segurança destas relações).
A
participação de meios e forças sul-africanas e rodesianas em operações em
Angola e Moçambique eram tidas como informais, de ajuda eventual, em situações
que também interessavam à defesa destes países.
Tudo começou com uma longa
carta de Salazar a Verwoerd, primeiro-ministro sul-africano, em Agosto de 1963:
“Nós estamos quase sós em África a defender a civilização do ocidente; a guerra
está longe das vossas fronteiras se Portugal puder resistir; há interesse
ocidental e sul-africano em que tal hipótese se não verifique; todas as formas
de cooperação com Portugal são muito úteis à nossa resistência e à vossa defesa
própria”.
Quais
foram os antecedentes, destas relações? Em primeiro lugar, o apartheid. O
apartheid foi estabelecido em 1948, como desenvolvimento separado de raças,
pertencendo a União Sul-Africana à Commonwealth; é por isso que a Inglaterra
assume a responsabilidade de alterar o regime de apartheid; o massacre de
Sharpeville, em Março de 1960, representa um endurecimento do regime
sul-africano, mas também o crescimento da condenação internacional; Macmillan
critica duramente a posição sul-africana na cidade do Cabo em Outubro de 1960
(discurso dos ventos da mudança, ou ventos da História); o referendo sobre o
corte com a monarquia e a declaração da república, em 5 de Outubro de 1960,
consegue uma vitória de 52%; em consequência, concretiza-se a saída da
Commonwealth e a declaração da República, em 31 de Maio de 1961; em 6 de
Novembro de 1962, a
ONU condena o regime sul-africano; no ano seguinte, em 7 de Agosto, a ONU
decreta o embargo de armas à República da África do Sul.
A carta
de Salazar surge num oportuno momento, quando se completam várias medidas de isolamento
do regime sul-africano, exactamente em finais de Agosto de 1963. Em
consequência destas relações, Portugal e a África do Sul, assinam, em Outubro
de 1964, os primeiros acordos - Emprego de trabalhadores de Moçambique nas
minas da África do Sul e acordo sobre o rio Cunene.
Entretanto,
a 11 de Novembro de 1965, os colonos ingleses proclamam a independência unilateral
da Rodésia. A declaração unilateral de independência da Rodésia teve um impacto
decisivo na evolução da situação política e militar em Moçambique durante toda
a guerra, mas, além de condicionar a situação militar, em particular na zona de
Tete, a instauração de um regime de minoria branca na Rodésia ao lado do regime
de apartheid da Africa do Sul,
conduziu a uma aliança de interesses com Portugal. Estes acontecimentos
desembocaram, em Dezembro de 1965, no embargo internacional ao comércio com a
Rodésia, em que o bloqueio do porto da Beira não passou de uma comédia de
enganos… Salazar manifestou à Rodésia e aos seus dirigentes o seu apoio.
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Cidade do Luso, cerca de 1970, uma das bases "Alcora". |
5. Nesta
época, a política de defesa da África do Sul assentava nos seguintes
princípios:
·
Criação de uma capacidade autónoma de defesa;
·
Programa nuclear;
·
Política de alianças regionais e com outros
regimes ou Estados vizinhos.
A
partir de Março de 1967 passaram a efectuar-se reuniões regulares entre
delegações de Portugal e da África do Sul, com vista à construção de Cabora
Bassa.
Em Setembro
de 1967 o general Câmara Pina, chefe do Estado-Maior do Exército, mais uma vez
em momento oportuno, apresenta às autoridades militares da África do Sul um
memorando sobre as necessidades de Portugal: viaturas blindadas, viaturas de
transporte, granadas, minas, postos de rádio e medicamentos.
Em Abril
de 1968 foi dado um passo essencial para as relações militares de Angola com o
ministério da Defesa da África do Sul – a criação dos Centros Conjuntos de
Apoio Aéreo entre as forças portuguesas de Angola e as forças sul-africanas.
No
início da guerra, os regimes brancos da África do Sul e da Rodésia prestaram um
apoio limitado às forças portuguesas. Esse apoio foi aumentando à medida que
estes dois regimes começaram a verificar a incapacidade de Portugal de
controlar a situação. Estavam preocupados com o seu futuro no caso de uma
derrota de Portugal e a partir de 1968 intensificaram os seus apoios,
fornecendo material e até unidades de combate. Em 1968, os sul-africanos
começaram por fornecer helicópteros Alouette III para serem operados por
pilotos portugueses, mas esse apoio evoluiu rapidamente para o fornecimento de
tripulações e finalmente foram destacadas companhias das Forças de Defesa da
África do Sul (SADF). Estas unidades terrestres e aéreas operavam em conjunto
com forças portuguesas, a partir das bases de Cuíto-Canavale e Gago Coutinho,
onde foram criados Comandos Conjuntos de Apoio Aéreo (CCAA), em Abril de 1968.
O
conjunto de acções de apoio da África do Sul, efectuadas entre 1968 e 1970 foi
chamada Operação Bombaim e viria a ser apresentada em 1970, como justificação
da necessidade de alterar os pressupostos das relações militares entre Portugal
e a África do Sul.
Entretanto,
em 10 de Julho de 1968 foi efectuada a adjudicação provisória pelo Governo
português da barragem de Cahora Bassa, em Moçambique, ao consórcio ZAMCO, liderado pela África do Sul. Esta
foi a última importante decisão sob a presidência de Salazar.
Como
primeiro acto concreto de relevância do governo de Marcelo Caetano, devemos
assinalar a assinatura de um novo acordo entre Portugal e a África do Sul para
aproveitamento dos recursos hídricos da bacia do Cunene, em 21 de Janeiro de
1969. Este acordo foi assinado na sequência do anterior acordo de 1964 e, em
termos técnicos, resultava da evolução nos estudos de desenvolvimento do
projecto entretanto realizados. Em termos políticos este novo acordo
representava o estreitamento das relações entre Portugal e a África do Sul, as
quais passavam por estes grandes empreendimentos hidroeléctricos, do Cunene e
de Cahora Bassa.
E
logo em 23 de Março do mesmo ano visitaram Lisboa o ministro da Defesa da
África do Sul, P. Botha, e o comandante das Forças Armadas, general Fraser. Os
dois dirigentes sul-africanos chegaram a Lisboa para uma visita de três dias,
vindos de França, onde tinham assistido ao lançamento à água de três submarinos
destinados à RAS. Era a primeira visita de altos dirigentes da África do Sul a
Portugal depois da tomada de posse de Marcelo Caetano e a retribuição da visita
de Sá Viana Rebelo a Pretória. A África do Sul desejava conhecer as intenções
do homem que substituíra Salazar.
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Guerrilheiros do MPLA no Leste de Angola. |
Durante
o governo de Marcelo Caetano a evolução da situação militar em Angola e,
principalmente, em Moçambique forçou o estreitamento das relações de Portugal
com a África do Sul, especialmente no campo militar e dos serviços secretos. No
entanto, a publicitação da existência de um eixo branco funcional
Lisboa-Pretória-Salisbúria, como pretendia a África do Sul, esbarrou sempre no
prurido português de se identificar publicamente com os dois regimes
segregacionistas.
De
forma mais clara efectuou-se, em 19 de Setembro de 1969, a assinatura do
contrato de construção da barragem de Cahora-Bassa com o consórcio ZANCO, formado por empresas portuguesas,
sul-africanas, alemãs, francesas e suíças, a que se juntaram interesses
ingleses e americanos.
Mas
foi em 1970 que a natureza das relações entre Portugal e a África do Sul
iniciará uma profunda transformação, depois de uma reunião de alto nível em
Pretória, entre delegações dos dois países, efectuada em 4 de Março, para um
ponto de situação das relações militares entre ambos, focando em especial os
territórios de Angola e de Moçambique.
A
delegação da África do Sul era chefiada pelo comandante das Forças de Combate
Conjuntas, tenente-general C. A. Fraser, que mantinha relações muito estreitas
com as autoridades militares portuguesas, quer em Portugal, quer em Angola e
Moçambique. Neste encontro, a África do Sul fez um longo ponto de situação das
relações com as forças armadas portuguesas, em especial no sul e sueste de Angola,
bem assim como apresentou uma perspectiva de colaboração futura.
Em
primeiro lugar, foi feito pela África do Sul um balanço das relações mantidas
com Angola depois de 1968, através da “Operação Bombaim”, especialmente
traduzida no apoio aéreo à acção das forças portuguesas no terreno. Como
afirmava o representante sul-africano, “A Força Aérea Sul-Africana tem estado a
apoiar os Portugueses, no Este e Sudeste de Angola, em apoio directo e
indirecto, desde Junho de 1968”.
De
acordo com o quadro dos apoios concedidos, tal empenho cifrava-se em cerca de
7000 horas em apoio directo e 500 horas de apoio indirecto. A que se deveria
acrescentar a manutenção de uma média de 18 oficiais e de 54 outras patentes em
apoio à operação só da Força Aérea, para além de outros 150 homens que
asseguravam o apoio de retaguarda.
Os
resultados de tão profundo empenhamento não poderiam considerar-se brilhantes,
pelo que se impunha uma revisão geral das condições de cooperação com as forças
portuguesas, razão do encontro entre os representantes de ambos os países. A
África do Sul propôs que se discutisse “Um Plano de Defesa para a África
Austral”, apresentando desde logo o seu ponto de vista, em conferências
divididas pelos seguintes temas:
1ª
Parte – A situação militar na África Austral, com referência especial para a
República da África do Sul;
2ª
Parte – A situação no Este e no Sueste de Angola – Distritos do Moxico e
Cuando-Cubango;
3ª
Parte – Plano de Defesa para a África Austral;
4ª
Parte – A República da África do Sul na condução global da campanha no Sueste
de Angola.
Relativamente
ao plano de defesa da África Austral, a questão a que deveria responder-se era
a de saber como “fazer face a um inimigo comum”. E para isso era necessário um
plano comum de utilização das tropas disponíveis de forma coordenada e
planeada.
Este
encontro, seguido da visita do primeiro-ministro da África do Sul, John
Vorster, a Portugal, em 5 de Junho de 1970, levaram à assinatura de um acordo de
base, em 14 de Outubro de 1970, orientador das conversações tripartidas entre
Portugal, a República da África do Sul e a Rodésia. O acordo, designado
“Exercício Alcora”, foi aprovado pelo ministro da Defesa de Portugal quase
imediatamente, em 28 de Outubro de 1970; e veio a ser confirmado no ano seguinte
pelos ministros da Defesa da África do Sul e da Rodésia, respectivamente em 12
de Maio e em 26 de Julho.
As
conversações para o acordo tiveram lugar em Pretória, entre 7 e 9 de Outubro.
As delegações militares de Portugal e da África do Sul eram chefiadas
respectivamente pelo coronel Rocha Simões, director da 5ª Divisão do SGDN e
pelo brigadeiro Greyvenstein, director do planeamento estratégico do Ministério
da Defesa.
Aí
ficou esclarecido que “o objectivo do Exercício Alcora consiste em investigar os
processos e meios de conseguir um esforço coordenado tripartido entre Portugal,
Rodésia e África do Sul, tendo em vista fazer face à ameaça mútua contra os
seus territórios na África Austral”.
No
documento assinado a 14 de Outubro são mencionados os assuntos a considerar
para discussão futura, destacando-se, entre outros:
-
Estudo da ameaça;
-
Elementos de Estratégia;
-
Táctica e normas de execução permanente em combate;
-
Informações;
-
Cartografia;
-
Telecomunicações;
-
Transportes;
-
Logística;
-
Aquisição de equipamento;
-
Guerra psicológica.
O modus operandi proposto previa que,
depois de conseguido o acordo para cada assunto, fosse nomeada uma comissão
conjunta. E que acima das comissões para os diversos assuntos, se previsse
desde logo uma comissão militar de alto nível, com “autoridade para estabelecer
políticas, definir orientações e coordenar a acção das subcomissões”.
O
acordo previa que, depois do documento ser aprovado pelas autoridades dos três
países, se realizasse uma nova reunião, desde logo marcada para a África do
Sul. Veio a ocorrer no período de 30 de Março a 1 de Abril de 1971, em
Pretória.
Estas
reuniões de alto nível prosseguiram, tendo-se realizado seis antes do 25 de
Abril de 1974, e uma última em Junho deste ano, destinada a encerrar este ciclo
de actos preparatórios para uma efectiva aliança militar destinada à defesa de
um poder branco na África Austral.
|
Patrulha portuguesa em Tete, Moçambique (AHM). |
Em
paralelo com estas reuniões realizaram-se dezenas de outras, de variadíssimas
áreas militares, visando estabelecer regras e procedimentos comuns, para o
emprego de forças militares conjuntas. Passaram também a ser comuns as reuniões
de responsáveis pelas informações e pelos serviços secretos dos três países,
assim como as visitas de altos responsáveis políticos e militares.
Contudo,
só em Setembro de 1973 os ministros da Defesa de Portugal, África do Sul e
Rodésia aprovaram a criação de uma Organização Permanente de Planeamento Alcora
(PAPO). Este novo órgão constituía o culminar de um trajecto percorrido desde a
primeira reunião de alto nível em Março de 1970. Ele iria integrar as
atribuições anteriormente dispersas pela comissão de coordenação e pelas
diversas subcomissões Alcora. Ficou decidido também que a Organização iniciaria
o seu funcionamento em Pretória, em Janeiro de 1974.
Faltava apenas o acordo financeiro, que viria a ser
assinado em 8 de Março de 1974 entre o Governo Português (Ministério das
Finanças) e o South Africa Reserve Bank para um empréstimo de 150 milhões de
rands, destinado a financiar a aquisição de equipamento militar por Portugal.
Na sequência da aproximação política entre Portugal
e a África do Sul, especialmente através das cimeiras desenvolvidas no âmbito
do projecto “Alcora”, quando já estava decidido e em funcionamento um órgão
permanente de planeamento “Alcora”, com sede em Pretória, os dois governos
negociaram um grande empréstimo da África do Sul a Portugal no valor de 150
milhões de Rands. Este montante seria transferido para Portugal num prazo de 5
anos, em tranches de 5 milhões mensais, até um máximo de 50 milhões por ano.
Destinava-se a suportar as despesas de Portugal com a aquisição de novos
equipamentos e armamento. A prestação de Março foi imediatamente transferida.
Com o 25 de Abril, as transferências foram
interrompidas, para não mais serem retomadas. Contudo, Portugal tinha já
assumido compromissos vultosos por conta do empréstimo, na aquisição de
equipamentos militares, incluindo os mísseis Crotale.
As negociações ao nível militar prolongaram-se até
finais de 1975, sendo então transferido o problema para o âmbito dos
Ministérios das Finanças e dos Negócios Estrangeiros.
6. Em
24 de Junho de 1974 teve início a sétima e última reunião do “Exercício
Alcora”, mais uma vez em Pretória, em que os representantes dos três países se
confrontam com os acontecimentos em Portugal e com o desmoronamento da
organização tão longa e minuciosamente preparada para impedir o progresso do
“Comunismo e da sua lança avançada, o Nacionalismo Africano”.
Nunca
virá a saber-se como reagiriam vários sectores portugueses, tanto políticos
como militares, ao conhecimento das decisões Alcora, se o 25 de Abril não as
tivesse silenciado no momento exacto da sua divulgação. Com a máquina em
movimento, é de supor que a reunião de alto nível prevista para Lisboa, no
período de 24 a
28 de Junho, viesse a decidir a divulgação pública do acordo e do nível de
cooperação já em execução e previsto, assim como das circunstâncias do seu
funcionamento. Não se adivinha fácil a aceitação das resoluções de alto nível,
de concretização de uma parceria melindrosa, e porventura inaceitável para
alguns sectores do próprio regime. Mas o 25 de Abril não impediu a realização
da reunião prevista para Lisboa (cautelosamente transferida para Pretória), que
se revestiu de aspectos bastantes constrangedores.
Começou
a reunião pela apresentação do relatório do DGSP, Director Geral de Planeamento
Especiais, general R. Clifton. O responsável pela PAPO optou por ignorar
completamente os acontecimentos de Portugal, porventura desejando que isso
nunca tivesse acontecido ou esperando que nenhumas circunstâncias afectassem o
desenvolvimento da sua organização. É o que justifica as suas primeiras
palavras: “Desde que a ATLC se reuniu pela última vez em 9 de Novembro de 1973,
foi estabelecida a organização PAPO sobre bases firmes e começa, parece-me, a
desempenhar a sua função de alcançar os objectivos Alcora”. E prosseguindo:
“Além da sua função de executar as tarefas especificamente determinadas pela
ATLC, torna-se aparente que a PAPO é aceite como o veículo mais conveniente
para coordenar e accionar quaisquer assuntos de carácter bilateral ou
tripartido. Isto torna-se possível devido à composição representativa dos seus
quadros e aos canais de comunicação que foram criados”.
O
relatório desculpa depois alguns atrasos pela necessidade que houve de efectuar
uma série de trabalhos administrativos, mas enumera algumas das tarefas
cumpridas. Assim, entre Fevereiro e Abril, “efectuaram-se na PAPO onze reuniões
das subcomissões Alcora para entrega das suas tarefas”, e embora este processo
tenha atrasado a execução de trabalhos próprios da PAPO, a verdade é que isso
“estabeleceu firmes alicerces para as suas futuras tarefas”. Continuando neste
tom, o relator revela que “a primeira e prioritária tarefa de planeamento da
PAPO foi a realização de um estudo designado por “Eliminação do Terrorismo”,
que será distribuído. Uma falha contudo, aponta o general: “A PAPO tem dez
oficiais a menos: sete de Portugal e três da Rodésia”, situação agravada pelo
facto de “certos elementos do pessoal português serem cumulativamente adidos
acreditados”, o que decerto não deixaria de se reflectir na capacidade da
organização.
Mas
se na aparência nada pareceu suficiente para alterar o tom do relatório, a
verdade é que todos esperavam pela explicação portuguesa. A revolução de
Lisboa, estava assente nos espíritos, desmoronara a construção Alcora.
Convidada
então a delegação portuguesa a explicar “as possíveis consequências dos
recentes acontecimentos, em Angola e Moçambique, e se havia vantagem na
continuação do Alcora na sua forma actual”, não puderam os representantes
portugueses furtar-se a abordar as questões que se levantavam e que os outros
parceiros queriam escutar. Assim, em primeiro lugar, “não é conveniente nas
actuais circunstâncias dar informações à imprensa sobre a existência do
Alcora”, já que “as pressões internacionais podem interferir nas negociações em
curso”. Quanto à influência da situação em Portugal no Alcora, vale a pena a
transcrição da difícil resposta portuguesa: “O primeiro objectivo do Governo
Português era obter um cessar-fogo nos territórios Alcora como pré-requisito
para as conversações com os movimentos nacionalistas. Contudo, existem algumas
diferenças de opinião com alguns partidos que querem imediatamente uma
independência completa. O Governo Português não concorda com isto porque está
convencido que os partidos que presentemente conduzem a luta não representam a
opinião da maioria da população dos vários territórios. As pressões externas
são fortes e é difícil nesta fase seguir uma linha de acção ou predizer um
programa de acontecimentos. É também difícil prever o envolvimento militar
futuro, mas se não se obtiver um cessar-fogo, Portugal assegura que continuará
a combater o terrorismo. Em resumo, é difícil nesta fase planear a eliminação
do terrorismo e compreendem-se as dificuldades da PAPO no estudo deste
problema. Por causa das actuais preocupações internacionais e dos esforços da
imprensa internacional para provar a existência de uma aliança Alcora, é
inconveniente considerar nesta altura quaisquer acções conjuntas em Moçambique. O
Governo Português assegurou já que evitará por todos os meios
que os terroristas utilizem o território português contra os territórios
vizinhos. Se a situação política evoluir continuando porém as Forças Armadas
portuguesas responsáveis pela segurança militar de Angola e Moçambique,
mantém-se a garantia anteriormente especificada. Desde que essa
responsabilidade militar cesse então deixaremos de poder manter tal garantia”.
A
mensagem era demasiado forte para que as ilusões continuassem. O Exercício
Alcora tinha mesmo terminado.
Mas
em Maio de 1975 houve ainda uma reunião em Lisboa de representantes militares
da África do Sul com o estado-maior português, com o fim de dar solução à
devolução dos materiais e equipamentos cedidos pela África do Sul a Portugal,
no âmbito do extinto “Exercício Alcora”.
Era
muito significativo o material emprestado pela África do Sul a Portugal. Os
empréstimos tinham começado em 1969 e prosseguiram até 1973. Eram feitos sob
uma designação codificada, como “operação Scapula”, “operação Oásis”, “operação
Cadiz”, etc. Os materiais estavam a ser usados tanto em Portugal, como em
Angola e Moçambique. As reuniões conjuntas iniciaram-se em 1974 e concluíram-se
em Maio de 1975, quando uma delegação sul-africana se deslocou a Lisboa para
acertar todos os pormenores da devolução. A correspondência entre as partes foi
intensa, mas as operações de devolução prolongaram-se até 1976. Em muitos casos
os materiais estavam a ser utilizados nas unidades portuguesas, fazendo parte
do seu equipamento orgânico. Outras vezes foi necessário conferir o que
regressava de Angola e Moçambique para se chegar ao acerto final. Em alguns
casos os materiais ficaram nestes territórios, tornando inviável a devolução. A
África do Sul aceitou que vários materiais fossem considerados obsoletos e não
fossem incluídos na devolução.
7. Em
suma, o “Exercício Alcora” foi uma aliança político-militar de Portugal com os
regimes da África do Sul e da Rodésia, construída nos anos finais do regime
português, com o fim de coordenar esforços e meios para dar combate mais eficaz
aos movimentos autonomistas e de transformação interna dos regimes da África
Austral.
As
conversações bilaterais e tripartidas envolveram as maiores autoridades
militares e políticas dos três países e traduziram-se pela instituição de um
órgão de comando e direcção das operações militares em todos os territórios
Alcora (Angola, África do Sul, Rodésia e Moçambique), na constituição de forças
integradas e na definição de uma política de contra-subversão comum.
Está
em aberto saber como iria o regime português enfrentar a divulgação pública da
existência da aliança ou que medidas tinha preparadas para lhe dar seguimento
prático, de acordo com as exigências dos seus parceiros. E quais seriam os
projectos para os territórios que administrava e continuavam em guerra, não só
Angola e Moçambique (territórios Alcora), mas também a Guiné.