Em 2010, o meu amigo João Vieira Borges
desafiou-me a colaborar num número especial da Revista
de Artilharia que seria dedicado à Guerra
Peninsular, que veio a ser publicado em Setembro desse ano. Aí está incluído um
texto da minha autoria intitulado “A Artilharia Portuguesa na Guerra Peninsular
- Um projeto para um roteiro de fontes primárias”. O trabalho compõe-se de duas
partes, uma de enquadramento da questão e outra de um anexo em que tentei
relacionar os livros com interesse para a história da Artilharia no período
alargado de 1641 a 1876 incluídos no Fundo 5 do Arquivo Histórico Militar
(Livros de Registo Antigos).
A proposta que então fazia era muito
clara – a criação de um grupo de estudos com a finalidade de iniciar um roteiro
de fontes para o estudo da Artilharia portuguesa. Acho que caiu em saco roto, e
daí o título com que agora apresento a primeira parte do texto.
O original está disponível no sítio da Revista
de Artilharia.
Aspeto de uma sala do Arquivo Histórico Militar, podendo observar-se os livros da Fundo 5, Livros de Registo Antigos, fundamentais para o estudo da participação portuguesa na Guerra Peninsular." |
Desde
o início da Revolução Francesa, os governos europeus sabiam os perigos que se
aproximavam. Com a ascensão de Napoleão, a ameaça ficou mais clara.
No
concerto europeu pertencia à Inglaterra a condução da oposição às pretensões de
Napoleão. Portugal (como outros países) não encontrou forma de satisfazer ambos
os lados.
Os
acontecimentos encarregaram-se de levar D. João VI para o Brasil, a coberto de
um acordo com a Inglaterra, e de trazer as tropas francesas até Lisboa, com
direito a serem bem recebidas.
A
ambiguidade durou pouco. Em menos de um ano, entre finais de 1807 e Agosto de
1808, concluiu-se a primeira invasão francesa (se, no contexto das pretensões
franco-espanholas não incluirmos a anterior invasão de Portugal de 1801).
Junot, com o seu exército da Gironda, atravessou a Espanha, entrou pela Beira
Baixa, passou o Zêzere e entrou em Lisboa com um exército exausto, quando a
esquadra britânica se afastava da costa levando o príncipe regente e mais
15.000 pessoas fugidas às tropas e ao “terror” napoleónico.
Para
se chegar à Convenção de Sintra de 30 de Agosto de 1808, tinha sido necessário
que as forças franco-espanholas ocupassem Portugal, que o exército inglês
desembarcasse na Figueira da Foz, que se travassem os combates da Roliça e do
Vimeiro, em que os franceses foram derrotados, que os povos de Portugal e de
Espanha se revoltassem contra os franceses, e que os ingleses não fizessem
questão de salvaguardar a honra portuguesa, mas apenas os seus efetivos
militares.
Com
a chegada de novas forças à Península Ibérica, tanto francesas como inglesas,
um dos polos fundamentais da grande estratégia dos contendores transfere-se
para a Península, constituindo-se, a pouco e pouco, uma força anglo-portuguesa-espanhola
que, a partir de 1809, iniciou um grande movimento de contraofensiva e
perseguição às tropas francesas, obrigadas a recuar a partir do Porto, Buçaco,
Linhas de Torres, Sabugal (em território português), e depois Fuentes de Oñoro,
Badajoz, Albuera, Ciudad Rodrigo, Salamanca, Vitória, San Sebastian, Pirinéus
(em território espanhol), entrando finalmente em França, a partir de Julho de
1813.
Esta
Guerra Peninsular, como prefere a historiografia inglesa, Guerra da
Independência, como a Espanha a entende, ou as Invasões Francesas, como a época
é vista pela parte portuguesa, constituiu um teatro de operações militares de
notáveis experiências e de grandes ensinamentos, tanto em termos de tática,
como de emprego das forças, logística, manobra, recrutamento, relação com as
populações e todos os demais domínios da ciência militar.
É
por isso que, passados 200 anos, se continuam a publicar estudos em número
pouco vulgar, suscitando o período os mais diversos pontos de vista. Quase se
pode dizer que parece inesgotável a matéria para novas abordagens.
O
estudo das campanhas da Guerra Peninsular proporciona um melhor conhecimento
não apenas dos aspetos militares da época, mas também da sociedade, das
relações entre as nações e do pensamento e atitudes dos vários intervenientes.
Em relação aos assuntos militares, a questão da artilharia e do seu uso não é
dos temas que tenha merecido mais atenção historiográfica, embora sejam
inúmeros os estudos efetuados.
Por
isso há ainda bastante trabalho a fazer, mesmo no que respeita à participação
da Artilharia portuguesa nestas campanhas. Interessa-nos aqui focar sobretudo a
utilização de fontes primárias para fomentar estudos que ainda não foram
feitos.
Em
primeiro lugar, a questão das fontes primárias para o estudo da Artilharia na
Guerra Peninsular deve pôr-se ao nível da própria Guerra Peninsular e dos
fundos documentais que lhe dizem respeito, dispersos por muitos e diversos
Arquivos e outros organismos.
Em
Portugal, devemos começar pelos Arquivos militares, em especial o Arquivo
Histórico Militar, onde se concentra grande parte da memória documental desta
época, em especial no que respeita ao Exército Português. A documentação
disponível é imensa e a sua abordagem sistemática podemos dizer que mal
começou.
Uma
parte importante desta documentação está disponível on-line através da base de
dados do AHM chamada “Da Guerra Peninsular à Regeneração”, acervo com cerca de
1.300.000 imagens, sendo que mais de 30% dizem respeito ao período da Guerra
Peninsular. Neste enorme arquivo, encontram-se milhares de documentos
respeitantes à Artilharia (1).
Mas
o acervo mais importante sobre a Artilharia deste período (que pode alargar-se
a parte do século XVIII e prosseguir até ao terceiro quartel do século XIX)
existente no AHM é constituído pelos fundos dos “Livros de Registo Antigos” e
dos “Livros Mestres”.
O
fundo dos “Livros de Registo Antigos” é constituído por uma coleção de livros
de registo de correspondência, atos administrativos, financeiros e
contabilísticos de diversas organismos e unidades militares. Como se diz na
apresentação do respetivo catálogo, “os livros de registo, pela natureza da sua
finalidade no sistema burocrático dos órgãos a que pertenceram e pela cuidadosa
preocupação de transcrição integral dos textos da documentação recebida,
expedida e produzida, acabaram por se transformar em testemunhos documentais de
extraordinária relevância. De facto, eles oferecem ao investigador, de uma só
vez, acesso aos conteúdos de séries documentais completas, cujos originais
andam dispersos, não se encontram, ou simplesmente desapareceram” (2).
Nesta
enorme coleção de 3.712 livros de registo, encontramos 320 livros relacionados
com órgãos ou unidades de Artilharia, respeitantes ao período de 1641 a 1876.
Com informação sobre a Guerra Peninsular temos, pelo menos, 32 livros.
Desta
coleção juntamos, em anexo, uma lista dos livros respeitantes ao estudo da
Artilharia para todo o período.
Por
seu lado, a coleção dos “Livros Mestres”, que constituem os livros de registo
da vida dos órgãos e unidades militares, no que respeita essencialmente ao seu
pessoal, mas muitas vezes também a material e animais, representa uma das mais
impressionantes coleções do Arquivo Histórico Militar, com cerca de 7.500 livros,
entre o século XVII e 1910, altura aproximada em que foram substituídos pelo
chamado “Registo Geral”.
Aqui
podemos seguir a vida das unidades e órgãos militares, quase diríamos dia a
dia, já que neles eram registadas todas as informações respeitantes ao seu
pessoal, assim como as alterações ocorridas.
A
estas duas coleções fundamentais deve acrescentar-se a documentação dispersa
por diversas Secções arquivísticas e também a respeitante aos fundos próprios
dos órgãos e unidades de Artilharia, que se foram constituindo e que hoje são
memória do Exército Português. Sem esquecer, evidentemente os processos
individuais dos militares que serviram no Exército, sendo de especial interesse
os dos oficiais de Artilharia, desde o início do século XIX e muito irregularmente
da segunda metade do século XVIII.
Contudo,
o estudo das fontes primárias da Artilharia Portuguesa não pode ficar-se pelo
Arquivo Histórico Militar. Os Arquivos portugueses, desde o Arquivo Nacional da
Torre do Tombo, passando pelos Arquivos Distritais e acabando nos Arquivos
Municipais, todos têm (ou podem ter) arquivos militares e certamente
referências à Artilharia, em especial se tivermos em conta os municípios e
distritos onde unidades de Artilharia tenham tido a sua sede.
O
trabalho a realizar poderia constituir-se num elemento essencial de um roteiro
de fontes militares dos Arquivos portugueses, projeto que poderia ser assumido
pela Comissão Portuguesa de História Militar ou outra estrutura do Ministério
da Defesa Nacional, em colaboração com os Ramos das Forças Armadas através dos
seus órgãos culturais.
E,
ainda assim, o acesso às fontes primárias para o estudo da Artilharia
Portuguesa, como parte relevante do Exército da Guerra Peninsular, não estaria
completa, pois deveria contar-se com algumas fontes estrangeiras de grande
importância.
Como
refere o historiador António Pedro Vicente, existe um manancial riquíssimo de
fontes, “nomeadamente em Espanha, França e Inglaterra”, assim como,
acrescentamos nós, no Brasil, onde o fundo “Negócios de Portugal” pertencente
ao Arquivo Nacional do Rio de Janeiro e referente à presença de D. João VI no
Brasil reúne um vastíssimo conjunto documental decerto também importante para a
história militar de Portugal.
Seguindo
as informações do mesmo autor, que demoradamente contactou com os arquivos
franceses do período napoleónico para os seus estudos, “é nos arquivos do
Ministério da Guerra, em Vincennes, que encontramos o maior número de
documentos que interessam ao nosso século XIX”, completando depois a sua
informação – “Todos estes documentos estão depositados nos Archives Historiques du Ministère de la Guerre, em Vincennes, na
secção de Mémoires et Reconaissances du
Portugal, ocupando os códices 1354 a 1369” (3).
Em
Inglaterra são muitos os arquivos que guardam memórias da Guerra Peninsular. Em
primeiro lugar existe um fundo que de há muito está reconhecido como
importantíssimo para o estudo da época e também para um mais profundo
conhecimento da presença de Wellington em Portugal. Trata-se da coleção The Wellington Papers, depositados na
Biblioteca da Universidade de Southampton. Já está disponível on-line uma base
de dados referentes a este arquivo, mas infelizmente ainda muito incompleta,
pois não ultrapassa o ano de 1808. Diferente é a situação da coleção dos Wellington’s Dispatches, que podem ser
consultados diretamente, p.e., na página do The
War Journal.
Contudo,
outros acervos documentais podem ser acrescentados ao projeto, incluindo
coleções depositadas na British Library
e nos Arquivos Nacionais.
Também
em Espanha se encontra um importante manancial de documentação original
referente a esta época e com interesse para a história militar de Portugal.
Ainda recentemente o historiador António Ventura publicou os planos espanhóis
de invasão de Portugal na transição do século XVIII para o XIX (4).
Será
ainda conveniente procurar conhecer alguns arquivos americanos, incluindo os de
algumas universidades, onde muitas vezes somos surpreendidos com a existência
de fundos e coleções documentais inesperados, mas importantes para a
investigação sobre temas militares, em especial da época contemporânea.
Embora
um projeto de levantamento de fontes primárias como o que propomos devesse ser
iniciativa conjunta, abarcando toda a documentação com interesse para a história
militar, a verdade é que está sempre em aberto que possa iniciar-se por um
estudo parcial. Não nos parece por isso descabido que a Revista de Artilharia
possa iniciar esse projeto, com especial incidência na documentação com
interesse direto para a história da Artilharia, podendo assim abrir um caminho
que outros viriam naturalmente a seguir.
Também
faria todo o sentido começar pelos arquivos mais acessíveis, como o Arquivo
Histórico Militar, onde será necessário efetuar um trabalho moroso, que bem
poderia servir de modelo para outros que se seguissem.
O
problema poderá estar em encontrar uma equipa disponível, mas estou certo que
entre tantos e tão valorosos artilheiros, em especial entre os que se encontram
na situação de reserva e reforma, não será difícil constituir um grupo que se
dedique a sistematizar e a dar a conhecer as fontes documentais para a história
da sua Arma, organizando um instrumento moderno de estudo, acessível a todos.
Prestaria com isso um serviço de reconhecido interesse, não apenas para a Arma,
mas também para a comunidade científica e académica. Seria mais um ato de
prestígio para a Artilharia Portuguesa.
.....
(1) Ver a base de dados em: http://www.infogestnet.com/
(2) Livros de Registo Antigos (1625-1910), Fundo
5, Inventário. Lisboa: EME/AHM, 2005, p. 33.
(3) António
Pedro Vicente, O Tempo de Napoleão em
Portugal – Estudos Históricos. Lisboa, Comissão Portuguesa de História
Militar, 2000, p. 33.
(4) António
Ventura, Planos Espanhóis para a Invasão
de Portugal (1797-1801). Lisboa: Livros Horizonte, 2006.
Gostei muito de mais este trabalho do Camarada Aniceto Afonso. É de grande utilidade para quem deseje embrenhar-se na pesquisa que o assunto trata. Cruz Fernandes
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