Quando comemorámos os 20 anos do 25 de
Abril, em 1994, a A25A encarregou-me de fazer a comunicação principal na sessão
solene.
Foi esta a comunicação que apresentei:
Meus
camaradas de Abril,
Encarregou-me
a Associação de falar nesta cerimónia de abertura das comemorações do vigésimo
aniversário do 25 de Abril. Que o fizesse como participante e capitão de Abril
e como estudioso (do ponto de vista da História) do facto que comemoramos.
Ao
fazê-lo, agradeço penhorado a confiança da Associação e procurarei, dentro das
limitações que me são próprias, tecer algumas considerações que presumo
relevantes.
Cartaz comemorativo do 20º aniversário do 25 de Abril, edição da A25A, autor Júlio Pomar. |
Temos
perante nós um acontecimento histórico, realizado há vinte anos, por um grupo
alargado de militares. O facto concreto, ocorrido a 25 de Abril de 1974, relaciona-se
historicamente com a deposição, através do uso da força, do regime
então vigente. Na História das sociedades, há factos destes –
definidos, concretos, incontornáveis. Mas não há factos históricos isoláveis.
Eles estão sempre numa sequência de outros factos, precedentes e consequentes,
tanto igualmente localizáveis, como impercetíveis ao observador desatento.
Quando nós, membros de uma civilização, de uma sociedade, de uma comunidade,
nos movimentamos, arrastamos pelo caminho marcas profundas, sinais extensos, heranças
longínquas. O que é verdadeiramente aliciante na compreensão da trajetória
histórica do homem (individual ou social) é a tentativa de penetrar nas esferas
de influências mútuas, discernindo o breve tempo de um facto com o peso da sua específica
intensidade e a dimensão de outros tempos, de duração variada e interferência
complexa.
O
25 de Abril de 1974, que vamos comemorar é, em si, um facto breve de volumosa
espessura. Não tem, em larguíssimo tempo histórico, antes ou depois, outro facto
que possa sobrepor-se-lhe em termos de influência sobre o destino do homem
português.
Aliás,
comparável em termos de brevidade e espessura histórica, só existirão meia
dúzia de dias na História de Portugal. Será a assinatura do Tratado de Zamora
que inicia formalmente a existência de Portugal, a vitória de Aljubarrota, que
adia por duzentos anos a união ibérica, a conquista de Ceuta, que lança
Portugal na aventura dos novos mundos, a Restauração, que recupera, para
sempre, a independência perdida sessenta anos antes, a Revolução vintista, que
proscreve o Antigo Regime, e a implantação da República, que extingue um
sistema com mais de 750 anos.
O
estudo histórico tem a fantástica capacidade de permitir viajar no tempo. É
certo que o historiador, como homem, cidadão e participante do seu próprio
tempo, não pode, material e espiritualmente, deixar de carregar a canga da
época em que vive, mas pode, quantas vezes recorrendo a um engenhoso esforço de
imaginação, colocar-se em pontos variados da fita do tempo, permitindo-se perscrutar
o passado ou olhar o futuro, cujo desenlace afinal já conhece. Esta é, quase
sempre, a tarefa do historiador: escolher um ponto no tempo e, a partir daí, encontrar
as linhas convergentes que conduziram a esse ponto e explicar como ele se
projetou e que consequências ou marcas deixou na sociedade em que ocorreu.
Contudo, quanto mais coincidência houver entre o ponto escolhido e um facto
histórico marcante (ou quando rigorosamente coincidirem - o que não é raro nas
opções dos historiadores), mais longos devem ser os recuos e os avanços no
tempo objeto de estudo, porque são os factos marcantes que mais prolongadamente
interferem no processo histórico da sociedade.
Quero
com isto dizer que observar o 25 de Abril de 1974, sob o ponto de vista da
História, requer necessariamente um recuo profundo e um avanço prolongado no
tempo da sociedade portuguesa.
Requer
sem dúvida a análise do regime que o tornou inevitável, da sociedade que o
fundamentou, do grupo que o concebeu e dos homens que o executaram. Mas requer
igualmente a análise do regime que gerou, da sociedade que lhe sucedeu, dos
grupos e dos homens que souberam (ou não souberam) potenciar as oportunidades
dele saídas. Mas como os momentos altos da História se repercutem extensamente,
é sempre com cautelosa ponderação que os historiadores se aventuram nas
análises dos tempos recentes.
A
ciência histórica impõe a inquestionável exigência da imparcialidade. E embora
fazer história seja sempre fazer escolhas, é com verdadeiro zelo que se procura
a objetividade das opções. Nenhum historiador de mérito tentará menosprezar a importância
histórica do 25 de Abril de 1974. Poderão explicar, interpretar ou entender de
forma diferente o complexo histórico que justificou a sua emergência ou analisar
distintamente o processo a que deu origem. Mas todos têm estado concordantes,
em relação à decisiva importância da ação militar que marcou o reinício da
democracia em Portugal.
Por
nós, que jamais ousaremos tomar o título de historiador, respeitando embora os
princípios essenciais do labor histórico, não enjeitamos a deliberada opção
pelos traços que fazem do 25 de Abril o passo primordial da recuperação da
nossa liberdade e da implantação da nossa democracia. Também não escondemos,
correndo o risco da história apressada (mas tranquilos por sabermos do seu carácter
provisório), que duas causas principais estiveram na base do movimento militar
que conduziu ao 25 de Abril: a guerra colonial e (afinal, causa da causa, ou
talvez causas de influência mútua) a natureza do próprio regime do chamado
"Estado Novo". Se quiser agora, ultrapassando porventura as normas
difusas da ciência histórica, mas optando por um pensamento empenhado, saber da
justiça da causa que guiou os capitães de Abril, deveria perguntar: Quem
optaria por voltar a um regime autoritário, de verdade única, de absoluto
controlo da pessoa humana? Quem gostaria de voltara um regime de um só partido,
depositário dos únicos valores válidos? Quem desejaria reconstituir um sistema
liberticida, onde os direitos e as garantias dos cidadãos se concebam em função
do próprio sistema e dos seus próceres? Quem admitiria o regresso da polícia
política, da ameaça permanente, das perseguições, do esmagamento das oposições,
das prisões políticas, dos tribunais plenários, das medidas de segurança, da
militarização da juventude e do cidadão? Quem suportaria de novo a censura, a
propaganda, a polícia do espírito? Quem toleraria de novo o regime da
"superstição das obras", feitas à custa da dignidade dos cidadãos?
Quem permitiria o regresso do regime da emigração massiva, da ignorância, do
medo, da doença, do analfabetismo e da pobreza? Quem conseguiria viver hoje num
país isolado, acerbamente criticado e condenado nas mais diversas instâncias
internacionais? Quem desejaria voltar ao regime da guerra?
A
guerra. Detenhamo-nos um pouco sobre a questão da guerra. A História tende a
deixar esfriar os factos para os incluir nas suas preocupações. É um erro que a
sociedade seja arrastada pela mesma tendência. A guerra afetou diretamente
cerca de um milhão de portugueses e indiretamente poucos terão sido os que lhe
ficaram completamente imunes, isto durante um longo período de treze anos.
Chega a ser incompreensível como podemos encerrar dentro de nós próprios, com
fecho de sete chaves, a memória de um tempo tão marcante. Como se a guerra
fosse uma vergonha individual ou um peso de consciência de cada um de nós. As
guerras, podendo ser de natureza diferente, têm todas as mesmas características:
são violentas (não é a guerra o uso da violência na máxima escala?), mortíferas
e suscetíveis de encobrir fenómenos que excedem o direito e a razão. A guerra
(e a guerra colonial é bem um exemplo disso) resulta de uma decisão política. Não
são as Forças Armadas que fazem a guerra. As Forças Armadas cumprem missões de
guerra. Também não fazem a paz - implementam acordos ou decisões de paz. Não é
por isso razoável julgar as Forças Armadas e os seus membros, da mesma forma
que se deve julgar o regime político que prolongou irracionalmente a guerra. De
facto, as Forças Armadas, com imenso esforço, sacrifício, inteligência e
capacidade, deram ao poder político treze anos de folga, de espera, de
cobertura, para encontrar uma solução política, negociada, aceite
internacionalmente. Como é possível que as Forças Armadas demonstrem hoje
injustificadas suscetibilidades relativamente à sua participação na guerra,
quando, no cumprimento do seu dever profissional, demonstraram possuir
capacidades de excecional valor, que lhes permitiram resistir para além do que
seria razoável e justo pedir-lhes? Como podem as Forças Armadas sentir-se hoje
questionadas, quando se condena o excessivo prolongamento da guerra colonial ou
mesmo a sua emergência?
É
bem certo que foram os capitães de Abril que impuseram, mesmo contra a opinião
de outros militares, o fim das hostilidades nas colónias portuguesas. Mas
nenhum militar, mesmo daqueles que não estiveram empenhados no 25 de Abril, com
razoável ponderação, pode continuar a sustentar a justeza da política colonial
do regime derrubado. O 25 de Abril, relativamente à guerra, veio impor uma
solução com muitos anos de atraso. É este atraso (e em História os atrasos
pagam-se normalmente muito caro), que justifica amplamente as soluções de
estreita manobra política conseguidas para o processo de descolonização. Soluções
que, apesar de tudo, deixaram em aberto imensas possibilidades de cooperação,
só muito fugazmente aproveitadas, desde então até à atualidade.
Em
suma, os capitães de Abril, através de um complexo processo de aproximação e envolvimento
coletivo, acabaram por tomar consciência do cruzamento dos dois erros que
referimos - a natureza do regime que oprimia os portugueses e a injustiça e
inutilidade de prolongar uma guerra sem sentido. Foi essa consciência que os
conduziu ao 25 de Abril. Quando ocorrem roturas a este nível, salva-se,
historicamente, quem mais oportunamente compreende as contradições em que está
envolvido e encontra para elas uma solução. É essa a grande virtude do
Movimento dos Capitães.
No
Movimento dos Capitães, como trabalhos de natureza sociológica já realizados o
demonstram, estiveram representados todos os grupos sociais incluídos nas
Forças Armadas - aí estiveram filhos de agricultores, de profissionais
liberais, de militares, de proprietários, de funcionários públicos, de
comerciantes, de empregados qualificados, de operários e artesãos. A sua
composição social acaba por ser o espelho da própria sociedade portuguesa, o
que de alguma forma reflete a vontade dessa sociedade. De facto, mudar o regime
e pôr fim à guerra era, isso sim, um verdadeiro "imperativo nacional', que
os militares de Abril cumpriram como um dever e que a História para sempre
reconhecerá.
Resta-nos
agora, colocados que estamos num ponto fulcral da história portuguesa recente,
em 25 de Abril de 1974, espreitar o futuro que com ele e a partir dele fomos
construindo, em Liberdade. A liberdade, retomada pelo povo português a partir
de 25 de Abril de 1974, é o fundamento do regime atual. Mas a liberdade, por si,
não soluciona os problemas de uma sociedade. São os cidadãos, munidos da
liberdade como instrumento, que transformam o sistema a que pertencem, que
interferem nos caminhos do seu próprio destino, que se aproximam das soluções
mais desejadas. Não há liberdade sem cidadãos, como não há cidadãos sem
liberdade. Os capitães de Abril, compreendendo-o desde o início, souberam, num
gesto historicamente incomparável, deixar nas mãos dos cidadãos, o que aos
cidadãos pertencia.
Não
podemos lamentar o regime da liberdade. Devemos, sobretudo, intervir, a partir
da nossa liberdade. Propor, transmitir, lutar pelos valores em que acreditamos;
denunciar os abusos, os esquecimentos, os desvios; participar na mudança, na
alternativa, na diferença. Ser livre, verdadeiramente livre, é talvez mais
difícil do que o não ser - no que exige de responsabilidade, de empenhamento,
de esforço quotidiano. Mas é isso a essência de um regime baseado na liberdade,
de um regime democrático. Em democracia não deve haver cidadãos isolados ou
isoláveis. E quando os cidadãos tendem a isolar-se ou a renunciar à relação com
outros, é porque a democracia está começando a degradar-se. Duas liberdades
isoladas podem, no limite, anular-se; duas liberdades conjugadas potenciam a
Liberdade e movem a sociedade.
A
democracia portuguesa, filha do 25 de Abril, é demasiado jovem (sobretudo, do
ponto de vista da História de Portugal) para que possamos, sob qualquer
pretexto, considerá-la esvaída ou exausta. A democracia, com 20 anos de
existência, é já, para a nossa geração, um raro privilégio na história
portuguesa. Cabe-nos, a todos, fazer do 25 de Abril de 1974 um verdadeiro ponto
de viragem e inflexão da nossa história comum, como o dia em que varremos, em
definitivo, da herança dos portugueses, as lágrimas de mais opressões.
A
História, ciência do homem, assinalará o facto em páginas brilhantes.
Obrigado.
Obrigado Aniceto Afonso pela lição que aqui deixas. Cruz Fernandes
ResponderEliminarCaro Amigo,
EliminarMuito obrigado, foi uma cerimónia muito sentida de que bem me lembro. Fazes falta nas nossas reuniões de 5ª feira. Abraço em Liberdade...
Extraordinário texto este que se mantém actual, que tem tudo o que importa analisar para abarcar a magnífica revolução dos cravos. Ao lê-lo, sentindo a sua intemporalidade, desejaria que todos os anos se inscrevesse no espaço público das comemorações abrilistas. Melhor não se fará!
ResponderEliminarAbraço muito amigo para o autor.
Jorge Golias
Meu caro, Muito obrigado pelas tuas palavras, dedicadas a todos os que se empenharam nesse dia inesquecível. Nessa altura saíam algumas coisas um pouco mais elaboradas, acho que foi o caso... Fico feliz. Abraço em Liberdade...
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