segunda-feira, 5 de abril de 2021

 

ALCORA, UM SILÊNCIO DA GUERRA COLONIAL


No passado dia 27 de março participei no colóquio "Guerra Colonial - Memórias silenciadas" organizado, entre outros, pelo Centro de Estados Sociais da Universidade de Coimbra (CES/UC). O colóquio pretendia abordar e debater memórias que de algum modo andam silenciadas, tanto pelos organismos oficiais como pelos próprios protagonistas, no sentido de melhor se compreender a longa duração da guerra e o seu contributo para o 25 de Abril de 1974. No Portugal democrático faz cada vez menos sentido que se mantenham sombras persistentes sobre o tempo da Guerra Colonial.

A minha comunicação foi a seguinte:


Alcora, um silêncio da Guerra Colonial

 1.     O Exercício Alcora

Em 1961, faz agora 60 anos, Salazar optou pela guerra nos territórios coloniais africanos porque o seu regime não estava preparado para iniciar um processo longo e controverso de conversações com os nascentes movimentos de libertação.

Os fundamentos ideológicos do Estado Novo incluíam, desde a década de 30, o pilar do império colonial como essência da nação portuguesa, assente na sua dimensão pluricontinental e multirracial.

O mito dessa natureza intrínseca condicionou o pensamento da sociedade portuguesa, submetida à propaganda longa e persistente da ditadura.

Excluindo alguns movimentos resistentes, que viviam no estrangeiro ou na clandestinidade (e mesmo assim em formulações muito tardias), ninguém foi capaz de propor, com consistência, uma solução para o problema colonial.

Só em 1961, quando a questão da libertação colonial passara já ao terreno, é que se manifestou uma opção, dentro do regime, de questionamento da política de Salazar.

O chamado golpe Botelho Moniz, fomentado pela nova política americana da administração Kennedy, destinava-se a derrubar Salazar e a colocar em cima da mesa uma nova política colonial de autodeterminação.

Salazar conhecia os meandros da conspiração e preferiu opor-se a esse movimento para salvar o regime e o seu poder, do que socorrer as populações (brancas e negras) do Norte de Angola (cujos iminentes perigos bem conhecia), vindo a aproveitar-se, com deliberada insídia, dos massacres levados a cabo pela UPA sobre essas populações para uma intensa campanha de propaganda contra os movimentos de libertação e a favor da solução portuguesa de continuação da sua política colonial.

Uma vez iniciada, a guerra colonial só poderia terminar com o fim do regime.

Os capitães reconheceram esta realidade a partir de 1973, quando já iam passados 12 anos de empenhamento militar, ainda assim numa ação autónoma e com escassos contributos externos.

Desde 1960 e até ao seu fim, o regime do Estado Novo, primeiro com Salazar e depois com Marcelo Caetano, viu-se obrigado a canalizar toda a sua atenção para a guerra, assim como grande parte dos recursos humanos, materiais e financeiros do país. Mas os recursos de Portugal eram muito limitados e responder às ações da guerrilha nacionalista em três imensos territórios afigurava-se como tarefa excessiva.

Ainda por cima, o regime português estava isolado no concerto das nações e era objeto de sanções, restrições comerciais e contestação política, tanto no seio das Nações Unidas, como da maior parte dos países, mesmo dos mais importantes aliados integrantes da NATO.

Valendo-se do ambiente internacional da Guerra Fria, das hesitações geoestratégicas das grandes potências e das organizações militares, navegando à vista por entre a situação de conflito global latente, o regime português foi encontrando apoios e suportes para o seu esforço militar, muitas vezes de forma disfarçada ou mesmo encoberta.

Foi neste ambiente que se desenvolveram as relações entre Portugal e o regime de apartheid da África do Sul durante quase todo o período da guerra colonial.

Não cabendo aqui aprofundar o percurso dessas relações, mas apenas falar da sua fase final, será de destacar que os grandes projetos levados a efeitos em Angola e Moçambique tiveram sempre, como importantes parceiros, os interesses da África do Sul, como foram o plano do Cunene em Angola e a construção da barragem de Cabora Bassa em Moçambique.

Ao focarmos a nossa atenção no Exercício Alcora, não podemos dissociá-lo dos interesses de Portugal, enquanto potência colonial de fracos recursos e constante enfraquecimento das suas capacidades, e do conceito estratégico do regime sul-africano de manutenção do regime de supremacia branca na África Austral.

O regime português, depois da morte política de Salazar, em 1968, confrontou-se com a sua própria desagregação, minado por divergências, fações e lutas pelo poder que foram enfraquecendo a sua unidade, mesmo perante a questão chave da sua sobrevivência, a solução para a guerra colonial.

Acentuando esta luta interna, a guerra caminhou com alguma rapidez para um estreitamento de soluções, em especial pelo desenvolvimento da luta armada dos movimentos de libertação, que se aperfeiçoava e subia constantemente de patamar (em especial na Guiné e em Moçambique), mas também pelo crescente empenho das Nações Unidas que extremavam em contínuo a veemência das suas resoluções.   

É neste contexto que se situa o “Exercício Alcora”. Confluindo na evidência de um necessário apoio militar da África do Sul às operações das forças portuguesas, em especial no Sul e Sueste de Angola e na região de Tete em Moçambique (onde se construía Cabora Bassa), Portugal e a África do Sul traçam as bases de um acordo militar e de uma aliança política para a defesa de uma África Austral de supremacia branca.

Este plano é apoiado por uma importante fação do sistema político-militar português e pelo governo sul-africano.

A África do Sul implementava assim a sua estratégia de defesa, com o alargamento em profundidade das suas fronteiras de segurança aos territórios de Angola, Moçambique e também da Rodésia (trazida por si ao acordo tripartido).

O poder económico e militar da África do Sul parecia conceder às autoridades portuguesas um conforto material suficiente para o prolongamento de uma situação cujo desenlace, mais tarde ou mais cedo, era considerado inevitável mesmo pelos protagonistas desta solução.

Mas havia, subjacente ao acordo, uma contradição impossível de contornar.

Portugal afirmava-se como um país multirracial e a África do Sul era oficialmente um país de desenvolvimento separado, um país de apartheid.

É neste imbróglio doutrinário que assenta o secretismo da aliança.

Portugal não estava preparado para publicitar a aliança e a África do Sul queria afirmá-la perante o mundo.

Tudo o que envolvia esta aliança era tratado como se fosse segredo de Estado, e classificado como “Muito Secreto”.

Ao iniciar-se o ano de 1974, as tensões entre os dois parceiros em relação à publicitação da aliança atingiram um ponto de não retorno.

Da constatação desta impossibilidade, estavam a desenhar-se soluções espúrias, que ninguém sabia muito bem como poderiam acabar.

Assim, em relação à Guiné (que aliás já era um país independente, ilegalmente ocupado por Portugal) o governo português admitia a retração do dispositivo militar para a zona de Bissau e a preparação futura de uma saída das forças portuguesas, se as conversações que procurou entabular com o PAIGC não produzissem (como não produziram) resultados positivos.

Em relação a Moçambique a questão permanecia obscura, mantendo-se sempre a possibilidade de retomar os esforços de Jorge Jardim para uma difícil solução acordada com a Frelimo através do governo de Lusaca.

Em relação a Angola, a solução passava por uma independência branca, fomentada por Lisboa e apoiada pela África do Sul, sem que seja claro, ainda hoje, como iria ser justificado o processo perante a comunidade internacional e mesmo perante as forças armadas portuguesas (que em grande parte desconheciam em absoluto o que se preparava).

O longo conflito armado estava às portas de um absurdo, tanto no processo de independência fabricado por altas figuras do Estado português, como nas reações dos movimentos de libertação, das populações negras e da comunidade branca, assim como das forças militares portuguesas. E mesmo de outras fações dentro do regime.

 A ação do MFA em 25 de Abril de 1974 pôs fim, não só ao projeto, como ao próprio regime.

 O que se infere hoje, como resultado de um conjunto de investigações sobre o assunto, é que só a conjugação da intransigência inerente à política colonial do regime e o desespero da situação militar deu origem à aceitação de absurdas soluções de uma questão muito maior que os protagonistas da aliança secreta.

 

2.     Uma notável investigação recente

Existe hoje uma notável investigação e estudo da História de África, em várias partes do mundo. O destaque é devido aos jovens (e outros menos jovens) historiadores, incluindo muitos africanos, sem enfeudamentos às narrativas heroicas.

Estudos recentes sobre a colonização e a descolonização, que nos fornecem instrumentos para nos situarmos perante as polémicas e os oportunismos, estão também em curso, vencendo ocultações, com serenidade, com enquadramento, com contexto e com verdade.

A pertinência de um olhar historiográfico abrangente, na procura de um equilíbrio em relação à extensa literatura colonial anterior, em que os temas antes na penumbra e esquecimento se tornam obrigatórios, como a violência, a discriminação, o racismo, a ausência, o domínio, a exclusão, não pode, ainda assim, excluir as influências mútuas, as lutas comuns, a construção de relações de cooperação e a visão de um mundo novo, emergente do fim dos impérios.

É consolador verificar que entre nós se têm desenvolvido projetos, estudos, programas, em especial no âmbito universitário, que refletem esse esforço de conhecimento do mundo africano e das suas relações históricas e atuais.

O mesmo se pode dizer sobre o período da guerra colonial / guerras da independência, revistas sob os mais variados aspetos, um dos quais se fixa precisamente nas memórias silenciadas, nas geografias imaginadas e nas alianças secretas.

Temos assistido à construção de uma ideia sobre a ausência de estudos sérios, da fuga ao tema, da inexistência de investigação e do desinteresse sobre um período fundamental para a compreensão da nossa história comum, de Portugal e dos novos países. Ora nada disso me parece verdadeiro.

Primeiro, existe um largo e crescente interesse da universidade pelos temas africanos e pelas relações coloniais e em especial pelo período final da libertação, incluindo, portanto, a guerra colonial, o processo de transição para as independências e a transferência de soberanias.

Editam-se e publicam-se obras, memórias, estudos, literatura, a um ritmo assinalável sobre temas relacionados com este período fulcral do pós-2ª Guerra Mundial até ao período de pós-independências.

Tem-se consolidado, nas redes sociais, um imenso manancial de informação e de participação de inúmeros testemunhos, bem difícil de acompanhar.

Estão abertos os arquivos portugueses (e também dos novos países), dentro das suas limitações orgânicas, com poucas restrições ou nenhumas.

Existem projetos de recolha de memórias pessoais, de audição de protagonistas, de entrevistas coletivas, de recuperação de testemunhos.

Fazem-se inúmeros colóquios, seminários, congressos, teses de mestrado e doutoramento sobre este período recente da História Contemporânea, com múltiplas abordagens, tanto na perspetiva colonial, como da luta pela autonomia e independência, como também das relações do colonialismo.

Em contrapartida, há ainda muitas matérias por abordar, muitos estudos por fazer, muitas explicações para formular, muitas atitudes para compreender.

São estas incertezas que nos trazem a este encontro, onde procuramos explicar melhor os silêncios que resistem e os assuntos que teimam em permanecer na sombra.

 

3.     Silêncios e encobrimentos

O 25 de Abril de 1974 traçou uma fronteira entre a anterior prática colonial e a mudança para um novo destino do mundo colonizado. Mas, em rigor, as sobrevivências foram inevitáveis e as continuidades conceptuais mantiveram-se resistentes.

A forma como os protagonistas encaram o mundo não é fácil de alterar, e nem as roturas profundas conseguem impedir a continuidade das mentalidades e das correntes de pensamento anteriores.

Cabe-nos a nós, como historiadores e outros estudiosos das sociedades investigar, interpretar e explicar os fenómenos e os acontecimentos que geraram as comunidades que somos hoje, assim como combater as falsidades, as ocultações e mesmo os esquecimentos que continuam ativos. Tudo, segundo julgo, com a persistência e a serenidade que os nossos contemporâneos nos merecem e nos exigem.

 

Muito obrigado.

 

27-03-2021


1 comentário:

  1. Excelente relato de um episódio desconhecido do grande público. Pena é que continue desconhecido do grande público e oxalá que os historiadores da guerra colonial e da descolonização tomem em devida conta o que aqui se relata. E que este conhecimento sirva para ajudar a mostrar a verdadeira face do Regime que nos enganou durante muito tempo. Mas não todo o tempo. Felicito o autor, historiador Aniceto Afonso, coronel do Exército.
    Jorge Sales Golias

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