terça-feira, 23 de maio de 2017

CARTA PARA O VEIGA VAZ, CORRIA O ANO DE 1974!



A Revista da Associação 25 de Abril de Toronto, Canadá (Núcleo Salgueiro Maia) vem-se publicando todos os anos, procurando os seus editores incluir textos elaborados pelos convidados da A25A que se deslocam ou já se deslocaram a Toronto para acompanharem as comemorações do 25 de Abril. Constituiu já um importante repositório de pequenos depoimentos e histórias contadas por esses protagonistas. Organiza a Revista o nosso amigo Carlos Morgadinho.

Também eu tive o privilégio de ser o representante da A25A junto dos amigos do Núcleo Salgueiro Maia em 2012.

Na sequência desta presença, um dos meus textos para a Revista, publicado em 2014, foi uma justa homenagem ao meu amigo Luís Carlos Veiga Vaz, falecido nesse ano.



O Luís Carlos Veiga Vaz, conhecido entre nós por VV, acaba de nos deixar. Foi um capitão de Abril e um grande amigo.

O VV era do meu curso de Artilharia da Academia Militar. Foi um bom camarada, bem- disposto, sempre com uma boa anedota para contar, amigo do seu amigo.

O meu curso de Artilharia em 2004. O Veiga Vaz está ao centro, de gravata vermelha.

Também fizemos juntos o curso de criptólogos, em 1971-72. Este curso decorreu no Batalhão de Reconhecimento das Transmissões na Trafaria e juntou alguns dos futuros participantes no Movimento dos Capitães, entre os quais se encontrava o capitão Vasco Lourenço. Esta unidade acabou por se transformar num centro importante do Movimento, onde foram feitos e copiados alguns dos seus documentos.

Entretanto, eu fui mobilizado para Moçambique no Verão de 1973, tendo o embarque sido marcado para o dia 9 de Setembro, exatamente o dia da reunião de Évora do Movimento dos Capitães. Sendo-me impossível estar presente encarreguei então o Veiga Vaz de me representar e assinar, se fosse possível fazê-lo. Soube depois que ele se atrasou na chegada ao ponto de encontro junto ao Templo de Diana em Évora e já não recebeu o croquis que indicava o caminho para o local da reunião. Como ele faltou, também eu faltei…

A partir de então fizemos percursos diferentes, mas nunca deixámos de estar em contacto. Ele continuou a acompanhar o Movimento em Portugal e eu fui participar na primeira reunião do Movimento em Moçambique, realizada no dia 13 de Setembro em Nampula.

Neste texto gostaria de recordar uma carta que lhe enviei em 20 de Junho de 1974, imerso no mar de problemas que nos rodeavam por todos os lados.

Anunciando-lhe as notícias por que ele estava à espera, começava por lhe dizer que tínhamos muito trabalho, mas “poucos resultados positivos”. De facto, o que se verificava é que havia “de início resistências à nossa ação. Depois, e agora ainda, pouca convicção nas perspetivas novas”.

Dois dias antes, tínhamos enviado ao MFA de Lisboa uma mensagem com a seguinte passagem: “Vemos com preocupação falar-se muito em pureza de princípios do Programa do MFA, mas não executar no sentido da eficácia. Não quisemos fazer uma revolução romântica ou a brincar, muito menos uma revolução perdida. O Movimento deve organizar-se, e não dissolver-se. Sente-se nos sectores reformistas ligados às estruturas que quisemos destruir tentarem recuperar. O ideário do MFA deve ser dinâmico, sem paragens, sem transigir (…)”. (Nota: texto ligeiramente corrigido da sua linguagem telegráfica).

Eu calculava que o Veiga Vaz estava a par do que se ia passando com o MFA em Lisboa e pedia-lhe para transmitir as minhas notícias a outros amigos do Movimento e para que nos dessem as orientações que nos faltavam. Dava-lhe conta de como estava organizado o MFA em Moçambique – Comissão Coordenadora do MFA junto do Governador-Geral, Gabinete do MFA junto do Comandante-Chefe, ao qual eu pertencia, e Comissões Regionais, tendo todos os órgãos sido eleitos democraticamente. E acrescentava que estava lançada “toda a infraestrutura do Movimento”, mas que “começava aí todo o trabalho, pois toda a doutrina e consciencialização dependiam do Gabinete”.

A carta abordava em seguida uma nova questão, a Frelimo, como movimento nacionalista de Moçambique: “A Frelimo é um movimento emancipalista que tem a seu favor: uma luta heróica de dez anos; reconhecimento internacional; ideologia popular; aceitação incondicional do povo. Para além disso, possui: uma verdadeira força no terreno de luta; uma consciencialização bem marcada”.

Confessava-lhe então que lhe escrevia para que “tu aprecies sozinho ou em conjunto com outra malta e nos digam as vossas ideias” e “se puderem dizer opiniões do MFA, isso será excelente”. Quanto à questão militar, e para que não restassem dúvidas, acrescentava depois que as tropas “acabaram a guerra”, pois ela “deixou de ter significado para o povo português e para o povo moçambicano”. Se o meu amigo queria que lhe relembrasse as razões para o que estava a acontecer, não era muito difícil: “As cartas que os militares recebem, as notícias que ouvem, as convicções pessoais que afloram, as tendências pacifistas do homem, a falta de substrato desta guerra – não há Pátria em perigo, não há inimigo invasor – tudo isto se aglomera para não haver moral, não haver disciplina possível e estar a hierarquia posta em causa”.

Também na mensagem enviada ao MFA de Lisboa atrás referida, terminávamos desta maneira: “Os povos do ultramar correm verdadeiro perigo, com possibilidades de racismo, tribalismo, neocolonialismo e confrontos nos centros populacionais. A nossa missão nova e nobre é evitar tais possibilidades, e a nossa intenção firme é descolonizar, reconhecer a autonomia dos povos e ajudar”. (Nota: texto ligeiramente corrigido da sua linguagem telegráfica).

Por isso, a carta ao Veiga Vaz refletia estes sentimentos, quando lhe dizia: “Inverteram-se os dados, (mas) parece que muita gente não deu por isso; esqueceram-se os desejos do povo português. O fim da guerra colonial pode vir longe ou pode estar iminentemente perto (…)”.

E continuava: “Compreendemos porém que nada ou pouco aqui podemos fazer. O problema é político e não militar e hão de ser os políticos a cagar a solução. E, ou eles o fazem depressa ou as Forças Armadas, mais uma vez, estão postas em xeque. Nisso, o MFA tem de meditar. E para meditar precisa de se unir. Está aqui o terceiro problema”.

Por estes dias em que eu fazia ao meu amigo Veiga Vaz um extenso balanço da nossa ação e dos nossos pontos de vista, realizávamos uma reunião alargada do MFA em Nampula e o Gabinete apresentava à Assembleia um documento onde afirmávamos: “O povo português quer ser livre. Está consciente do que significou a submissão do seu querer, durante quase cinco decénios, a interesses estranhos aos da comunidade portuguesa. Manifestou-o inequivocamente nos dias de euforia que se seguiram ao 25 de Abril. A experiência passada mostrou-lhe que essa liberdade nunca será possível enquanto o seu nome e a sua vontade forem utilizados para oprimir e retirar a liberdade a outros povos. (…).

Está em jogo o prestígio da nação portuguesa e o próprio prestígio das Forças Armadas. O MFA reconhece perfeitamente que o prestígio das Forças Armadas, tão duramente abalado antes do 25 de Abril, se há de reconquistar (…) na medida em que as Forças Armadas forem capazes de assumir o novo objetivo que se propõem à realização da paz e à restituição da dignidade aos povos da Guiné, Angola e Moçambique, denunciando, se necessário, todas as práticas que no seu seio sejam consideradas atentatórias dos novos ideais (…)”.

Chegava agora a vez de transmitir ao Veiga Vaz, companheiro que me escutava à distância e que aliviava as minhas inquietações, outro assunto: “O problema que vem a seguir (…) é o bem do Povo. O Povo tem as costas largas. Já o Marcelo fazia o que fazia pelo bem do Povo! E até a PIDE. A Revolução foi feita porque nós interpretámos o sentir da esmagadora maioria do Povo Português. Repara – interpretávamos o que o Povo não queria: a opressão, o fascismo. Mas saberemos nós interpretar o que o Povo quer? Melhor, saberemos dar-lho? Parece-me bem que não”.

Apresentava-lhe finalmente uma última questão: “Vamos ao próximo problema: autodeterminação e independência. Autodeterminação pode significar neocolonialismo. Mas que poderá um MFA formado por uma dúzia de militares politizados fazer, contra a sua própria ultrapassagem? (…)

Resta de tudo isto uma constante. E aí vai mais um problema – A PAZ. A PAZ é que é o autêntico querer do Povo”.

E num desabafo: “Acabo de ouvir que as principais preocupações da França são a inflação, o voto aos 18 anos e as escutas dos telefones. Abençoado país que teve e manteve, em tempos, uma guerra colonial!”.

Os sentimentos que expressava livremente ao meu amigo Veiga Vaz, estavam de acordo com os que o Gabinete do MFA de Moçambique expressava oficialmente ao MFA de Lisboa, sem obter a resposta que esperávamos – que as conversações com a Frelimo estavam no bom caminho… Por isso alertávamos os nossos camaradas, em mensagem de 1 de Julho, uma semana depois da carta: “É na verdade preocupante e intolerável a situação de impasse a que se está chegando. Sabe-se que, existindo uma evidente contradição entre os objetivos que a política pretende atingir e a realidade que existe em Moçambique, se irá dar uma rotura dentro das Forças Armadas. E somos de parecer que quanto mais abaixo na escala hierárquica essa rotura acontecer piores virão a ser as consequências. De qualquer modo está iminente uma tomada de posição dos escalões inferiores”.

Alguns dias depois recebia resposta do meu amigo, evidentemente sem as soluções milagrosas que eu lhe pedia. Ninguém, naqueles dias de sobressalto, sabia quais eram as melhores soluções e muito menos, como se caminhava para elas. O tempo, que todos sabiam dever medir-se em dias, não deixaria de ir desenhando a solução que era imperativa. Um passo de gigante foi dado um mês depois, na declaração do Presidente da República e na Lei 7/74 de 27 de Julho, que declarava o reconhecimento do direito dos povos à autodeterminação e independência.

E nós, envolvidos no tumulto daquele período decisivo, acompanhámos o dia-a-dia de um tempo escaldante, em que cada decisão contribuía para um célere encerramento da questão que nos movia e que vinha de muito longe, dos confins da nossa história…

Agora, que o meu amigo Veiga Vaz nos deixou, posso recordar quanto é importante ter amigos a quem possamos abrir a nossa alma e a quem possamos recorrer, nem que seja para ouvirem os nossos desabafos.


Muito obrigado do coração, meu caro VV.


Em Toronto, com o casal Francisco Sousa Mendes,
neto de Aristides Sousa Mendes, também convidado
pela A25A de Toronto nesse ano de 2012.

Sem comentários:

Enviar um comentário