domingo, 7 de maio de 2017

MARQUES JÚNIOR, CAPITÃO DE ABRIL



Uma das iniciativas da Assembleia da República para as comemorações dos 40 anos do 25 de Abril, em 2014, foi uma homenagem ao capitão de Abril e deputado António Marques Júnior, falecido dois anos antes.

A propósito dessa homenagem editou a AR uma brochura que lhe foi dedicada, tendo eu sido encarregado de escrever a parte respeitante ao papel de Marques Júnior como elemento fundamental da Revolução Portuguesa.

Foi para mim uma honra o convite que me foi dirigido e que aceitei sem qualquer hesitação. Foi este o texto integrado na brochura.




António Alves Marques Júnior nasceu em 1946. Tinha 27 anos no 25 de Abril. Era jovem, sonhava com um Portugal livre, e elegia, como princípios de vida, a intransigência quanto aos valores e a tolerância quanto às convicções de cada um. Faleceu a 31 de Dezembro de 2012, em Lisboa, com 66 anos. Era jovem, continuava a sonhar com um Portugal livre, e ainda elegia, como princípios de vida, a intransigência quanto aos valores e a tolerância quanto às convicções de cada um. Toda a sua vida é um exemplo.

Numa comemoração do 25 de Abril, em Lisboa, com a família e Vasco Lourenço.


Teve um princípio de vida muito difícil. Aprendeu o valor do trabalho, do esforço individual, da solidariedade e do respeito pelo outro. Criou-se num mundo em mudança, mas resistiu sempre ao afrouxamento dos pilares da sua conduta – a liberdade, a justiça, a honestidade, a coerência e a modéstia.

Em 1966 entrou para a Academia Militar, com 20 anos, um pouco mais velho do que a maior parte dos seus camaradas de curso. Essa circunstância, acrescida às suas qualidades de trabalho e à superior capacidade intelectual, granjearam-lhe a admiração e o respeito de todos. Facilmente foi reconhecido como chefe de Curso. Nos seus documentos militares ficou registada uma informação pouco vulgar, em que se lê: “Chegam até ao comandante do Corpo de Alunos da Academia Militar, ultimamente e de todas as origens, as mais elogiosas referências ao cadete Marques Júnior pela sua constância na prática de autênticas virtudes militares, sua modéstia, seu desembaraço e especialmente pela honestidade de processos que o Curso deliberadamente adoptou como norma permanente”.

Optou pela Infantaria, a rainha das Armas, o que o levou a Mafra e à Escola Prática de Infantaria, a fim de frequentar o respectivo tirocínio para oficial.

Já como alferes foi mobilizado para uma comissão militar em Angola, em 1971-72, regressando à Escola Prática de Infantaria, onde se manteve até ao 25 de Abril.

Neste curto período fez a sua aprendizagem política de base, na companhia de muitos dos seus camaradas de armas, em vertiginosa caminhada que partiu de uma difusa consciência sobre a situação de Portugal, do regime que o governava, e das políticas que mantinham o povo prisioneiro no seu dia-a-dia e ameaçado por uma longínqua guerra sem solução, até à madrugada redentora, o dia “inteiro e limpo”, que se fez referência de vida de muitos dos que nele participaram, mas especialmente de Marques Júnior.

Com o seu prestígio intacto, Marques Júnior manteve a capacidade de representação do seu Curso, transportando para o Movimento dos Capitães, desde o primeiro momento, um peso que só a muito poucos foi reconhecido. As suas opiniões traziam a força de uma retaguarda firme, decidida e pronta para cumprir uma missão inevitável e progressivamente exigida.

Esteve presente nas primeiras reuniões de oficiais, incluindo em Alcáçovas, a 9 de Setembro de 1973, como tenente, vindo a ser eleito para a primeira comissão coordenadora do Movimento, em Óbidos, no dia 1 de Dezembro, em representação da Infantaria e da sua Escola Prática. Nunca mais deixou de estar presente nas grandes decisões sobre o rumo do Movimento, em especial na decisão de derrubar o regime através de uma acção militar. Numa conversa publicada mais tarde, Sousa e Castro e Candeias Valente recordam uma atitude que lhes ficou na memória:

“Candeias Valente – As pessoas estavam (…) preocupadas (…) e então houve uma intervenção importante do Marques Júnior…
Sousa e Castro – Ele dizia que ou se fazia imediatamente alguma coisa, ou então era a própria Escola Prática de Infantaria que fazia…
Candeias Valente – Exacto, isso mostra uma atitude radical, mas também mostra o espírito e a vontade de avançar que vinha da parte dele…
Sousa e Castro – Porque ele dizia assim: - Ou vocês fazem, ou nós, os tenentes de Infantaria, vamos para a frente…” (Joana Pontes, A Hora da Liberdade, p. 88).

Chegou enfim a madrugada libertadora, ponto alto na vida dos militares de Abril de que Marques Júnior sempre fez parte. Muito poucos hesitaram na hora decisiva e o Movimento das Forças Armadas, ao som de Grândola Vila Morena, arrancou para um combate decisivo, disposto a vencer onde tantos tinham falhado.

Bastaram algumas horas para que a coragem, a competência e a determinação de um punhado de militares derrubasse uma longa ditadura de 48 anos e iniciasse um novo regime, onde a Liberdade, a Democracia e a Paz se ergueram como valores definitivos. Marques Júnior viveu empolgado, como tantos portugueses e todos os militares de Abril, estes dias primeiros da Revolução dos Cravos, que tão orgulhosamente invocaria pela vida fora.

Passados os dias de euforia, e quando o MFA se organizava para participar na transição política necessária, Marques Júnior nunca deixou de pertencer ao órgão máximo da sua estrutura – Comissão Coordenadora, Conselho dos Vinte, Conselho da Revolução. As suas opiniões, ponderadas e sempre preocupadas com os equilíbrios no seio do MFA, eram escutadas com atenção e apreço, e muitas vezes foram decisivas para sustentar ou alterar o rumo dos acontecimentos.

Ainda os ecos da acção militar de 25 de Abril se ouviam, quando o MFA procurava a fórmula adequada para o seu envolvimento no processo que se iniciava, e já o tenente Marques Júnior era nomeado representante do MFA junto do Governador Militar de Lisboa, como genuíno defensor dos princípios do MFA e do seu Programa.

Contudo, a primeira ideia do jovem tenente tinha sido a de recolher à sua unidade de origem, terminada a acção libertadora do 25 de Abril. Mas não hesitou quando foi chamado a tomar parte no envolvimento dos militares no exercício do poder, integrando a Comissão Coordenadora do Programa do MFA, e passando mais tarde ao Conselho da Revolução, como o seu mais jovem membro.

Aí viveu todos os sobressaltos do processo que se desenvolveu na sociedade portuguesa, com as dúvidas e as certezas que o empenhamento dos militares implicava. Nunca afrouxou a sua determinação na construção de um regime democrático e no entendimento de que a intervenção dos militares deveria ser temporária. Nunca desistiu de envolver todos os seus camaradas numa solução consensual. Nunca esmoreceu nas suas convicções, acompanhando sempre aqueles que continuaram a lutar por um regime democrático, livre e mais justo.

Marques Júnior foi construindo pontes, restabelecendo diálogos, explicando razões e evitando confrontos. Nos momentos mais críticos ocupou o centro do furacão, criou caminhos de aproximação e atenuou radicalismos. Viveu intensamente todas as horas do processo revolucionário, como uma missão imperiosa que impôs a si próprio e com a qual todos pareciam contar. Nesses dias vieram ao de cima as suas qualidades de homem, de cidadão e de militar – coragem e prudência, serenidade e determinação, persistência e tolerância.

Marques Júnior deixou uma marca pessoal nos dias mais difíceis do pós-25 de Abril, unanimemente reconhecida e por todos aplaudida. Toda a sua vida posterior ficou prisioneira (felizmente prisioneira) dessa marca inicial, como uma exigência a si próprio, mas também como uma exigência dos outros, e da qual Marques Júnior nunca pôde (nem quis) libertar-se.

Escreveria Marques Júnior, mais tarde: “A crise do Verão de 75 será na História de Portugal um marco que dará origem a interpretações várias. Haverá vencidos e vencedores, bons e maus, políticos e politiqueiros, verdades e mentiras, mas… houve sobretudo dramas vividos por uns e por outros, cujos reflexos durante muito tempo se farão sentir!...” (José Gomes Mota, A Resistência, p. 220).

No trajecto destes anos são de destacar algumas missões que cumpriu com um grande sentido do dever e um grato sentimento de satisfação pessoal.

Em 1977 presidiu às comemorações oficiais do 3º aniversário do 25 de Abril, pela primeira vez comemorado como Dia da Liberdade. Ficou na lembrança a grande exposição “Da Resistência à Libertação” levada a efeito no Museu de Arte Popular em Belém e dirigida por João Medina. Foi uma manifestação cultural de grande impacto, tornada possível com o firme apoio e incentivo de Marques Júnior, iniciativa que sempre recordou com orgulho.

Em 1982, já próximo do fim do período de transição, dois acontecimentos deixaram em Marques Júnior uma lembrança perene – a entrega das estrelas de general ao capitão João Sarmento Pimentel, na sua casa em S. Paulo, no dia 25 de Abril desse ano e a sua condecoração com a Ordem da Liberdade pelo Presidente da República, general Ramalho Eanes, pela primeira vez atribuída a um militar de Abril.

A viagem a S. Paulo, com passagem pelo Rio de Janeiro, foi um encontro comovente com portugueses e brasileiros, em que Marques Júnior, longe das tensões quotidianas de um período desgastante, se deixou envolver, como representante legítimo dos heróis do 25 de Abril, que agora todos podiam ver, ouvir e apreciar. O encontro com o Capitão foi um encontro de gerações, ali representadas por dois lutadores dos extremos temporais da resistência – ficaram frente a frente o primeiro combate, de 1927, e o último, de 1974. E reconheceram-se de imediato, na alegria de terem finalmente alcançado a Liberdade.

Condecoração com a Ordem da Liberdade, 1982.

A condecoração com a Ordem da Liberdade, atribuída ao membro mais jovem do Conselho da Revolução, simbolicamente representando os capitães de Abril, foi porventura um dos momentos mais altos da sua vida, para sempre guardado no seu coração. Diria Marques Júnior nessa ocasião: “Recebo pois esta condecoração em nome dos soldados e marinheiros, sargentos e oficiais que cumpriram em 25 de Abril de 1974 a sublime e honrosa missão de devolver a liberdade ao nosso povo. Em nome sobretudo dos que, entre eles, os capitães de Abril sem nome e sem rosto, sem a glória efémera das luzes da ribalta política, guardam pelo seu trabalho persistente e exemplar, no seio das Forças Armadas, a esperança de Abril e a certeza da Liberdade” (Extracto do discurso de António Marques Júnior na cerimónia de entrega da Ordem da Liberdade, 1982).

Terminado o Conselho da Revolução e cumprida a promessa e o desejo dos capitães de Abril de devolver por inteiro ao povo português a sua plena capacidade de construir e sustentar a democracia, Marques Júnior manteve ainda a pretensão de regressar ao Exército e à sua Escola Prática de Infantaria. Talvez não contasse que tudo tinha mudado. Mudara o Exército e mudara o jovem tenente, agora capitão, porque o tempo e os acontecimentos são inexoráveis.

Ainda assim, ficou três anos no Exército, entre 1982 e 1985, fazendo questão de demonstrar a sua capacidade de adaptação a novos tempos e enfrentando, dia-a-dia, os inevitáveis compromissos pessoais a que se sentia obrigado e as subtis exigências dos seus pares.

Demonstrado o que foi sua intenção demonstrar, ou seja, que nunca perdera a ligação à sua origem, e que se mantivera capaz de assumir as modestas funções próprias de um capitão de Infantaria (escolas de recruta, instrução, serviço diário), e apesar dos invulgares três louvores que esse período lhe proporcionou, Marques Júnior entendeu que a sua contribuição para a acção política não tinha chegado ao fim, antes tinha ainda muito para dar.

Foi com este entendimento que decidiu terminar a sua carreira militar e solicitar a passagem à reserva, o que aconteceu em Março de 1985.

António Marques Júnior iniciou então uma vida nova, não completamente estranha, pois durante sete anos ocupara um cargo político como conselheiro da revolução, mas de natureza diferente, de cariz partidário, como dirigente de um partido novo, constituído sob os auspícios de Ramalho Eanes, prestes a terminar então o seu segundo mandato como Presidente da República – o PRD, Partido Renovador Democrático.

Dissolvido o Parlamento nesse ano e marcadas eleições legislativas, o PRD alcançou quase 18% dos votos, e Marques Júnior foi eleito deputado pelo círculo de Setúbal, entrando no Parlamento para a 4ª Legislatura no dia 4 de Novembro de 1985.


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Ver: António Alves Marques Júnior, Homenagem ao “Deputado Capitão de Abril”, Assembleia da República, 2014.


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