sábado, 29 de abril de 2017

PARA QUANDO UM ROTEIRO DE FONTES PORTUGUESAS PARA A HISTÓRIA MILITAR?



Em 2010, o meu amigo João Vieira Borges desafiou-me a colaborar num número especial da Revista de Artilharia que seria dedicado à Guerra Peninsular, que veio a ser publicado em Setembro desse ano. Aí está incluído um texto da minha autoria intitulado “A Artilharia Portuguesa na Guerra Peninsular - Um projeto para um roteiro de fontes primárias”. O trabalho compõe-se de duas partes, uma de enquadramento da questão e outra de um anexo em que tentei relacionar os livros com interesse para a história da Artilharia no período alargado de 1641 a 1876 incluídos no Fundo 5 do Arquivo Histórico Militar (Livros de Registo Antigos).
A proposta que então fazia era muito clara – a criação de um grupo de estudos com a finalidade de iniciar um roteiro de fontes para o estudo da Artilharia portuguesa. Acho que caiu em saco roto, e daí o título com que agora apresento a primeira parte do texto.
O original está disponível no sítio da Revista de Artilharia.


Aspeto de uma sala do Arquivo Histórico Militar, podendo observar-se
 os livros da Fundo 5, Livros de Registo Antigos, fundamentais
para o estudo da participação portuguesa na Guerra Peninsular."


Desde o início da Revolução Francesa, os governos europeus sabiam os perigos que se aproximavam. Com a ascensão de Napoleão, a ameaça ficou mais clara.

No concerto europeu pertencia à Inglaterra a condução da oposição às pretensões de Napoleão. Portugal (como outros países) não encontrou forma de satisfazer ambos os lados.

Os acontecimentos encarregaram-se de levar D. João VI para o Brasil, a coberto de um acordo com a Inglaterra, e de trazer as tropas francesas até Lisboa, com direito a serem bem recebidas.

A ambiguidade durou pouco. Em menos de um ano, entre finais de 1807 e Agosto de 1808, concluiu-se a primeira invasão francesa (se, no contexto das pretensões franco-espanholas não incluirmos a anterior invasão de Portugal de 1801). Junot, com o seu exército da Gironda, atravessou a Espanha, entrou pela Beira Baixa, passou o Zêzere e entrou em Lisboa com um exército exausto, quando a esquadra britânica se afastava da costa levando o príncipe regente e mais 15.000 pessoas fugidas às tropas e ao “terror” napoleónico.

Para se chegar à Convenção de Sintra de 30 de Agosto de 1808, tinha sido necessário que as forças franco-espanholas ocupassem Portugal, que o exército inglês desembarcasse na Figueira da Foz, que se travassem os combates da Roliça e do Vimeiro, em que os franceses foram derrotados, que os povos de Portugal e de Espanha se revoltassem contra os franceses, e que os ingleses não fizessem questão de salvaguardar a honra portuguesa, mas apenas os seus efetivos militares.

Com a chegada de novas forças à Península Ibérica, tanto francesas como inglesas, um dos polos fundamentais da grande estratégia dos contendores transfere-se para a Península, constituindo-se, a pouco e pouco, uma força anglo-portuguesa-espanhola que, a partir de 1809, iniciou um grande movimento de contraofensiva e perseguição às tropas francesas, obrigadas a recuar a partir do Porto, Buçaco, Linhas de Torres, Sabugal (em território português), e depois Fuentes de Oñoro, Badajoz, Albuera, Ciudad Rodrigo, Salamanca, Vitória, San Sebastian, Pirinéus (em território espanhol), entrando finalmente em França, a partir de Julho de 1813.

Esta Guerra Peninsular, como prefere a historiografia inglesa, Guerra da Independência, como a Espanha a entende, ou as Invasões Francesas, como a época é vista pela parte portuguesa, constituiu um teatro de operações militares de notáveis experiências e de grandes ensinamentos, tanto em termos de tática, como de emprego das forças, logística, manobra, recrutamento, relação com as populações e todos os demais domínios da ciência militar.

É por isso que, passados 200 anos, se continuam a publicar estudos em número pouco vulgar, suscitando o período os mais diversos pontos de vista. Quase se pode dizer que parece inesgotável a matéria para novas abordagens.

O estudo das campanhas da Guerra Peninsular proporciona um melhor conhecimento não apenas dos aspetos militares da época, mas também da sociedade, das relações entre as nações e do pensamento e atitudes dos vários intervenientes. Em relação aos assuntos militares, a questão da artilharia e do seu uso não é dos temas que tenha merecido mais atenção historiográfica, embora sejam inúmeros os estudos efetuados.

Por isso há ainda bastante trabalho a fazer, mesmo no que respeita à participação da Artilharia portuguesa nestas campanhas. Interessa-nos aqui focar sobretudo a utilização de fontes primárias para fomentar estudos que ainda não foram feitos.


Em primeiro lugar, a questão das fontes primárias para o estudo da Artilharia na Guerra Peninsular deve pôr-se ao nível da própria Guerra Peninsular e dos fundos documentais que lhe dizem respeito, dispersos por muitos e diversos Arquivos e outros organismos.

Em Portugal, devemos começar pelos Arquivos militares, em especial o Arquivo Histórico Militar, onde se concentra grande parte da memória documental desta época, em especial no que respeita ao Exército Português. A documentação disponível é imensa e a sua abordagem sistemática podemos dizer que mal começou.

Uma parte importante desta documentação está disponível on-line através da base de dados do AHM chamada “Da Guerra Peninsular à Regeneração”, acervo com cerca de 1.300.000 imagens, sendo que mais de 30% dizem respeito ao período da Guerra Peninsular. Neste enorme arquivo, encontram-se milhares de documentos respeitantes à Artilharia (1).

Mas o acervo mais importante sobre a Artilharia deste período (que pode alargar-se a parte do século XVIII e prosseguir até ao terceiro quartel do século XIX) existente no AHM é constituído pelos fundos dos “Livros de Registo Antigos” e dos “Livros Mestres”.

O fundo dos “Livros de Registo Antigos” é constituído por uma coleção de livros de registo de correspondência, atos administrativos, financeiros e contabilísticos de diversas organismos e unidades militares. Como se diz na apresentação do respetivo catálogo, “os livros de registo, pela natureza da sua finalidade no sistema burocrático dos órgãos a que pertenceram e pela cuidadosa preocupação de transcrição integral dos textos da documentação recebida, expedida e produzida, acabaram por se transformar em testemunhos documentais de extraordinária relevância. De facto, eles oferecem ao investigador, de uma só vez, acesso aos conteúdos de séries documentais completas, cujos originais andam dispersos, não se encontram, ou simplesmente desapareceram” (2). 

Nesta enorme coleção de 3.712 livros de registo, encontramos 320 livros relacionados com órgãos ou unidades de Artilharia, respeitantes ao período de 1641 a 1876. Com informação sobre a Guerra Peninsular temos, pelo menos, 32 livros.

Desta coleção juntamos, em anexo, uma lista dos livros respeitantes ao estudo da Artilharia para todo o período.

Por seu lado, a coleção dos “Livros Mestres”, que constituem os livros de registo da vida dos órgãos e unidades militares, no que respeita essencialmente ao seu pessoal, mas muitas vezes também a material e animais, representa uma das mais impressionantes coleções do Arquivo Histórico Militar, com cerca de 7.500 livros, entre o século XVII e 1910, altura aproximada em que foram substituídos pelo chamado “Registo Geral”.

Aqui podemos seguir a vida das unidades e órgãos militares, quase diríamos dia a dia, já que neles eram registadas todas as informações respeitantes ao seu pessoal, assim como as alterações ocorridas.

A estas duas coleções fundamentais deve acrescentar-se a documentação dispersa por diversas Secções arquivísticas e também a respeitante aos fundos próprios dos órgãos e unidades de Artilharia, que se foram constituindo e que hoje são memória do Exército Português. Sem esquecer, evidentemente os processos individuais dos militares que serviram no Exército, sendo de especial interesse os dos oficiais de Artilharia, desde o início do século XIX e muito irregularmente da segunda metade do século XVIII.

Contudo, o estudo das fontes primárias da Artilharia Portuguesa não pode ficar-se pelo Arquivo Histórico Militar. Os Arquivos portugueses, desde o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, passando pelos Arquivos Distritais e acabando nos Arquivos Municipais, todos têm (ou podem ter) arquivos militares e certamente referências à Artilharia, em especial se tivermos em conta os municípios e distritos onde unidades de Artilharia tenham tido a sua sede.

O trabalho a realizar poderia constituir-se num elemento essencial de um roteiro de fontes militares dos Arquivos portugueses, projeto que poderia ser assumido pela Comissão Portuguesa de História Militar ou outra estrutura do Ministério da Defesa Nacional, em colaboração com os Ramos das Forças Armadas através dos seus órgãos culturais.

E, ainda assim, o acesso às fontes primárias para o estudo da Artilharia Portuguesa, como parte relevante do Exército da Guerra Peninsular, não estaria completa, pois deveria contar-se com algumas fontes estrangeiras de grande importância.

Como refere o historiador António Pedro Vicente, existe um manancial riquíssimo de fontes, “nomeadamente em Espanha, França e Inglaterra”, assim como, acrescentamos nós, no Brasil, onde o fundo “Negócios de Portugal” pertencente ao Arquivo Nacional do Rio de Janeiro e referente à presença de D. João VI no Brasil reúne um vastíssimo conjunto documental decerto também importante para a história militar de Portugal.

Seguindo as informações do mesmo autor, que demoradamente contactou com os arquivos franceses do período napoleónico para os seus estudos, “é nos arquivos do Ministério da Guerra, em Vincennes, que encontramos o maior número de documentos que interessam ao nosso século XIX”, completando depois a sua informação – “Todos estes documentos estão depositados nos Archives Historiques du Ministère de la Guerre, em Vincennes, na secção de Mémoires et Reconaissances du Portugal, ocupando os códices 1354 a 1369” (3).

Em Inglaterra são muitos os arquivos que guardam memórias da Guerra Peninsular. Em primeiro lugar existe um fundo que de há muito está reconhecido como importantíssimo para o estudo da época e também para um mais profundo conhecimento da presença de Wellington em Portugal. Trata-se da coleção The Wellington Papers, depositados na Biblioteca da Universidade de Southampton. Já está disponível on-line uma base de dados referentes a este arquivo, mas infelizmente ainda muito incompleta, pois não ultrapassa o ano de 1808. Diferente é a situação da coleção dos Wellington’s Dispatches, que podem ser consultados diretamente, p.e., na página do The War Journal.

Contudo, outros acervos documentais podem ser acrescentados ao projeto, incluindo coleções depositadas na British Library e nos Arquivos Nacionais.

Também em Espanha se encontra um importante manancial de documentação original referente a esta época e com interesse para a história militar de Portugal. Ainda recentemente o historiador António Ventura publicou os planos espanhóis de invasão de Portugal na transição do século XVIII para o XIX (4).

Será ainda conveniente procurar conhecer alguns arquivos americanos, incluindo os de algumas universidades, onde muitas vezes somos surpreendidos com a existência de fundos e coleções documentais inesperados, mas importantes para a investigação sobre temas militares, em especial da época contemporânea.

Embora um projeto de levantamento de fontes primárias como o que propomos devesse ser iniciativa conjunta, abarcando toda a documentação com interesse para a história militar, a verdade é que está sempre em aberto que possa iniciar-se por um estudo parcial. Não nos parece por isso descabido que a Revista de Artilharia possa iniciar esse projeto, com especial incidência na documentação com interesse direto para a história da Artilharia, podendo assim abrir um caminho que outros viriam naturalmente a seguir.

Também faria todo o sentido começar pelos arquivos mais acessíveis, como o Arquivo Histórico Militar, onde será necessário efetuar um trabalho moroso, que bem poderia servir de modelo para outros que se seguissem.

O problema poderá estar em encontrar uma equipa disponível, mas estou certo que entre tantos e tão valorosos artilheiros, em especial entre os que se encontram na situação de reserva e reforma, não será difícil constituir um grupo que se dedique a sistematizar e a dar a conhecer as fontes documentais para a história da sua Arma, organizando um instrumento moderno de estudo, acessível a todos. Prestaria com isso um serviço de reconhecido interesse, não apenas para a Arma, mas também para a comunidade científica e académica. Seria mais um ato de prestígio para a Artilharia Portuguesa.

 .....
    (1) Ver a base de dados em: http://www.infogestnet.com/
(2)     Livros de Registo Antigos (1625-1910), Fundo 5, Inventário. Lisboa: EME/AHM, 2005, p. 33.
(3)     António Pedro Vicente, O Tempo de Napoleão em Portugal – Estudos Históricos. Lisboa, Comissão Portuguesa de História Militar, 2000, p. 33.
(4)     António Ventura, Planos Espanhóis para a Invasão de Portugal (1797-1801). Lisboa: Livros Horizonte, 2006.



1 comentário:

  1. Gostei muito de mais este trabalho do Camarada Aniceto Afonso. É de grande utilidade para quem deseje embrenhar-se na pesquisa que o assunto trata. Cruz Fernandes

    ResponderEliminar