sábado, 22 de abril de 2017

PARA MIM, O 20º ANIVERSÁRIO DO 25 DE ABRIL FOI DIFERENTE



Quando comemorámos os 20 anos do 25 de Abril, em 1994, a A25A encarregou-me de fazer a comunicação principal na sessão solene.

Foi esta a comunicação que apresentei:



Meus camaradas de Abril,

Encarregou-me a Associação de falar nesta cerimónia de abertura das comemorações do vigésimo aniversário do 25 de Abril. Que o fizesse como participante e capitão de Abril e como estudioso (do ponto de vista da História) do facto que comemoramos.

Ao fazê-lo, agradeço penhorado a confiança da Associação e procurarei, dentro das limitações que me são próprias, tecer algumas considerações que presumo relevantes.

Cartaz comemorativo do 20º aniversário do 25 de Abril,
edição da A25A, autor Júlio Pomar.

Temos perante nós um acontecimento histórico, realizado há vinte anos, por um grupo alargado de militares. O facto concreto, ocorrido a 25 de Abril de 1974, relaciona-se historicamente com a deposição, através do uso da força, do regime então vigente. Na História das sociedades, há factos destes – definidos, concretos, incontornáveis. Mas não há factos históricos isoláveis. Eles estão sempre numa sequência de outros factos, precedentes e consequentes, tanto igualmente localizáveis, como impercetíveis ao observador desatento. Quando nós, membros de uma civilização, de uma sociedade, de uma comunidade, nos movimentamos, arrastamos pelo caminho marcas profundas, sinais extensos, heranças longínquas. O que é verdadeiramente aliciante na compreensão da trajetória histórica do homem (individual ou social) é a tentativa de penetrar nas esferas de influências mútuas, discernindo o breve tempo de um facto com o peso da sua específica intensidade e a dimensão de outros tempos, de duração variada e interferência complexa.

O 25 de Abril de 1974, que vamos comemorar é, em si, um facto breve de volumosa espessura. Não tem, em larguíssimo tempo histórico, antes ou depois, outro facto que possa sobrepor-se-lhe em termos de influência sobre o destino do homem português.

Aliás, comparável em termos de brevidade e espessura histórica, só existirão meia dúzia de dias na História de Portugal. Será a assinatura do Tratado de Zamora que inicia formalmente a existência de Portugal, a vitória de Aljubarrota, que adia por duzentos anos a união ibérica, a conquista de Ceuta, que lança Portugal na aventura dos novos mundos, a Restauração, que recupera, para sempre, a independência perdida sessenta anos antes, a Revolução vintista, que proscreve o Antigo Regime, e a implantação da República, que extingue um sistema com mais de 750 anos.

O estudo histórico tem a fantástica capacidade de permitir viajar no tempo. É certo que o historiador, como homem, cidadão e participante do seu próprio tempo, não pode, material e espiritualmente, deixar de carregar a canga da época em que vive, mas pode, quantas vezes recorrendo a um engenhoso esforço de imaginação, colocar-se em pontos variados da fita do tempo, permitindo-se perscrutar o passado ou olhar o futuro, cujo desenlace afinal já conhece. Esta é, quase sempre, a tarefa do historiador: escolher um ponto no tempo e, a partir daí, encontrar as linhas convergentes que conduziram a esse ponto e explicar como ele se projetou e que consequências ou marcas deixou na sociedade em que ocorreu. Contudo, quanto mais coincidência houver entre o ponto escolhido e um facto histórico marcante (ou quando rigorosamente coincidirem - o que não é raro nas opções dos historiadores), mais longos devem ser os recuos e os avanços no tempo objeto de estudo, porque são os factos marcantes que mais prolongadamente interferem no processo histórico da sociedade.

Quero com isto dizer que observar o 25 de Abril de 1974, sob o ponto de vista da História, requer necessariamente um recuo profundo e um avanço prolongado no tempo da sociedade portuguesa.

Requer sem dúvida a análise do regime que o tornou inevitável, da sociedade que o fundamentou, do grupo que o concebeu e dos homens que o executaram. Mas requer igualmente a análise do regime que gerou, da sociedade que lhe sucedeu, dos grupos e dos homens que souberam (ou não souberam) potenciar as oportunidades dele saídas. Mas como os momentos altos da História se repercutem extensamente, é sempre com cautelosa ponderação que os historiadores se aventuram nas análises dos tempos recentes.

A ciência histórica impõe a inquestionável exigência da imparcialidade. E embora fazer história seja sempre fazer escolhas, é com verdadeiro zelo que se procura a objetividade das opções. Nenhum historiador de mérito tentará menosprezar a importância histórica do 25 de Abril de 1974. Poderão explicar, interpretar ou entender de forma diferente o complexo histórico que justificou a sua emergência ou analisar distintamente o processo a que deu origem. Mas todos têm estado concordantes, em relação à decisiva importância da ação militar que marcou o reinício da democracia em Portugal.

Por nós, que jamais ousaremos tomar o título de historiador, respeitando embora os princípios essenciais do labor histórico, não enjeitamos a deliberada opção pelos traços que fazem do 25 de Abril o passo primordial da recuperação da nossa liberdade e da implantação da nossa democracia. Também não escondemos, correndo o risco da história apressada (mas tranquilos por sabermos do seu carácter provisório), que duas causas principais estiveram na base do movimento militar que conduziu ao 25 de Abril: a guerra colonial e (afinal, causa da causa, ou talvez causas de influência mútua) a natureza do próprio regime do chamado "Estado Novo". Se quiser agora, ultrapassando porventura as normas difusas da ciência histórica, mas optando por um pensamento empenhado, saber da justiça da causa que guiou os capitães de Abril, deveria perguntar: Quem optaria por voltar a um regime autoritário, de verdade única, de absoluto controlo da pessoa humana? Quem gostaria de voltara um regime de um só partido, depositário dos únicos valores válidos? Quem desejaria reconstituir um sistema liberticida, onde os direitos e as garantias dos cidadãos se concebam em função do próprio sistema e dos seus próceres? Quem admitiria o regresso da polícia política, da ameaça permanente, das perseguições, do esmagamento das oposições, das prisões políticas, dos tribunais plenários, das medidas de segurança, da militarização da juventude e do cidadão? Quem suportaria de novo a censura, a propaganda, a polícia do espírito? Quem toleraria de novo o regime da "superstição das obras", feitas à custa da dignidade dos cidadãos? Quem permitiria o regresso do regime da emigração massiva, da ignorância, do medo, da doença, do analfabetismo e da pobreza? Quem conseguiria viver hoje num país isolado, acerbamente criticado e condenado nas mais diversas instâncias internacionais? Quem desejaria voltar ao regime da guerra?

A guerra. Detenhamo-nos um pouco sobre a questão da guerra. A História tende a deixar esfriar os factos para os incluir nas suas preocupações. É um erro que a sociedade seja arrastada pela mesma tendência. A guerra afetou diretamente cerca de um milhão de portugueses e indiretamente poucos terão sido os que lhe ficaram completamente imunes, isto durante um longo período de treze anos. Chega a ser incompreensível como podemos encerrar dentro de nós próprios, com fecho de sete chaves, a memória de um tempo tão marcante. Como se a guerra fosse uma vergonha individual ou um peso de consciência de cada um de nós. As guerras, podendo ser de natureza diferente, têm todas as mesmas características: são violentas (não é a guerra o uso da violência na máxima escala?), mortíferas e suscetíveis de encobrir fenómenos que excedem o direito e a razão. A guerra (e a guerra colonial é bem um exemplo disso) resulta de uma decisão política. Não são as Forças Armadas que fazem a guerra. As Forças Armadas cumprem missões de guerra. Também não fazem a paz - implementam acordos ou decisões de paz. Não é por isso razoável julgar as Forças Armadas e os seus membros, da mesma forma que se deve julgar o regime político que prolongou irracionalmente a guerra. De facto, as Forças Armadas, com imenso esforço, sacrifício, inteligência e capacidade, deram ao poder político treze anos de folga, de espera, de cobertura, para encontrar uma solução política, negociada, aceite internacionalmente. Como é possível que as Forças Armadas demonstrem hoje injustificadas suscetibilidades relativamente à sua participação na guerra, quando, no cumprimento do seu dever profissional, demonstraram possuir capacidades de excecional valor, que lhes permitiram resistir para além do que seria razoável e justo pedir-lhes? Como podem as Forças Armadas sentir-se hoje questionadas, quando se condena o excessivo prolongamento da guerra colonial ou mesmo a sua emergência?

É bem certo que foram os capitães de Abril que impuseram, mesmo contra a opinião de outros militares, o fim das hostilidades nas colónias portuguesas. Mas nenhum militar, mesmo daqueles que não estiveram empenhados no 25 de Abril, com razoável ponderação, pode continuar a sustentar a justeza da política colonial do regime derrubado. O 25 de Abril, relativamente à guerra, veio impor uma solução com muitos anos de atraso. É este atraso (e em História os atrasos pagam-se normalmente muito caro), que justifica amplamente as soluções de estreita manobra política conseguidas para o processo de descolonização. Soluções que, apesar de tudo, deixaram em aberto imensas possibilidades de cooperação, só muito fugazmente aproveitadas, desde então até à atualidade.

Em suma, os capitães de Abril, através de um complexo processo de aproximação e envolvimento coletivo, acabaram por tomar consciência do cruzamento dos dois erros que referimos - a natureza do regime que oprimia os portugueses e a injustiça e inutilidade de prolongar uma guerra sem sentido. Foi essa consciência que os conduziu ao 25 de Abril. Quando ocorrem roturas a este nível, salva-se, historicamente, quem mais oportunamente compreende as contradições em que está envolvido e encontra para elas uma solução. É essa a grande virtude do Movimento dos Capitães.

No Movimento dos Capitães, como trabalhos de natureza sociológica já realizados o demonstram, estiveram representados todos os grupos sociais incluídos nas Forças Armadas - aí estiveram filhos de agricultores, de profissionais liberais, de militares, de proprietários, de funcionários públicos, de comerciantes, de empregados qualificados, de operários e artesãos. A sua composição social acaba por ser o espelho da própria sociedade portuguesa, o que de alguma forma reflete a vontade dessa sociedade. De facto, mudar o regime e pôr fim à guerra era, isso sim, um verdadeiro "imperativo nacional', que os militares de Abril cumpriram como um dever e que a História para sempre reconhecerá.

Resta-nos agora, colocados que estamos num ponto fulcral da história portuguesa recente, em 25 de Abril de 1974, espreitar o futuro que com ele e a partir dele fomos construindo, em Liberdade. A liberdade, retomada pelo povo português a partir de 25 de Abril de 1974, é o fundamento do regime atual. Mas a liberdade, por si, não soluciona os problemas de uma sociedade. São os cidadãos, munidos da liberdade como instrumento, que transformam o sistema a que pertencem, que interferem nos caminhos do seu próprio destino, que se aproximam das soluções mais desejadas. Não há liberdade sem cidadãos, como não há cidadãos sem liberdade. Os capitães de Abril, compreendendo-o desde o início, souberam, num gesto historicamente incomparável, deixar nas mãos dos cidadãos, o que aos cidadãos pertencia.

Não podemos lamentar o regime da liberdade. Devemos, sobretudo, intervir, a partir da nossa liberdade. Propor, transmitir, lutar pelos valores em que acreditamos; denunciar os abusos, os esquecimentos, os desvios; participar na mudança, na alternativa, na diferença. Ser livre, verdadeiramente livre, é talvez mais difícil do que o não ser - no que exige de responsabilidade, de empenhamento, de esforço quotidiano. Mas é isso a essência de um regime baseado na liberdade, de um regime democrático. Em democracia não deve haver cidadãos isolados ou isoláveis. E quando os cidadãos tendem a isolar-se ou a renunciar à relação com outros, é porque a democracia está começando a degradar-se. Duas liberdades isoladas podem, no limite, anular-se; duas liberdades conjugadas potenciam a Liberdade e movem a sociedade.

A democracia portuguesa, filha do 25 de Abril, é demasiado jovem (sobretudo, do ponto de vista da História de Portugal) para que possamos, sob qualquer pretexto, considerá-la esvaída ou exausta. A democracia, com 20 anos de existência, é já, para a nossa geração, um raro privilégio na história portuguesa. Cabe-nos, a todos, fazer do 25 de Abril de 1974 um verdadeiro ponto de viragem e inflexão da nossa história comum, como o dia em que varremos, em definitivo, da herança dos portugueses, as lágrimas de mais opressões.

A História, ciência do homem, assinalará o facto em páginas brilhantes.


Obrigado.


4 comentários:

  1. Obrigado Aniceto Afonso pela lição que aqui deixas. Cruz Fernandes

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    1. Caro Amigo,
      Muito obrigado, foi uma cerimónia muito sentida de que bem me lembro. Fazes falta nas nossas reuniões de 5ª feira. Abraço em Liberdade...

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  2. Extraordinário texto este que se mantém actual, que tem tudo o que importa analisar para abarcar a magnífica revolução dos cravos. Ao lê-lo, sentindo a sua intemporalidade, desejaria que todos os anos se inscrevesse no espaço público das comemorações abrilistas. Melhor não se fará!
    Abraço muito amigo para o autor.
    Jorge Golias

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    1. Meu caro, Muito obrigado pelas tuas palavras, dedicadas a todos os que se empenharam nesse dia inesquecível. Nessa altura saíam algumas coisas um pouco mais elaboradas, acho que foi o caso... Fico feliz. Abraço em Liberdade...

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