Em 29 de Novembro de 2006, a empresa de
Almada “SHP, Consultoria Informática Lda.” levou a cabo as suas II Jornadas
InfoGest/ArqGest, tendo-me convidado a apresentar uma comunicação sobre os
arquivos militares e sobre as relações que o Arquivo Histórico Militar
estabeleceu com a Empresa para construir a sua aplicação informática para
tratamento da documentação.
Aceitei com muito gosto, apresentei um
ponto de situação que está hoje bastante desatualizado, mas não deixa de ter
importância por ter marcado uma época na mudança dos Arquivos em Portugal. A
empresa SHP continua hoje empenhada nos seus objetivos e voltei a ter uma
relação com ela passados mais de dez anos, como explico mais à frente.
Em primeiro lugar, recordo aqui o texto
da minha comunicação de 2006.
1. Os arquivos militares
Quero
dizer-vos que estou aqui com muito gosto. Em primeiro lugar porque esta
iniciativa representa um enorme esforço dos seus organizadores para divulgar
uma acção ímpar a favor dos arquivos portugueses; depois porque estou ligado
desde o início ao desenho e à consolidação deste grande objectivo de construção
de um projecto informático português de grande qualidade, o InfoGest, tema das
Jornadas que aqui nos reúnem; finalmente porque, como director do Arquivo
Histórico Militar vai fazer 14 anos, sei que foi o InfoGest que fez a diferença
no projecto do Arquivo, obrigando a maior parte dos outros sectores a
acompanharem a mudança e a assumirem a necessidade de se incluírem na modernização.
É
esta última circunstância que me leva a falar-vos, em primeiro lugar, dos
arquivos militares, condição essencial de investigação académica e científica
sobre os assuntos respeitantes às Forças Armadas e à sua relação com a História
de Portugal.
Ao
contrário do que é normalmente pressuposto, o Estado português do pós-25 de
Abril entende que a administração pública é aberta e transparente, não havendo
motivos para fixar prazos temporais genéricos para a abertura da documentação
ou dos arquivos, com excepção de casos especiais. Toda a documentação produzida
pela administração pública tem sido considerada como imediatamente acessível,
salvo se estiver abrangida pelas excepções previstas na lei actual. O Estado,
obrigado a garantir sistemas de arquivos eficientes, tem a obrigação de
disponibilizar o acesso ao seu labor administrativo e à sua própria memória,
proporcionando dessa forma o exercício de um direito de cidadania.
Ou
seja, o Estado e as suas instituições não têm que presumir intenções de quem
consulta a documentação resultante das suas actividades, ou de como utiliza e
se serve da informação nela contida. São apenas obrigados a resguardar o que a
lei presume como de conhecimento inconveniente ou lesivo para outrem, durante
um prazo previamente definido.
A
estas considerações gerais, que me parecem claras e suficientemente prudentes,
não queria deixar de acrescentar uma nota pessoal.
Portão de entrada para o Arquivo Histórico Militar, em Santa Apolónia. |
Como
director do Arquivo Histórico Militar e responsável pela parte histórica do
Arquivo da Defesa Nacional depositado em S. Julião da Barra, contactei nestes
dois Arquivos com centenas de investigadores e dezenas de jornalistas. Sempre
procurei compreender as suas necessidades de conhecimento, de acesso à
documentação, de informação necessária aos seus objectivos de investigação.
Tenho procurado interpretar a lei em favor da investigação, mais do que em
favor da tradição de reserva, embora tendo sempre em conta o que nela é
imperativo. Pois nunca, mas nem num único caso, alguém utilizou abusivamente
qualquer informação indevida ou qualquer erro de acesso.
Os
leitores dos Arquivos, especialmente aqueles que frequentam pessoalmente as
suas salas de leitura, com o fim de se informarem, fundamentarem as suas teses
ou basearem as suas reportagens ou reconstituições históricas, são pessoas de
enorme honestidade intelectual, de profundo e inteligente sentido patriótico,
de sólidas convicções científicas e profissionais. Eu pelo menos assim o
presumo e assim o tenho sentido.
Devo
também afirmar uma evidência que me parece relevante – a administração do
Estado deve ser transparente e as instituições cumpridoras não podem recear a
verdade. A sociedade moderna e os cidadãos conscientes e livres exigem
explicações claras, compreensíveis e sem subterfúgios. Os representantes do
povo e os encarregados da administração pública devem, em permanência,
explicações abertas aos cidadãos que os sustentam. Por isso os Arquivos não são
esconderijos, são casas de portas e janelas abertas; por isso a administração
pública não pode ser abusivamente secreta, antes liminarmente transparente.
Quero
dar-vos um exemplo concreto. Respeita aos arquivos da guerra colonial. Como
todos sabem, a acção das Forças Armadas portuguesas em Angola, na Guiné e em
Moçambique na parte final do regime do Estado Novo, foi decidida pelo Estado
português, na forma objectiva que então assumia – era de sua natureza agir sem
publicidade, sem transparência, sem igualdade, sem justiça e sem imparcialidade
(estas palavras estão hoje em vigor, como princípios de acção da administração
pública). A acção militar foi por isso considerada como um acto secreto. Para a
administração pública não havia guerra, na sociedade não havia discussão.
As
Forças Armadas Portuguesas estiveram empenhadas numa guerra de silêncios.
Imagem da Guerra Colonial retirada do Portal InfoGestNet. |
É
por isso que, neste contexto, ganha relevo que o Exército, logo em 1995 (20
anos após as últimas operações militares) e pouco depois da publicação da lei
do acesso aos documentos da administração pública, admitisse a abertura dos
arquivos sobre a guerra, aos quais deviam aplicar-se apenas as exclusões
previstas na legislação em vigor. Foi esse passo que possibilitou a recolha de
muitas das informações necessárias à abordagem de algumas temáticas que
felizmente têm vindo a público. É isso que vem impulsionando a investigação
sobre esse importante período da história militar recente em Portugal. É isso
que sustenta a opção por diversas teses de doutoramento e outras, que hoje se
encontram em curso.
Não
me parece necessário referir os temas destas teses ou a sua importância. O que
é necessário evidenciar é que só a disponibilização (aliás obrigatória) dos
arquivos, possibilita essa investigação; e que essa investigação valoriza e
consolida o conhecimento da memória colectiva dos povos.
Mas
nem tudo está bem em Portugal, no que respeita aos arquivos. O último inquérito
efectuado pelo Arquivo Nacional (Torre do Tombo) “descobriu” mais de 700 Km
(digo bem, 700 Km) de documentação respeitante à administração pública, não
integrada em nenhum arquivo histórico e em parte significativa completamente
abandonada, como a comunidade arquivística muito bem sabe.
Nestas
circunstâncias, parece-me óbvio que as Forças Armadas só terão a ganhar se
souberem participar na construção de uma consciência colectiva da sua missão (no
período da guerra, no 25 de Abril, no período posterior e na actualidade),
permitindo e incentivando o conhecimento de si próprias.
2. O Arquivo Histórico Militar
Quando
iniciei as minhas funções como director do Arquivo Histórico Militar em 1993, não
havia ali um único computador, não se punha a hipótese de utilização de
recursos informáticos nem se reconheciam as vantagens da construção de bases de
dados. O sistema de arquivos do Exército estava bloqueado, não havia pessoal
qualificado e não se utilizavam normas arquivísticas modernas.
O
percurso que fizemos até aqui será melhor julgado no futuro, mas não quero
deixar de vos apresentar um balanço, agora que estou prestes a deixar o
Arquivo.
A
primeira grande preocupação que tivemos foi a necessidade de elaborar um plano
estratégico a cinco anos, cujos objectivos contemplaram as principais
preocupações da época – normalização do sistema de arquivos do Exército, uso de
meios informáticos e de programas adequados, qualificação do pessoal e melhoria
e alargamento das instalações, em especial de novos depósitos.
No
final deste período, no ano 2000, tínhamos publicado a Portaria do Exército,
com o Regulamento de Conservação Arquivística do Exército, tínhamos aumentado o
quadro de pessoal efectivo de 8 pessoas não qualificadas para 25, sendo 5
técnicos superiores de Arquivo, tínhamos formado no Exército 16 técnicos
profissionais e cerca de 200 pessoas com um curto estágio de 12 horas, tínhamos
alargado as instalações de depósito para o dobro do existente antes e
finalmente tínhamos resolvido todos as questões relacionadas com o uso de novas
tecnologias – ligação à rede do Exército, rede interna, acesso a partir da Sala
de Leitura, computadores, e, last but not least, tínhamos construído, em
parceria com a empresa SHP, a primeira versão do InfoGest/ArqGest, como
aplicativo informático de gestão dos fundos documentais.
Hoje,
o Arquivo Histórico Militar tem percorrido um caminho sólido. O sistema de
transferências e incorporações funciona e é regularmente inspeccionado; tem
sido possível um ritmo razoável de abertura de novos fundos; ultrapassará em
breve as 100.000 descrições e um milhão de imagens; tem publicados 60 IDD dos
fundos antigos (catálogos e inventários de documentos); tem disponibilizado e continuará
a disponibilizar o acesso ao seu património através da Internet, com auxílio do
InfoGestNet, de que falaremos nestas Jornadas.
3. O InfoGest/ArqGest
Antes
de vos falar do que representou para o Arquivo Histórico Militar a adopção de
uma aplicação informática exigente, desejo prestar uma homenagem pública à
empresa SHP e aos seus responsáveis. Eles têm mantido uma persistência
impressionante, em favor de uma solução portuguesa e em português para a gestão
documental de que a administração pública e também privada tanto carece; eles
têm investido até ao limite na melhoria da solução que oferecem, esperando por
um reconhecimento que ninguém nega, mas que poucos assumem. Esta aplicação já
deu provas, e as Jornadas que aqui nos reúnem são disso exemplo. Aqui vamos
falar sobre os novos desenvolvimentos e os novos caminhos da gestão documental
– a gestão integrada, como paradigma do arquivista que sonha, a certificação
digital, como garante da “realidade” de um mundo imaterial, a transferência de
suporte com a salvaguarda das provas das operações efectuadas, através dos
metadados, para além de outros assuntos que a todos nos preocupam e que constam
do nosso programa de hoje. Não posso por tudo isto deixar de manifestar o meu
reconhecimento à SHP, pelo empenho, competência e profissionalismo dos seus
quadros, que tanto têm contribuído para a melhoria da questão do tratamento
informático do património documental português. Muito obrigado, pois.
Cartaz de publicidade do Sistema de Pesquisas InterArquivos (InfoGestNet). |
Só
mais uma palavra sobre a relação do Arquivo Histórico Militar e da aplicação
InfoGest/ArqGest.
Quero
testemunhar-vos como, à medida que o InfoGest foi penetrando no trabalho
quotidiano do Arquivo, ele se tornou a peça essencial da nossa actividade
interna. Todos sabem que há muitos problemas nos Arquivos que não se resolvem
com a Informática, mas esta pode fazer uma grande parte desse trabalho. A nós
obrigou-nos a decidir sobre a organização e estrutura do depósito; a codificar
todo o sistema de classificação; a normalizar toda a descrição, indexação e
utilização de linguagem; a tipificar os instrumentos de descrição
arquivísticas, como catálogos, inventários, guias, etc.; a decidir sobre o
acesso à informação e aos documentos; a participar no sistema de pesquisa
inter-Arquivos através da Internet, o InfoGestNet, que é hoje o mais avançado
sistema de pesquisa cruzada entre Arquivos, e sobre o qual teremos oportunidade
de ouvir falar nestas Jornadas.
O
último passo para tornar o InfoGest um produto de alta qualidade e um projecto
capaz de mudar radicalmente o desempenho dos arquivos que o utilizam foi o
InfoGestNet, aqui apresentado nas I Jornadas. Passados estes anos, já não temos
dúvidas que a disponibilidade dos fundos documentais através da Internet, num
sistema de “Pesquisa Inter-Arquivos”, veio indiciar uma transformação do
panorama da investigação histórica em Portugal. A capacidade que este sistema
tem demonstrado deveria ser suficiente para convencer aqueles que ainda estão
renitentes.
O
que eu quero dizer a todos é isto – é um facto que temos em Portugal e em
português uma aplicação informática de alta qualidade, barata, amigável e
experimentada. O que nos impede de a usarmos para alcançar o patamar seguinte,
ligando as comunidades arquivística e científica?
Faz
algum sentido a situação actual, em que se esboça um modelo de rede de
arquivos, sem a participação dos principais arquivos?
Queremos
contudo que fique claro que não preconizamos um sistema único. Apenas achamos
que se torna necessário, a bem daqueles que servimos, membros da comunidade
académica e científica ou simples cidadãos, efectuar a integração técnica dos
vários sistemas, excluindo aqueles que não dão respostas de qualidade ou que
acabaram por se tornar demasiado onerosos.
Não
alongo mais as minhas palavras. Só queria dizer-vos que me orgulho daquilo que
fizemos no Arquivo Histórico Militar. Mas tal não seria possível se não tivesse
sido acompanhado por uma equipa empenhada, uma equipa fantástica que se
entusiasmou com o projecto que desenvolvemos e continuamos a desenvolver no
Arquivo Histórico Militar. O nosso objectivo é servir os cidadãos,
salvaguardando a memória documental do Exército e criando as melhores condições
para uma relação fácil e produtiva.
Sei
que o nosso trabalho será continuado e acredito que a solução que ajudámos a construir
e que hoje mais uma vez vai ser objecto destas Jornadas, será a solução de
futuro para os Arquivos portugueses.
E
tenho a certeza que a comunidade arquivística saberá dar uma resposta cabal aos
desafios que enfrenta, através de passos concretos que resolvam problemas
concretos, sempre no respeito do seu desígnio ético – cumprir os seus deveres
de cidadania e de profissão.
As
coletividades centenárias de Almada
PS: Este ano de 2017 fui convidado
pelos responsáveis da empresa SHP, que continua na sua luta pela qualidade da
informação arquivística, a acompanhar um projeto posto a concurso pela Câmara
Municipal de Almada relativo ao tratamento arquivístico dos fundos documentais
das onze coletividades centenárias do concelho. Sendo um trabalho aliciante
como se imagina, aceitei e estamos a construir uma base de dados muito
importante para o conhecimento da história das coletividades mais antigas de
Almada, que guardam muita da memória das classes trabalhadoras do concelho.
Imagem de um documento pertencente ao fundo documental da Associação de Socorros Mútuos Primeiro de Dezembro. |
Nesta altura já estão on-line os
arquivos relativos a três delas, podendo ser consultados na plataforma
InfoGestNet da SHP. São elas: Associação de Socorros Mútuos Primeiro de
Dezembro, Sociedade Recreativa Musical Trafariense e Clube Recreativo União e
Capricho.
Imagem de um documento assinado pelo Rei D. Carlos, pertencente ao fundo documental da Sociedade Recreativa Musical Trafariense. |
Imagem de um documento do fundo pertencente ao Clube Recreativo União e Capricho. |
Notas:
1.
Para
entrar na plataforma: http://www.infogestnet.com/
2.
Clicar
em “Todos os Arquivos”
3.
Marcar
“Arquivo Histórico de Almada – Coletividades do Concelho de Almada” (estão por
ordem alfabética)
4.
Clicar
em “Pesquisa Orientada” (em cima, à esquerda)
5.
Abrir
a árvore e aceder ao classificador temático de cada coletividade
6.
As
imagens só estão acessíveis no último nível (Processos)
7.
Outros
tipos de pesquisa estão também disponíveis, mas deixo isso à curiosidade de
cada um.
Nota final: Hoje o Arquivo Histórico Militar já não usa a aplicação informática InfoGest/ArqGest, embora a sua base de dados continue a estar disponível a partir do Portal InfoGestNet, embora com limitações.
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