Nos dias 27 de fevereiro a
1 de março de 2014, o Instituto de História Contemporânea organizou uma
conferência internacional chamada "Resistir à Guerra no séc.
XX"/"Resisting war in the 20th century", para a qual me convidou
a proferir uma conferência.
Escolhi falar sobre o
Movimento dos Capitães e aquilo que ele representou de resistência à Guerra
Colonial e de esperança para a sociedade portuguesa. A sessão decorreu na Torre
do Tombo e o meu título foi este: "Do Movimento dos Capitães ao MFA – Uma Forma de
Resistir à Guerra".
Pareceu-me agora uma boa
altura para divulgar este texto, num tempo em que aparecem uns pretensos arautos
de uma intervenção dos militares na política, sem bem saberem o que isso
representa e como as sociedades se exprimem e se reconhecem. Prefiro por isso
outro título.
O
Movimento dos Capitães constitui-se a partir de meados de 1973, com o fim
último de levar a efeito uma intervenção política, que viria a ocorrer a 25 de
Abril de 1974 através de um golpe de Estado, a que se seguiu um processo
revolucionário.
Ora, uma intervenção política dos militares necessita de condições envolventes para poder ter êxito.
Em
primeiro lugar, é necessário uma disposição interna suficientemente densa que
garanta uma capacidade militar razoável. E como uma intervenção dos militares
na política equaciona sempre o uso da violência, os militares que se movimentam
devem ter a convicção dessa disposição do corpo militar, ou pelo menos de uma
sua parte significativa. Eles sabem que, como detentores legítimos dos meios de
violência, são o único corpo com capacidade para gerar uma acção de força para
atingir fins políticos.
Imagem simbólica do 25 de Abril, julgo que de Alfredo Cunha, na Rua do Arsenal e com o tenente Assunção como protagonista. |
Ou
seja, aqueles que preparam uma intervenção militar na política tendem a
acreditar que têm boas hipóteses de vencer.
Mas
em segundo lugar, e em absoluta complementaridade, é necessário que ocorram
condições sociais de suporte suficiente à acção. Este suporte não pode
basear-se apenas num apelo mais ou menos audível da sociedade envolvente, tem de
haver, da parte dos militares, a percepção clara desse apoio e desse suporte.
Estas
são as duas condições essenciais – a percepção, pelos militares envolvidos, de
uma capacidade militar razoável e de um suporte social suficiente.
Depois,
é também importante que exista uma causa compreensível, um motivo justificável
que possa ser apresentado, antes e depois, como razão para essa atitude dos
militares.
Ora,
o quadro da época, entre meados de 1973 e o 25 de Abril de 1974, não podia ser
mais favorável ao surgimento de um movimento militar com o objectivo de
derrubar o regime do Estado Novo.
Em
primeiro lugar, havia uma dissidência, mais ou menos subterrânea, entre a
instituição militar e o regime, do qual as Forças Armadas tinham sido um
duradouro suporte. Essa dissidência surda vinha da questão da Índia, e ameaçava
repetir-se na Guiné.
Em
segundo lugar, as Forças Armadas atingiam o limite da sua capacidade de
resistência a um conflito armado na guerra colonial muito desgastante e muito
prolongado, sem que, do ponto de vista político, se vislumbrasse uma solução aceitável
para lhe pôr fim.
Cena de um patrulha na Guerra Colonial. |
Em
terceiro lugar, era visível, para os mais atentos, uma degradação do apoio
social ao regime e havia, na sociedade, uma saturação evidente em relação à
guerra.
Pareciam
criadas as condições para que os militares actuassem, em moldes tradicionais.
Só
que a hierarquia das Forças Armadas estava tão comprometida na solução militar
da questão colonial como o próprio regime. O resultado foi que as Forças Armadas,
através dos seus altos representantes, nunca se mostraram capazes de dar o
passo em frente reclamado pelas condições envolventes. O facto de alguns
generais terem entrado em rotura com o regime, não põe em causa o comprometimento
do corpo militar com a situação.
São
estas as circunstâncias em que nasce o Movimento dos Capitães, dadas as
condições especiais da importância dos quadros médios no seio das Forças Armadas
(e em especial do Exército), face à natureza da guerra colonial em que estavam
envolvidas.
Por
um lado, os capitães vão adquirindo a capacidade de representar as Forças Armadas
e, por outro, constroem uma modalidade intervencionista nova.
Mas,
para que o movimento pudesse ser considerado, interna e externamente, com
capacidade suficiente para se confrontar com o regime (em especial, no que
dizia respeito à sua política colonial), foi necessário construir e tornar
credível essa capacidade. O movimento aproveitou pretextos (por exemplo, os
decretos do governo sobre as carreiras militares), enunciou exigências (por
exemplo, a salvaguarda do prestígio das Forças Armadas), enfrentou as
autoridades (por exemplo, assinando exposições de forma colectiva), foi
construindo uma solução programática para a questão colonial (por exemplo, o
enunciado de uma solução para a guerra no documento de Cascais) e finalmente
muniu-se de um programa democrático, antes de avançar para o golpe militar e o
derrube do regime.
Este
processo, invulgar nas acções de intervenção política dos militares, foi
construído com persistência e com o óbvio objectivo de derrubar o regime, sem
considerar, como necessária, a adesão da hierarquia.
Mas
as motivações que suportaram o percurso e a expansão do movimento, passaram de
uma motivação corporativa inicial (impedir alterações de carreiras), para a
valorização da motivação de fundo que acompanhou o movimento desde o início até
ao fim, ligada à necessidade de encontrar uma solução para a guerra colonial, e
convergindo por fim para a motivação política, verdadeira questão que se
fortaleceu ao longo do percurso do movimento – o derrube da ditadura.
Das
três hipóteses que o Movimento discutiu, golpe de Estado, pronunciamento
militar e exigência progressiva e insustentável de medidas do governo, a
primeira foi a única que bem cedo constituiu objectivo último da grande maioria
dos participantes.
Imagem do 25 de Abril, na Baixa de Lisboa. |
Por
outro lado, e considerando a situação limite para que caminhava a guerra, o
regime não apresentava nenhuma solução credível para a questão colonial (o que
não é o mesmo que dizer que não tinha nenhuma solução para a guerra). Por isso,
a partir de 1973, com o agravamento da situação no terreno, levantou-se um
problema nas relações das Forças Armadas com o regime, a propósito da Guerra.
Na
doutrina do Estado Novo existia um princípio que punha em causa a acção das Forças
Armadas – era o da manutenção, a todo o custo, do princípio da
pluricontinentalidade da Nação em face e apesar do movimento descolonizador
mundial.
Esta
contradição veio a exprimir-se na progressiva consciencialização dos militares
acerca do regime, sendo que essa capacidade de questionar surgiu sobretudo nos
quadros médios do Exército, em face das condições concretas da guerra.
Os
primeiros sinais de descontentamento surgiram na Guiné, face à degradação
militar no terreno e à acção do general Spínola, como exemplo de questionamento
das soluções coloniais do regime.
Na
marcha que empreenderam, em direcção à acção militar contra o regime, os
capitães foram definindo como bases de actuação, os seguintes princípios:
-
Organização democrática do próprio Movimento;
-
Preparação de um plano de operações minucioso e adequado à operação militar
necessária;
-
Elaboração e aprovação de um programa político de democratização, que desse um
sentido último à intervenção militar.
No
sentido de reforçar o empenhamento dos participantes no movimento todos vão
assinar, desde o Verão de 1973, de forma colectiva, uma série de documentos de
contestação, nos quais virão a comprometer-se cerca de 700 oficiais, 17% do
total de mais de 4.000 efectivos do Exército.
E
se este número é significativo e responde a uma das exigências da intervenção
política dos militares, ela fica mais evidente se assinalarmos que participam
no Movimento 602 oficiais das Armas combatentes (Infantaria, Artilharia e
Cavalaria), 29% do total de 2.079 oficiais destas armas. E ainda mais se
realçarmos a participação de 485 majores e capitães destas Armas, 38% do total
dos 1.279 existentes.
Mas
não devemos confundir este primeiro movimento militar (O Movimento dos
Capitães) com o seu sucessor, o Movimento das Forças Armadas.
À
medida que o Movimento dos Capitães se foi transformando em MFA, tanto pelo
alargamento aos três Ramos das Forças Armadas, como pela consciência da
necessidade de uma acção política, foi-se afastando irremediavelmente das
reivindicações corporativas iniciais.
Uma chaimite no Terreiro do Paço, no 25 de Abril (Alfredo Cunha?) |
Ora,
esta evolução do Movimento dos Capitães para MFA consolidou-se verdadeiramente
na aprovação do documento de Cascais, que, apesar do avanço que representou, só
deixava de fora alguns militares irrevogavelmente sensíveis à questão colonial.
Ninguém contestava já a necessidade de o "comum dos cidadãos"
participar na "definição do interesse nacional", e de o poder
político deter "o máximo de legitimidade" e as instituições serem
"efectivamente representativas das aspirações e interesses do Povo".
Todos aceitavam também que "sem democratização do país" não haveria
solução para os "gravíssimos problemas que se abatem sobre nós".
Só
o que, quase paradoxalmente, não era aceitável por todos (embora o fosse pela
grande maioria), era a solução da guerra colonial proposta pelo documento de
Cascais, solução que deveria ter em conta "a realidade incontroversa e
irreversível da funda aspiração dos povos africanos a se governarem por si próprios".
O
salto qualitativo que o Movimento deu em Cascais preparou o terreno para a
consolidação do MFA, do seu principal documento e do apoio generalizado que
mereceu antes e sobretudo depois do 25 de Abril: o Programa do MFA.
Em
suma, não pode considerar-se o Movimento dos Capitães como um movimento pujante
desde o seu início. Nele é necessário valorizar a componente corporativa e,
como fundo principal, a questão militar colonial. A introdução de motivações
mais vastas foi habilmente colocada, o que veio a tornar o movimento irreversível.
Mas não pode considerar-se que a atitude dos quadros médios do Exército estivesse
configurada à partida. De facto, embora de uma forma geral o sentimento de
impotência perante o prolongamento indefinido da guerra gerasse predisposições
para o seu questionamento, a verdade é que foi mais fácil conseguir a aceitação
de um golpe militar para derrubar o governo, do que sugerir uma solução
negociada para a guerra. As fracturas que se manifestaram no Movimento dos
Capitães (e se prolongaram no MFA), tiveram mais a ver com a guerra e as
soluções para o problema colonial, do que com outras questões que poderiam
parecer mais decisivas - por exemplo, a estrutura do poder político após o
golpe militar.
É
por isso que na primeira fase da revolução portuguesa os conflitos em torno da
questão colonial assumiram um papel determinante, enquanto as medidas de
democratização do regime foram aceites com maior consenso.
Gostaria
agora de, sucintamente, caracterizar o movimento militar que levou a cabo o 25
de Abril em Portugal, através de alguns factores que lhe deram consistência e
de algumas condições que sustentaram o seu êxito.
Em
primeiro lugar, os factores. Resumindo, podemos dizer que o movimento que
conduziu ao 25 de Abril:
-
É um movimento militar amplo, com base no Exército e nos quadros médios,
incluindo oficiais da Marinha e da Força Aérea;
-
Responde a um anseio generalizado, não prevendo por isso oposição popular;
-
Assume uma componente de natureza política através de um programa democrático;
-
Tem, apesar de tudo, consciência da existência de fracturas internas.
Em
segundo lugar, a acção militar do 25 de Abril reuniu certas condições, que
podem ser assim resumidas:
-
Alicerçou-se num sólido plano de operações;
-
Isolou o teatro de operações (constituído por todo o território português) e
executou uma convergência de forças para a cidade de Lisboa, sede do poder
político;
-
Usou a rapidez de acção e a surpresa;
-
Os principais executantes tinham experiência de guerra.
E
para além disto tudo, os participantes tinham uma missão muito clara, constante
do plano de operações, como convém a toda a acção militar:
“A missão a atingir com a realização da operação é
provocar o derrube do Governo vigente, com o aprisionamento de todos os seus
membros e do Presidente da República, com o apoio e a acção activa ou passiva
de todas as NF actuantes, tendo em vista pôr imediatamente em execução o
programa constante da proclamação a dirigir à Nação logo após o golpe, visando
a implantação, a curto prazo, de uma democracia política como forma de governo
no País”.
Podemos
então dizer que o golpe de Estado do 25 de Abril de 1974, em Portugal, que
evoluiu depois para um processo revolucionário, teve algumas características
invulgares:
-
Derrubou uma ditadura;
-
Propôs a instauração de um regime democrático, de partidos, com base num
programa político;
-
Formulou uma solução para o problema colonial através de negociações;
-
Propôs um programa de desenvolvimento económico e social de maior justiça.
Duas formas de ver o 25 de Abril e a tomada do poder: As Forças Armadas ou o Movimento das Forças Armadas? |
Em
suma, depois da vitória, e através de um Programa pré-elaborado, o golpe de
Estado transformou-se numa Revolução, também pela vontade e participação do
povo de Lisboa, que rapidamente se propagou a todo o país. Ora, o programa,
traduzindo a vontade popular, assentava em três pilares:
-
Democratização
-
Descolonização
-
Desenvolvimento.
O
programa dos três D’s.
Mas
o que é essencial referir e nunca esquecer, é que, mesmo nos primeiros dias, as
acções do novo poder revolucionário foram baseadas na lei. Primeiro, foram de
imediato promulgadas leis a destituir os antigos dirigentes e a determinar as
novas medidas, ou seja, os militares quiseram transmitir, desde a primeira
hora, uma mensagem muito clara – o Estado a instaurar seria um Estado de
Direito. Pensamento que todos souberam erguer como bandeira, mesmo nos períodos
de maior confronto entre as correntes de opinião e ideológicas em que os
militares portugueses se dividiram. O seu denominador comum procurou ser sempre
o de que o poder devia assentar no direito, que não haveria poder arbitrário.
Ora,
o mais simbólico e determinante factor desta disposição foi precisamente o
Programa do MFA, apresentado ao povo português na manhã do dia 26, primeiro dia
da Revolução. É certo que contra a vontade do sector mais golpista do próprio
Movimento, mas com o apoio e a concordância da grande maioria dos seus
participantes.
Leitura do Programa do MFA pelo major Vítor Alves, na manhã de 26 de Abril. |
Para
finalizar, aqui ficam as medidas essenciais preconizadas pelo Programa do MFA,
no âmbito de cada uma das suas principais orientações.
1º
- Democratização:
-
Eleição de uma Assembleia Nacional Constituinte no prazo de 12 meses;
-
Nomeação de um Governo Provisório Civil no prazo de três semanas;
-
Sufrágio universal, directo e secreto;
-
Amnistia de todos os presos políticos;
-
Reintegração dos servidores do Estado perseguidos;
-
Abolição da censura;
-
Liberdade de reunião e de associação;
-
Nova lei de imprensa;
-
Independência do Poder Judicial.
2º
- Descolonização:
a) Solução
política e não militar;
b) Criação
de condições para um debate nacional;
c) Lançamento
dos fundamentos de uma política que conduza
à paz.
à paz.
Mas
este programa foi amputado, na noite de 25 para 26 de Abril, da alínea
definidora de uma verdadeira política de descolonização, por divergências
internas do Movimento:
d) Claro reconhecimento do direito dos
povos à autodeterminação e adopção acelerada de medidas tendentes à autonomia
administrativa e política dos territórios ultramarinos, com efectiva e larga
participação das populações autóctones.
Coluna de guerrilheiros da FRELIMO, em Moçambique. |
3º
- Desenvolvimento:
-
Vigilância das operações económicas e financeiras com o estrangeiro;
-
Combate contra a corrupção e a especulação;
-
Nova política económica ao serviço do povo, em especial das camadas mais
desfavorecidas;
-
Luta contra a inflação;
-
Estratégia antimonopolista;
-
Nova política social em defesa dos interesses das classes trabalhadoras;
-
Aumento progressivo, mas acelerado, da qualidade de vida de todos os
portugueses.
Em
conclusão:
-
A intervenção dos militares portugueses na política, em 25 de Abril de 1974,
deu-se em circunstâncias muito especiais da sociedade portuguesa da época;
-
A guerra colonial foi o motivo determinante da atitude dos oficiais do Exército
que constituíram o movimento dos capitães;
-
Foi na guerra que os oficiais mais jovens tomaram consciência da necessidade de
derrubar a ditadura e de reconhecer o direito dos povos das colónias à
independência;
-
A guerra permitiu também formar uma geração de jovens militares que conheciam o
valor da vida e os perigos da violência;
-
Também foi a guerra que fortaleceu os laços de camaradagem entre militares, o
que evitou confrontos violentos mesmo quando se dividiram em facções durante o
processo revolucionário;
-
Foi ainda a guerra que moldou o processo de descolonização e o nascimento de
seis novos países de expressão portuguesa;
-
O Movimento dos Capitães gerou um processo de intervenção especial, visando a
instauração de um regime democrático;
-
O MFA apresentou ao povo português um programa político assente nos princípios
da liberdade, da democracia e da justiça;
-
O MFA entendeu que era fundamental marcar dois prazos no seu programa: o da
nomeação de um Governo Provisório Civil (3 semanas) e da eleição de uma
Assembleia Nacional Constituinte (12 meses), como compromisso comum e decisivo,
e fundamento do sentido democrático da sua intervenção.
Tive o privilégio de, em Nampula 1974, fazer parte das reuniões sob a direcção de Gabriel Teixeira, nas quais Aniceto Afonso teve papel preponderante.
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